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Raptado e levado para Santa Catarina, filho reencontra a mãe no Acre após 34 anos

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Josenildo da Silva Marreira tinha 11 anos, em 1987, quando saiu de casa para vender quibe de arroz na rodoviária de Rio Branco, capital do Acre. Naquela época, o trabalho infantil era tão comum quanto essencial no sustento da família, principalmente na Amazônia. O salgado recheado com carne moída era feito com capricho pela mãe, Iraci Feitosa da Silva, com 31 anos na época.


Na plataforma de embarque da rodoviária, uma senhora perguntou a Josenildo quanto custava o quibe de arroz. Assim que vendeu o salgado, o menino foi reconhecido pela mulher misteriosa. “Você não é filho do seu Francisco?”, perguntou ela. “Sim, mas quem é você?”, indagou Josenildo, curioso.


Rapto


A pergunta da mulher mexeu com as emoções do garoto. Seu pai era policial militar e havia sido assassinado em 1983 por bandidos durante uma briga de bar. A imagem do corpo de Francisco caído numa poça de sangue não saía da sua cabeça, embora ele tivesse 7 anos quando o crime ocorreu. Os matadores nunca haviam sido presos. A senhora, então, disse que poderia levar Josenildo até os bandidos. Bastava ele subir no ônibus com ela. A criança largou a bandeja com quibes de arroz e embarcou. Foi parar em Porto Velho, capital de Rondônia. Lá, foi incluído num esquema de tráfico de crianças e vendido a uma família de Florianópolis (SC).


Apesar de morar numa casa confortável e ter um quarto exclusivo, Josenildo não se adaptou à nova família. Certa vez, sua mãe adotiva o levou para passear no parque de diversões com outras crianças. Ele foi posto sentado em cima de um cavalinho de carrossel e ficou girando por alguns minutos. Na primeira oportunidade, o garoto do Acre pulou do brinquedo em movimento e fugiu. “Sentia muita falta da minha mãe. Depois que o meu pai morreu, me via responsável pela família, pois eu era o mais velho de sete irmãos”, contou Josenildo.


Do outro lado do país, Iraci procurava desesperadamente pelo primogênito. Sentia-se culpada por ter deixado a criança vendendo quibes de arroz sozinha na rua. Ela foi à delegacia e registrou um boletim de ocorrência comunicando o sumiço da criança. Como o desaparecido era filho de policial, os investigadores intensificaram as buscas. Iraci peregrinou pelas rádios da cidade pedindo ajuda aos ouvintes para encontrá-lo. A família também espalhou fotos dele por todos os cantos da cidade.


‘Virei trombadinha’


Nas ruas de Florianópolis, Josenildo dormia sob viadutos enrolado em papelão, pedia esmola na sinaleira e tomava banho em chafariz de praça. Mais tarde, começou a praticar pequenos assaltos armado com uma faca artesanal. “Virei trombadinha, como se dizia na época”, disse.


Depois de alguns meses, Josenildo passou a abordar caminhoneiros na estrada com o intuito de pegar uma carona até Rio Branco e reencontrar a família. De boleia em boleia, foi parar em São Paulo, onde teve uma experiência marcante. Enquanto dormia num coreto de praça, na República, um homem tentou violentá-lo sexualmente. Esperto, pegou sua faca e golpeou seu algoz fortemente na barriga. “Perdi a conta de quantas vezes dei facadas em abusadores”, recorda-se.


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Errante, Josenildo pegou mais caronas com caminhoneiros, morando por algumas semanas em Cuiabá, Campo Grande e Porto Velho. Anos depois, fixou moradia em Brasiléia, um município acreano situado na fronteira com a Bolívia, a 230 quilômetros de Rio Branco.


Passados dez anos, Iraci ainda mantinha acesa a esperança de um dia encontrar o filho. Amigos e parentes tentavam convencê-la de que ele estava morto. Uma psicóloga da rede pública submeteu a mãe a um processo de luto para que processasse melhor a perda. Iraci não aceitou e abandonou o tratamento. Angustiada e carregando uma culpa colossal, caiu em depressão. “Todo mundo me falava para aceitar a realidade e seguir em frente. Mas o meu coração dizia para eu não desistir, pois o meu filho estava vivo em algum lugar desse mundão”, relembra a mãe.


Quase dez anos após o desaparecimento de Josenildo, Iraci teve as esperanças de reencontrar o filho vivo renovadas. Em 1995, a novela da TV Globo, Explode Coração, de autoria de Glória Perez, começou a tratar do tema das crianças desaparecidas, com mães reais mostrando fotos de seus filhos ausentes em cadeia nacional. Iraci chegou a ligar para o Centro Brasileiro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente pedindo para encaminhar a foto do filho à produção da novela. Mas a funcionária que atendeu o telefone disse que, tanto tempo depois do seu sumiço, Josenildo já teria 21 anos, ou seja, sua aparência estaria bem diferente da criança que estava na foto. A partir dessa negativa, Iraci mergulhou numa depressão ainda mais profunda.


Família adotiva


Enquanto isso, Josenildo se estabelecia num lote de terras no interior do Acre. Começou a trabalhar inicialmente em pescaria e agropecuária. Mais tarde virou seringueiro, função do agricultor que colhe o látex da árvore para produção de borracha natural. Foi adotado por uma família que já tinha onze filhos, assumindo o posto de caçula. Mineiro, o pai adotivo se chamava Sebastião Tigre e tinha uma pequena criação de gado. A nova mãe, Zinha Tigre, era mineira e dona de casa. Como Josenildo não tinha nenhum documento, seus pais adotivos foram até um cartório em Brasiléia e o registraram com um novo nome: Francisco Araújo Tigre. “Eles tiveram que me registrar para poder me matricular na escola”, contou Josenildo, ou melhor, Francisco.


Na família de agricultores, o jovem com dois nomes enfrentou uma nova tragédia. Seu pai adotivo foi assassinado numa briga motivada por uma disputa de um boi. Alguns anos depois, ele perdeu a mãe adotiva. Zinha contraiu um câncer agressivo, enfrentou um tratamento pesado e foi definhando. Em seu leito de morte, ela chamou seus filhos um a um. Na vez de Josenildo/Francisco, ela fez um pedido importante minutos antes de partir: “Meu filho, queria te pedir algo especial. Em algum lugar desse mundo há uma mãe desesperada em busca do filho perdido. Queria dar a você uma missão: vá em busca da sua mãe biológica. Ela precisa de você mais do que eu”.


Josenildo/Francisco ficou mexido com o pedido da mãe adotiva, mas demorou para processar o recado. Na verdade, ele não sabia por onde começar, pois procurar pela família biológica numa capital como Rio Branco parecia o mesmo que sair atrás de uma agulha perdida no palheiro. Para iniciar a busca, ele se mudou para a capital do Acre em 2014. Nessa época, ele estava casado com Andrea Ferreira, com quem teve dois filhos.


Busca pela mãe biológica


Segundo conta, Josenildo/Francisco teve um sonho marcante. Enquanto dormia, viu Iraci e Zinha no mesmo ambiente. Lado a lado, as duas mães estavam de mãos dadas, chorando copiosamente. Zinha estendeu a mão de Iraci para o filho tocar. Assustado, ele deu um pulo da cama todo molhado de suor. A partir desse sonho, decidiu encontrar a mãe biológica.


Enquanto isso, Iraci não tirava da cabeça a certeza de que um dia encontraria o filho. Amigos e parentes acreditavam que a dor da mãe havia se transformado em transtorno mental. A senhora, já com quase 70 anos, vivia à base de remédios receitados por um psiquiatra. Certo dia, Iraci viu o caminhão de lixo passando na rua e foi levar sacos com detritos. Ao se deparar com o gari, a senhora meteu na cabeça que ele era Josenildo. Mandou o homem entrar, serviu café e começou a perguntar onde ele esteve esse tempo todo. O gari não entendeu nada. Mas, percebendo a perturbação de Iraci, resolveu não contestar.


Pelas suas contas, Josenildo/Francisco tinha 39 anos quando traçou um plano para encontrar a mãe. Iniciou sua jornada pela rodoviária, de onde foi raptado. De lá, seguiu a pé pelas ruas do bairro Nova Estação, onde morava quando era criança. Tudo era muito diferente. Nenhuma casa tinha a mesma fachada de outrora.


Ele já estava quase desistindo quando bateu desavisado na porta da casa da sua tia materna, Clarice Feitosa da Silva, de 75 anos. Ela não o identificou logo de cara, mas ficou com a sensação de conhecer aquele homem de algum lugar. Clarice perguntou seu nome, e Josenildo disse que era Francisco. Desconfiada, a tia chamou pelo telefone todos os filhos de Iraci para ver o que cada um deles achava.


Como os irmãos eram muito pequenos quando o mais velho sumiu, nenhum sabia o que dizer. Até Rosângela Marreiro, de 49 anos, a segunda filha de Iraci, ficou em dúvida. “Ele tinha 12 anos quando foi raptado e eu tinha 11. Apareceu com mais de 40. Não tinha como dizer de pronto se era ele ou não”, contou.


Reencontro com a mãe


Iraci foi chamada para tirar a prova dos nove. Ao bater o olho em Josenildo/Francisco, ela não teve dúvida. A mulher quase desmaiou de tanta emoção. Abraçou e beijou o filho por tempo indeterminado. De quebra, ela ganhou dois netos. “Impossível descrever essa emoção. Estou feliz, mas também sinto uma sensação estranha por ter ficado tanto tempo longe dele”, descreveu.


Pelo sim, pelo não, recentemente foi feito um exame de DNA para se ter 100% de certeza de que Francisco era mesmo Josenildo. Agora, ele passa o dia grudado na mãe biológica. Por questões legais, ele teve de refazer sua carteira de identidade. Iraci mostrou a ele a sua certidão de nascimento original na qual consta que seu nome é Josenildo da Silva Marreira, nascido em Rio Branco no dia 1º de julho de 1975. Em contrapartida, ele mostrou à mãe outro registro feito no município de Senador Guiomard (AC), no qual está escrito que seu nome é Francisco Araújo Tigre, nascido em 4 de outubro de 1980. Confuso, não soube qual nome adotar. Com uma autorização judicial, ele conseguiu fazer um híbrido das suas duas famílias. Atualmente, em seus documentos pessoais, consta seu novo nome: Francisco Josenildo da Silva Marreira Tigre. “O que facilita a minha vida é que todo mundo só me chama de Neguinho. Assim, ter esse monte de nome não muda nada”, concluiu aliviado.


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