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Como Freud criou um dos maiores mitos sobre o orgasmo feminino

GETTY IMAGES Legenda da foto, No clássico 'Três Ensaios sobre Teoria da Sexualidade', "pai da psicanálise" decretou o que eram os orgasmos "corretos", rótulo adotado pelos médicos durante décadas.

No mesmo ano em que o alemão Albert Einstein (1879-1955) publicou sua inovadora Teoria Especial da Relatividade (ou Teoria da Relatividade Restrita), o austríaco Sigmund Freud (1856-1939) lançou sua teoria do orgasmo feminino.


A do pai da física moderna revolucionou nossa compreensão do cosmos; a do pai da psicanálise desencadeou uma tempestade.


Em sua obra “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” — publicada em 1905 e revisada várias vezes até sua edição final em 1925 — ele decretou que o prazer e o orgasmo feminino de uma mulher madura e saudável estavam centrados na vagina.


Freud sabia muitas mulheres gozavam através de um órgão pequeno, mas ultra-sensível, conhecido como clitóris.


No século 19, vários especialistas homens haviam debatido o papel que o clitóris deveria desempenhar na sexualidade feminina, entre outros motivos, porque muitos estavam preocupados que sua manipulação pudesse levar as mulheres a excessos, como masturbação compulsiva ou ninfomania, ou à rejeição da relação sexual.


Para Freud, esses orgasmos clitorianos eram imaturos, infantis e evidência de um distúrbio mental.


Por quê?

O austríaco explicou que, ao contrário dos homens que desde a infância tinham a mesma zona erógena orientadora — a glande, as mulheres começaram a vida tendo o clitóris como sua zona erógena orientadora, mas “no processo pelo qual uma menina se torna mulher”, ela acaba sendo transferida para a vagina.


“Muitas vezes leva algum tempo para que a transferência ocorra. Durante esse tempo, a jovem fica anestesiada (frígida, entorpecida)”, disse ele.


E acrescentou: “Nesta mudança da zona erótica orientadora, (…) residem as principais condições da propensão das mulheres às neuroses, em particular à histeria”.


(Sistema reprodutor feminino com detalhe mostrando o clitóris em 1827)

CRÉDITO,WELLCOME COLLECTION Legenda da foto, Textos de anatomia do início do século 19 notaram a existência do clitóris, mas acreditavam que não era importante para a expressão sexual feminina (Sistema reprodutor feminino com detalhe mostrando o clitóris em 1827)

Se uma mulher não movia seu centro de sensibilidade para a vagina, ela era rotulada de frígida.


Esse diagnóstico de frigidez, definido como ausência de orgasmo durante a relação sexual, tornou-se o padrão para definir a heterossexualidade feminina normal.


Marie Bonaparte, bisneta de Napoleão e discípula freudiana que ajudou a introduzir a psicanálise na França, ficou tão fascinada com a teoria de seu professor que passou por três cirurgias para aproximar o clitóris da vagina na esperança de remediar sua incapacidade de ter um orgasmo vaginal “adequado”, embora Freud lhe implorado para não realizar os procedimentos.


Revelações íntimas

O ponto de vista freudiano dominou o pensamento médico e psicanalítico por décadas.


Como resultado, inúmeras mulheres que tiveram dificuldade em atingir o orgasmo ao serem penetradas durante o sexo (apesar de não tê-lo ao se masturbar) foram levadas a acreditar que seus orgasmos não eram “reais”.


Detalhe da primeira edição de 'Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade'

Detalhe da primeira edição de ‘Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade’. CRÉDITO,GETTY IMAGES

Detalhe da primeira edição de “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”.


Na década de 1950, os resultados da pesquisa do sexólogo americano Alfred Kinsey (1894-1956) sobre o orgasmo feminino desafiaram a ortodoxia freudiana.


Como resultado de entrevistas com mais de 18,6 mil homens e mulheres, nas quais eles revelaram seus segredos sexuais mais íntimos, Kinsey descobriu que a grande maioria das mulheres que se masturbava usava estimulação do clitóris.


Menos de 20% incluíram alguma forma de penetração vaginal e só porque sentiram terem que fazê-lo.


Kinsey concluiu que a insistência em um orgasmo vaginal era um reflexo da presunção dos homens “quanto à importância da genitália masculina”.


No entanto, a publicação de seu livro “Comportamento Sexual em Mulheres” em 1953 foi recebida com tamanha rejeição que o conteúdo do trabalho foi rapidamente suprimido.


Portanto, nem isso nem a confrontação direta dos americanos William Masters e Virginia Johnson (casal de ginecologistas que ajudou a detonar a revolução sexual dos anos 60) às opiniões de Freud sobre a frigidez em 1957 mudaram muito a situação das mulheres.


Seriam elas mesmas que se encarregariam de desafiá-las.


O freudismo foi um dos principais alvos das escritoras do movimento das mulheres; ele foi atacado como sexista pela francesa Simone de Beauvoir (1908-1986) em “O Segundo Sexo” (1949), pela americana Betty Friedan (1921-2006) em “A Mística Feminina” (1963) e pela também americana Kate Millett (1934-2017) em “A Política Sexual” (1970).


Feministas como as francesas Monique Wittig (1935-2003) e Luce Irigaray denunciaram a obsessão de Freud pelo prazer feminino através da vagina como um estratagema para subjugar as mulheres.


E a americana Anne Koedt, em seu artigo “O Mito do Orgasmo Vaginal” (1968), argumentou que os orgasmos clitóricos eram, de fato, a única maneira pela qual as mulheres podiam atingir o orgasmo verdadeiro.


Ele postulou que a alta taxa de “frigidez feminina” era, na verdade, uma alta taxa de ignorância dos homens sobre a anatomia do orgasmo feminino e o desejo de reduzir as mulheres a papéis sociais e sexuais prescritos.


Muitas outras expoentes dessa onda de feminismo exploraram a relação entre sexualidade e dominação.


Se para Freud o sexo era a chave para compreender o homem, para aquela legião de mulheres era a chave para libertá-las.


‘Continente negro’

O orgasmo vaginal voltou à moda com a “descoberta” do ponto G, uma espécie de “botão de prazer” erótico descrito pela primeira vez em 1953 por um médico alemão chamado Ernst Gränfenberg (eis por que é chamado ponto G) e popularizado em 1982 com o best-seller “Ponto G”.


"Um orgasmo não é um prêmio", diz o cartaz da Marcha Mundial das Mulheres em 2015

“Um orgasmo não é um prêmio”, diz o cartaz da Marcha Mundial das Mulheres em 2015. CRÉDITO,GETTY IMAGES

A existência dessa área erógena que supostamente estaria na parede vaginal anterior é aceita entre a população, mas controversa na literatura médica.


Uma pesquisa recente intitulada “Ponto G: Fato ou Ficção?: Uma Revisão Sistemática” examinou 31 estudos e observou que alguns concordavam consistentemente com a existência do ponto G, mas não havia acordo sobre sua localização, tamanho ou natureza.


“A existência dessa estrutura continua sem comprovação”, concluiu.


Já em 2014, o endocrinologista e sexólogo Emmanuel Janni, da Universidade Tor Vergata, em Roma, havia divulgado descobertas visando pôr fim às discussões sobre o “assustador ponto G”.


O prazer feminino, como sua pesquisa mostrou, não era exclusivamente vaginal ou clitoriano, mas estava englobado no que é conhecido como complexo clitoruretrovaginal, o conceito de que a relação dinâmica dentro da vagina, clitóris e uretra pode estimular a liberação sexual.


A ciência também descobriu que a capacidade de atingir o orgasmo depende da neurologia.


Apesar da luta pela libertação feminina e pesquisas científicas, estudos constataram que as mulheres heterossexuais são o grupo demográfico com menos orgasmos durante a relação sexual, o que pode ser devido à falta de compreensão sobre a anatomia feminina.


Décadas após ser postulada, ainda permanecem resquícios da desacreditada teoria de Freud, que por tanto tempo permeou a percepção da sexualidade feminina, embora ele próprio aparentemente aceite que não a compreendia de verdade, descrevendo-a de “continente negro”.


Fonte: BBC


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