O carro da enfermeira Géssica Melo de Oliveira, de 32 anos, foi atingido por ao menos 13 tiros de fuzil durante a ação que terminou com a morte dela. Isso é o que aponta o laudo pericial criminal feito pelo Departamento de Polícia Técnico-científica, da Polícia Civil do Acre (PCAC), anexado na investigação do Ministério Público do Estado do Acre (MPAC).
O caso ocorreu em dezembro do ano passado na cidade de Senador Guiomard, interior do Acre. Equipes da Polícia Militar e do Grupo Especial de Fronteira (Gefron) perseguiram Géssica após ela furar um bloqueio policial em Capixaba, cidade vizinha.
De acordo com o Instituto de criminalística, foram utilizados dois fuzis com calibres 762 e 556, sendo o calibre 556 o que atingiu o maior número de vezes o veículo Peugeot 207, da enfermeira. O laudo ainda afirma que não foram disparados tiros de dentro para fora do veículo, somente de fora para dentro.
Inicialmente o Gefron afirmava que Géssica estava armada, fazia manobras perigosas que colocavam em risco a vida de outras pessoas e, por isso, atiraram no carro para pará-la. Após a morte, a polícia disse ter encontrado uma pistola 9 milímetros jogada próximo ao local do acidente. A arma é de uso restrito das forças armadas.
Na época do ocorrido, em nota, a Secretaria de Justiça e Segurança Pública do Acre (Sejusp) havia dito que foram efetuados cinco disparos em direção ao veículo. Contudo, a família afirmava que havia mais de dez perfurações no veículo. O carro foi retirado do local em cima de um guincho e, conforme a família, levado para a PRF-AC.
Indícios de fraude processual
A investigação do MPAC, conclui que houve indícios do crime de homicídio doloso, com intenção de matar, aliado ao crime de fraude processual, após os policiais inserirem uma pistola no local do ocorrido, dizendo pertencer à vítima. A possível fraude processual também ficou evidenciada pelo fato de os familiares da vítima terem demonstrado não haver qualquer indícios de que houve capotamento no veículo da enfermeira.
Walisson dos Reis Pereira, advogado da Géssica, afirma que os policiais mentiram, não houve confronto e eles mataram a mulher. “Foram soltos sob a alegação de que tem crianças menores de 12 anos e que não poderiam sobreviver sem eles. E os três filhos menores que a Jéssica deixou. Poderiam viver sem ela? É uma vergonha para a Polícia Militar do Acre, policiais forjarem confronto, matar uma pessoa inocente para alegar legítima defesa. Isso é uma vergonha para a Polícia Militar do Acre”, diz.
Pereira ainda esclarece que todos os disparos foram feitos de fora para dentro do veículo e a enfermeira morreu sem chance nenhuma de defesa. “É inadmissível que, em um estado democrático de direito, policiais militares, em nome do Estado, matem pessoas com tiros de fuzil pelas costas, plantam uma arma no local do crime, porque só foi encontrado DNA de homens, ou seja, DNA masculinos na arma. Então espero que, na forma da lei, eles paguem, porque ela deixou três filhos”, destaca.
O advogado da enfermeira, explica que o processo administrativo independe do processo criminal. Ele pede providências da corregedoria da Polícia Militar do Acre, mesmo antes da conclusão do inquérito. “Nós vamos lutar por justiça até o final, queremos a condenação desses policiais por homicídio triplamente qualificado e fraude processual”, assegura Pereira.
O advogado ainda evidencia que Géssica era mãe, uma pessoa trabalhadora, e nos laudos comprovam que ela não estava sob efeito de bebida alcoólica e nenhuma droga.
“Até hoje não foi aberto um processo de exclusão desses agentes fardados supostamente criminosos que marginalizam a Polícia Militar do Estado do Acre, da corporação. Porque o laudo agora comprova que eles simularam um confronto pra poder dizer que a morte dela foi legítima defesa. Então é um absurdo. Agora eu quero saber a resposta do comandante da Polícia Militar e do governador do Acre”, cobra Silva.
Policiais foram incorporados à PM
O diretor operacional da Secretaria de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), Marcos Franck, disse que os policiais envolvidos no caso, não estão mais no Gefron e foram incorporados a Polícia Militar em 28 de fevereiro deste ano.
“Existe uma investigação realizada pela Polícia Civil, quem preside esse inquérito policial é o delegado titular da circunscrição de Senador Guiomard. Sabemos que foram pedidas algumas perícias mas o procedimento ele é sigiloso. Nós não temos acesso a esse procedimento e nem tivemos acesso ao resultado da perícia. Os policiais, os dois policiais que foram presos eles saíram mediante por força de habeas-corpus e foram revertidos para o órgão de origem, saíram do GEFRON e foram devolvidos pra Polícia Militar. Estão exercendo funções administrativas no órgão, desde que eles saíram.”
A Polícia Militar disse que “Foi instaurado inquérito policial militar pela corregedoria da PMAC”.
O Diretor-geral da Polícia Científica, Sandro Martins, diz que com relação ao trabalho de perícia da Polícia Civil, o trabalho inicialmente foi concluído.
“No trabalho da perícia, a gente faz o local, fizemos todo o levantamento e produzimos uma peça que é o laudo pericial, aí esse laudo a gente encaminha uma cópia para o delegado do caso, e também para o Ministério Público, os órgãos oficiais que solicitaram. Com esse laudo, o delegado, no caso, ele vai usar também para fechar o inquérito dele. Ele fechou o inquérito e encaminha para a justiça. Aí encerra o trabalho, pelo menos a princípio da Polícia Civil. Se, no caso, a justiça solicitar uma reprodução simulada, aí a gente volta para o caso”, explica.
Segundo o advogado de Géssica, após a divulgação da conclusão da investigação do MP, é necessário aguardar a conclusão do inquérito policial que será entregue nos próximos dias para a justiça e após esses trâmites, o caso será julgado.
Entenda o caso
Géssica furou um bloqueio policial em Capixaba, foi seguida por uma viatura da Polícia Militar, que pediu reforço ao Gefron e a Polícia Rodoviária Federal (PRF-AC), até a cidade de Senador Guiomard, no interior do estado, onde terminou a perseguição. A vítima morreu após ser baleada 2 vezes durante a perseguição policial na BR-317.
A coordenação do Gefron informou que um policial da equipe viu a motorista com uma arma nas mãos e atirou em direção ao carro na tentativa de pará-lo. Após os disparos, no quilômetro 102, nas proximidades da entrada do Ramal da Alcoolbrás, a enfermeira perdeu o controle do veículo, entrou em uma área de mata e bateu o carro em uma cerca.
Em nota, a Secretaria de Justiça e Segurança Pública do Acre (Sejusp) disse que foram efetuados cinco disparos em direção ao veículo. Contudo, a família afirma que havia mais de dez perfurações no veículo. O carro foi retirado do local em cima de guincho e, conforme a família, levado para a PRF-AC.
“Minha filha filmou o carro em cima do guincho. Contamos dez buracos de tiros no carro dela”, confirmou.
Géssica tinha depressão e, possivelmente, teve um surto no sábado e saiu dirigindo em direção ao interior do estado. Após a morte, a polícia diz que achou uma pistola 9 milímetros jogada próximo ao local onde o carro parou. A arma é de uso restrito das forças armadas.
A família contestava a versão apresentada e dizia que a enfermeira não tinha arma de fogo. Dois militares, que estavam na ação foram presos em flagrante e, nessa segunda-feira (4), a Justiça decretou a prisão preventiva dos policiais durante audiência de custódia. O Ministério Público Estadual (MP-AC) pediu a conversão da prisão em flagrante em preventiva.
O MP-AC também instaurou, de ofício, um procedimento investigatório criminal para apurar possível crime de homicídio doloso que teria sido praticado pelos militares. A investigação ocorre independentemente da apuração anunciada pela Corregedoria da Polícia Militar do Acre e pela Polícia Civil.
Vista pela última vez
Vladirene foi a última pessoa da família a ver Géssica viva. Ela mora próximo da casa onde a enfermeira vivia e, inclusive, estava com os dois filhos dela, de 11 e 6 anos, no sábado. Ela relembra que ouviu a irmã tomar banho, orar e a viu saindo de casa.
Vladirene estava na varanda de casa quando viu Géssica sair com o carro. A última lembrança que ela tem da irmã é dela sorrindo. Géssica tinha ainda uma filha de 3 anos.
“Ela tomou banho, se arrumou, ficou muito bonita, tirou o carro da garagem, abriu a porta, colocou a mão em cima da porta, ficou olhando para a rua e ficou sorrindo. Ela ligou o som do carro, entrou e saiu. Não falamos nada, ela só sorriu. Em menos de três horas vi minha irmã morta”, lamentou.
Por causa da depressão, a parente diz que os familiares tentavam evitar a saída de Géssica de casa. Porém, no dia do crime, Vladirene conta que a irmã estava muito tranquila. “Os dois meninos dela estavam na minha casa e a menina com minha mãe no bairro Vila Acre. Ela passava de semanas dentro de casa só estudando para concurso da polícia. A casa dela estava muito arrumada, os livros arrumados em cima de uma mesa e tinha uma bíblia”, recordou.
Na manhã dessa segunda-feira, a família se reuniu com o secretário de Segurança Pública do Acre, coronel José Américo de Souza Gaia, para saber mais detalhes da ocorrência.
“Ele disse que chegou aos ouvidos dele que a Géssica tinha uma arma dentro do carro, mas ela não tinha arma. Usava uma pistola de uso exclusivo da polícia. Isso não vai ficar assim, não vou deixar, minha irmã está sendo tachada de bandida. Minha irmã nunca usou uma arma”, criticou.
A agricultora afirmou que a família vai continuar em busca de justiça pela morte da enfermeira.
“Estamos pedindo socorro para todos os lados porque foi uma morte muito brutal e não pode ficar no esquecimento. Géssica era a caçula de cinco irmãos, era uma mãe muito dedicada, preferia cuidar dos filhos. Temos que falar para não ficar no esquecimento”, disse.
Diagnóstico
Ainda segundo a parente, a enfermeira teve o primeiro surto há um ano e meio. Ela foi levada para o Pronto-Socorro de Rio Branco e ficou internada durante cinco dias. Ao sair, Vladirene disse que a irmã não quis mais tomar os remédios.
“Ela disse que estava curada, que não tinha nada. Passei ainda uma semana dando a medicação para ela, mas simplesmente parou de tomar. O sonho dela era passar no concurso da Polícia Federal, estava direto para isso”, finalizou.
No Judiciário é possível ver que no começo de novembro deste ano, a enfermeira teve um surto em uma farmácia de Rio Branco. Ela estava com o mesmo carro que dirigia no sábado, quando foi morta. Inclusive, uma medida protetiva foi dada em desfavor dela porque os filhos, de 3, 6 e 11 anos de idade estavam com marcas de agressão. No processo que corre no Juizado Especial Criminal em Rio Branco, Géssica ficou proibida de se aproximar dos filhos. Nos relatos, há informações de surtos da enfermeira.
O que diz a polícia
Ainda no domingo (3), a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp-AC) lançou uma nota sobre o caso e o governo do estado uma segunda. Na primeira, afirmou que “durante a ocorrência, foi possível visualizar parte de um braço empunhando uma arma de fogo. Neste momento, diante do risco iminente à integridade física da equipe policial, foram efetuados cinco disparos em direção ao carro.”
Já em uma segunda nota, o governo do Acre confirmou que dois policiais estavam detidos no batalhão da PM e que as investigações se dariam de forma imparcial.
“Garantimos ainda uma investigação imparcial e célere, de modo que a sociedade tenha uma resposta o quanto antes.”
O Grupo Especial de Fronteira (Gefron) afirma que Géssica estava armada, fazia manobras perigosas que colocavam em risco a vida de outras pessoas e, por isso, atiraram no carro para pará-la. Ainda de acordo com o grupo, a perseguição ocorreu após ela furar um bloqueio policial em Capixaba, cidade vizinha.
O g1 também conversou com uma amiga, que preferiu não ser identificada. Ela contou que a enfermeira foi deixada no hospital pelos próprios policiais e chegou como vítima de acidente de trânsito. As perfurações de bala, segundo ela, foram notadas no hospital.
“Quando ela deu entrada no hospital, não foi passado para os médicos plantonistas que ela tinha sido vítima de bala, foi dito que tinha sido vítima de acidente de trânsito. Durante a reanimação, constataram perfurações”, afirmou.