O ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF), votou nesta quarta-feira (10) pela manutenção da delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro (PL). A decisão frustra uma das principais teses das defesas do ex-presidente e do general Walter Braga Netto, que buscavam anular o acordo firmado com a Polícia Federal.
Com o voto de Fux, a Primeira Turma do STF consolidou, por maioria, a validade da colaboração, considerada peça central nas acusações da Procuradoria-Geral da República (PGR) sobre a tentativa de golpe de Estado e a organização criminosa que teria sido liderada por Bolsonaro.
Autoincriminação e validade do acordo
Segundo Fux, não houve irregularidades na condução da delação. Ele ressaltou que Cid sempre esteve acompanhado de advogados e foi advertido sobre os riscos de descumprir o pacto. “O colaborador acabou se autoincriminando. Isso faz parte do rol de perguntas que se pode fazer a quem delata”, afirmou.
O ministro destacou ainda que Cid não foi chamado para “inventar fatos”, mas para confirmar elementos já investigados pela PF. “O réu foi chamado para um complexo de crimes como esse. Ele não foi chamado para inventar, mas para fatos novos que a própria polícia noticiava a ele”, disse.
Benefícios sob revisão
Embora tenha mantido a colaboração, Fux sinalizou que os benefícios concedidos a Cid podem ser revistos. Ele concordou com a PGR ao apontar que as “idas e vindas” nos depoimentos — com versões que apresentaram mudanças ao longo do tempo — devem pesar para reduzir a diminuição da pena prevista no acordo.
“O direito não é um museu de princípios, está em constante mutação. Mudar de entendimento é manifestação de humildade judicial, é evoluir”, afirmou, em referência ao fato de que o Ministério Público chegou a questionar o acordo antes de mudar de posição e defendê-lo formalmente.
Água fria na estratégia da defesa
A manutenção da delação de Mauro Cid joga água fria na estratégia das defesas de Bolsonaro e Braga Netto, que apostavam na nulidade do acordo para enfraquecer a acusação de que havia uma estrutura criminosa com divisão de tarefas para tentar se manter no poder após a derrota eleitoral de 2022.
A delação de Cid já foi usada por Moraes e Dino em seus votos como prova corroborada por outros elementos — como documentos, mensagens e reuniões —, reforçando o papel de Bolsonaro como líder da organização criminosa.
O julgamento em andamento
A Primeira Turma do STF, presidida pelo ministro Cristiano Zanin, retomou na quarta-feira (10) a análise da denúncia contra o chamado “núcleo crucial” da suposta trama golpista, apontado pela Procuradoria-Geral da República (PGR) como responsável por articular medidas para impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) após a eleição de 2022.
Os ministros Alexandre de Moraes e Flávio Dino votaram pela rejeição de todas as preliminares arguidas pelas defesas e pediram a condenação dos réus por todos os crimes imputados pela PGR. O julgamento terá sessões extraordinárias até 12 de setembro.
Voto do ministro Alexandre de Moraes
Para o relator do processo, ficou comprovado que houve uma tentativa de golpe de Estado a partir de 2021, quando os primeiros atos preparatórios começaram a ser executados com o uso indevido de órgãos públicos, como a Abin e o GSI, para desacreditar as urnas eletrônicas e o Poder Judiciário.
Moraes tratou Bolsonaro como líder de uma organização criminosa hierarquizada, estruturada com divisão de tarefas e composta por militares e integrantes do governo federal. Segundo ele, o objetivo do grupo era garantir a permanência no poder “independentemente do resultado eleitoral”, utilizando instrumentos ilegais e atentando contra a democracia.
O ministro rejeitou todas as preliminares apresentadas pelas defesas, mantendo a validade da delação premiada de Mauro Cid e das provas reunidas pela Polícia Federal. Ele ressaltou que não é necessário consumar o golpe para que o crime esteja configurado — os atos executórios já são suficientes para responsabilizar os envolvidos.
Para o ministro, as provas reunidas demonstram que o alvo central da conspiração foi o Estado Democrático de Direito, atacado de forma sistemática para minar as instituições e abrir caminho para a perpetuação do grupo político de Bolsonaro no poder.
Voto de Flávio Dino
O ministro Flávio Dino acompanhou o relator Alexandre de Moraes e votou pela condenação de Jair Bolsonaro e outros sete réus da chamada trama golpista.
Em sua fala, Dino rejeitou a tese das defesas de que as condutas seriam apenas “atos preparatórios”. Para ele, houve atos executórios concretos que configuram violência e grave ameaça, como bloqueios de rodovias, tentativas de fechar aeroportos e ataques às instituições. O ministro destacou que crimes de empreendimento — como golpe de Estado e abolição do Estado Democrático de Direito — não exigem consumação para serem punidos.
O magistrado também foi categórico ao afirmar que os crimes imputados aos réus são insuscetíveis de anistia, por envolverem ações de grupos armados contra a ordem constitucional. Dino rechaçou ainda a ideia de uma “autoanistia” em favor de altos escalões de poder, lembrando que nunca houve precedente desse tipo na história do país.
Ao analisar a participação de cada réu, Dino adiantou que as penas não devem ser iguais, pois os níveis de culpabilidade variam. Bolsonaro e Walter Braga Netto foram apontados como líderes da organização criminosa, com maior responsabilidade. Garnier, Anderson Torres e Mauro Cid também foram classificados com alta culpabilidade, enquanto Augusto Heleno, Alexandre Ramagem e Paulo Sérgio Nogueira tiveram participação considerada de menor importância.
Próximos passos
O processo segue agora para os votos dos ministros Cármen Lúcia e Cristiano Zanin. Cada voto será dividido em duas etapas: primeiro, a análise das preliminares — como a validade da delação de Mauro Cid e a competência do STF; em seguida, o mérito, com a avaliação das provas apresentadas pela PGR.
A decisão final será tomada por maioria simples. Caso confirmada a condenação, a definição das penas será discutida em fase posterior.
Quem são os réus
Além de Bolsonaro, respondem na ação:
• Alexandre Ramagem, deputado federal e ex-diretor-geral da Abin;
• Almir Garnier, ex-comandante da Marinha;
• Anderson Torres, ex-ministro da Justiça e ex-secretário de Segurança Pública do DF;
• Augusto Heleno, ex-ministro do GSI;
• Mauro Cid, tenente-coronel e ex-ajudante de ordens de Bolsonaro;
• Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa;
• Walter Braga Netto, ex-ministro da Defesa e da Casa Civil, candidato a vice-presidente em 2022.
Os oito réus são acusados de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, dano qualificado por violência e grave ameaça e deterioração de patrimônio tombado. No caso de Ramagem, parte das acusações foi suspensa por decisão da Câmara dos Deputados.