Legisladores britânicos manifestaram preocupações em relação a investigação conduzida pela Rússia na Antártida, em uma audição da Comissão de Auditoria Ambiental da Câmara dos Comuns, em meados do mês de maio. Relatórios russos mostraram possíveis descobertas de hidrocarbonetos em uma zona protegida por um tratado internacional que só permite pesquisas científicas na região.
Parte dessas explorações, segundo a empresa russa de pesquisa geológica, Rosgeo, foram realizadas em uma área do continente onde se sobrepõem demandas territoriais do Reino Unido, Argentina e Chile.
Na audiência parlamentar, a legisladora Anna McMorrin disse que a comissão foi informada de recentes “atividades problemáticas russas” e da coleta de dados sísmicos na Antártida que “soa como a busca de minerais, antes que recolha e investigação científica”, em referência às tarefas que são permitidas pelo Tratado Antártico, assinado em 1959.
O jornal Telegraph, com base em relatórios de fontes anónimas que afirma que foram apresentados à comissão legislativa, apontou que a Rússia encontrou nessa zona reservas que somam um aproximado de mais de 500 bilhões de barris de petróleo, quase o dobro das reservas de petróleo bruto comprovadas da Arábia Saudita em 2022, segundo a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP).
O tema despertou o interesse não só no Reino Unido, mas também na Argentina e no Chile.
A reação oficial do governo da Argentina chegou cinco dias depois do relatório na imprensa britânica e outros meios.
“Isto não é novo. Embora tenha sido anunciado nas últimas horas, é uma descoberta que aconteceu anos atrás”, disse o porta-voz da Presidência da Argentina, Manuel Adorni, em entrevista coletiva.
Adorni acrescentou que o Ministério das Relações Exteriores está recolhendo todas as informações para entender se são questões de investigação ou se isso se traduz em algum outro tipo de práticas na Antártida, e disse que, com base nessas investigações, tomarão “as ações correspondentes”.
Uma fonte do órgão argentino confirmou à CNN que a informação foi recebida antes, mas não deu detalhes sobre a data. Posteriormente, o governo argentino não comunicou eventuais medidas sobre o assunto.
Por sua vez, Alberto van Klaveren, ministro das Relações Exteriores do Chile, indicou no X que “ocasionalmente surgem notícias não confirmadas sobre reservas minerais e de hidrocarbonetos” na Antártida, e destacou que o tratado de 1959 proíbe sua prospecção e exploração.
O governo russo não se pronunciou sobre os relatórios relativos às descobertas de hidrocarbonetos e não respondeu ao pedido de comentários da CNN.
Em janeiro, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, disse no lançamento de um novo complexo na base antártica russa Vostok (uma das cinco permanentes do país no continente) que as perfurações no gelo são realizadas desde os anos 70. Além disso, explicou que durante uma década estiveram paralisadas até que a comunidade internacional ficou segura de que a Rússia cumpria com os requisitos de proteção ambiental.
Klaus Dodds, especialista na Antártida e professor de geopolítica na Royal Holloway University em Londres, foi citado na audição do Parlamento do Reino Unido por preocupações expressas em uma carta sobre uma possível competência estratégica sobre os recursos da região.
O especialista também havia dito dias antes em uma mensagem no X que a descoberta era de 2020 e explicou o número de barris mencionado é realmente uma conversão de 70 bilhões de toneladas de hidrocarbonetos relatadas originalmente.
Em 2020, Rosgeo, o maior grupo de pesquisa geológica da Rússia, publicou um relatório no qual fala de “recursos potenciais de hidrocarbonetos” em bacias sedimentares estimadas em “aproximadamente 70 bilhões de toneladas”, descobertas em explorações realizadas pela empresa PMGE (Polar Marine Geosurvey Expedition), uma filial da Rosgeo.
Mesmo em 2012, quando a filial comemorava seu 50º aniversário, ela repassou seus estudos geológicos na Antártida e já relatava um potencial previsto de hidrocarbonetos que “chega a cerca de 70 bilhões de toneladas”.
A CNN tentou falar com representantes da Rosgeo para saber se tinham comentários sobre as suas últimas investigações, mas não recebeu resposta.
O que diz o Tratado Antártico
Em 1959, 12 países (Argentina, Austrália, Bélgica, Chile, Estados Unidos, França, Japão, Nova Zelândia, Noruega, Reino Unido, África do Sul e a então URSS) assinaram o Tratado Antártico em Washington.
Em seu artigo I, o tratado afirma que a Antártida deve “ser utilizada apenas para fins pacíficos”. O acordo também indica que a ciência estaria à frente de qualquer desenvolvimento ou assentamento na região.
Embora o texto assinale que os membros das Forças Armadas podem estar no continente, só estão habilitados para funções de apoio.
O texto faz parte do Sistema do Tratado Antártico, que por sua vez inclui um instrumento jurídico complementar, o Protocolo ao Tratado Antártico sobre Proteção do Meio Ambiente, assinado em 1991 e em vigor desde 1998. Em seu artigo 7, o documento proíbe “qualquer atividade relacionada aos recursos minerais, exceto a investigação científica”.
Neste contexto, as autoridades britânicas indicaram que não existem provas de que a Rússia esteja violando o tratado.
David Rutley, ministro das Américas e Caribe, e territórios ultramarinos do Reino Unido, respondeu à comissão parlamentar britânica que a Rússia tem um longo programa de mapeamento de geologia e as autoridades russas garantiram que as suas atividades na Antártida são pacíficas. Além disso, destacou que Moscou apoiou novas resoluções que reafirmam o compromisso com a extração mineral para outros fins que não os científicos. “Continuaremos monitorando essa situação”, acrescentou.
Definir a divisão entre o que é uma pesquisa científica e o que não é pode ser difícil, disse à CNN, Luis Valentín Ferrada, diretor do Departamento de Direito Internacional e do Programa de Estudos Antárticos da Universidade do Chile.
“Na prática é complicado, sobretudo em uma área como a geologia. Os geólogos dirão que o que estão fazendo é pesquisa científica, determinando quais elementos se encontram no fundo do mar ou nas pedras”, acrescentou.
Ferrada explica que debates similares no âmbito antártico surgem em explorações biológicas. Por exemplo, cientistas que investigam a sobrevivência de organismos em condições extremas podem obter resultados patenteáveis de uma empresa química. “Onde termina a pesquisa e onde começa o produtivo? É a mesma zona cinzenta que o geológico, a linha é difícil de traçar”, afirma.
Sobre as investigações russas, Ferrada disse que só há informações indiretas. “O ponto mais duvidoso é o que a Rússia sempre disse, que só faz pesquisa geológica. Não sei se é verdade, mas é o que manifesta”, explica.
O especialista também indicou que não se sabe o que aconteceu após as descobertas.
“Há um fato, factual, real, que em 2020 relataram algumas reservas. Ninguém o negou. A questão é saber o que aconteceu com essa investigação. Os testes podem ser feitos a partir de um navio, a uma profundidade de 2 mil ou 3 mil metros, são tentativas. Depois é preciso descer. Não sabemos se isso foi feito ou só fizeram os primeiros testes com sensores, sismógrafos”, aponta.
Dodds, da Universidade Royal Holloway, comentou no X que uma possível controvérsia pode surgir se nem todas as partes consultivas do tratado têm o mesmo entendimento do que significa “pesquisa científica”.
O Protocolo Antártico pode ser revisto a partir de 2048, a pedido das partes, 50 anos após a sua entrada em vigor, mas isso não significa que expire, mas desde então as partes consultivas podem convocar uma conferência de revisão do seu funcionamento.
Reivindicações de soberania
O Tratado da Antártica também reconhece a existência de reivindicações de soberania anteriores a 1959, mas na verdade não reconhece essa soberania ou reivindicações subsequentes.
A Argentina, que tem bases científicas no continente antártico, reivindica a soberania sobre um território de cerca de 1,5 milhões km2 (incluindo terra firme e águas territoriais), delimitado pelo paralelo 60° e o Pólo Sul; e os meridianos 25° e 74° de longitude oeste, de acordo com o Ministério das Relações Exteriores do país.
Essa área se sobrepõe às reivindicações do Chile (reclama soberania em uma área de cerca de 1,3 milhões km2 (entre os meridianos 53° e 90° de longitude oeste); e do Reino Unido (que afirma soberania sobre entre os meridianos 20° e 80° de longitude oeste).
Ou seja, a zona compreendida entre 53 e 74 de longitude oeste é reivindicada pelos três países
Outros quatro países (Austrália, França, Nova Zelândia e Noruega) também têm reivindicações de soberania em outras partes do continente, que não se sobrepõem entre si.
Reunião consultiva
As preocupações manifestadas pelos legisladores britânicos ocorreram dias antes da Reunião Consultiva do Tratado Antártico, que acontece em Kochi, na Índia, de 20 a 30 de maio, onde o tema pode ser o foco das reuniões multilaterais.
Questionado na audição parlamentar sobre se acredita na versão russa, o ministro Rutley afirmou que existem instâncias multilaterais, como a reunião em Kochi, nas quais o Reino Unido e os seus aliados deixam claras as suas posições sobre o cumprimento do Tratado, sobre o qual comentou que “tem sido imensamente bem-sucedido”.
Ferrada, da Universidade do Chile, assinala que as reuniões consultivas são “bastante esquematizadas” para discutir o conteúdo de documentos apresentados em períodos prévios, pelo que põe em dúvida que se apresentem temas novos, mas destaca a importância das “conversas de corredor” para discutir questões fora da parte formal.
Por sua vez, o ex-chanceler da Argentina, Andrés Cisneros referiu-se aos acordos internacionais com menos optimismo que Rutley.
Quanto ao respeito pelo Tratado Antártico, o ex-chanceler advertiu: “Sou muito cético sobre que a simples assinatura de um papel impeça que as grandes potências persigam seus interesses econômicos. À medida que a tecnologia avança e torna mais acessível a exploração rentável dos recursos, nessa medida se irá enfraquecendo a proibição do Tratado Antártico”, disse na quarta-feira (22) no programa Primeira Manhã da CNN na Espanha.