Alvo de uma operação da Polícia Federal que apura suspeitas de desvio de dinheiro público, o governador do Acre, Gladson Camelli (PP), passou a receber centenas de pequenos depósitos em espécie em suas contas desde que assumiu o cargo, em 2019, segundo apontam as investigações. As cifras enviadas, de acordo com a PF, saltaram de R$ 149 mil um ano antes de assumir para R$ 880 mil em 2021, o que representa um aumento de 490% no período.
A quebra de sigilo bancário do governador mostrou que os depósitos eram feitos em pequenos valores, nunca acima de R$ 50 mil, para não chamar a atenção dos órgãos de controle. Cifras acima desse valor precisam ser obrigatoriamente comunicados pelo banco ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). A defesa do governador nega qualquer irregularidade.
Em nota, os advogados do governador disseram que “a investigação caminha sem conclusão há dois anos e, ao final, servirá para comprovar sua inocência”. A defesa também declarou que “o inquérito está todo ele baseado em relatórios do COAF ilegais e desprovidos de qualquer coerência”.
Para a ministra Nanci Andrighy, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que autorizou a terceira fase da Operação Ptolomeu, o volume de depósitos, que totalizam R$ 2,3 milhões, “revela-se alto e pode, em tese, denotar prática levada a termo com o suposto fim de dissimilar a origem dos recursos”. A PF chegou a pedir a prisão preventiva de Cameli, mas Andrighi negou o pedido, após parecer contrário da Procuradoria-Geral da República (PGR).
A ministra aponta indícios de existência de uma “organização criminosa complexa”, que estaria “causando graves prejuízos ao erário” e registra que, de acordo com a PF, o governador “seria o suposto chefe da ORCRIM e beneficiário central das vantagens indevidas auferidas”. Essa organização envolveria uma rede de empresas de amigos e familiares.
“A Polícia Federal aponta uma série de recorrentes operações de crédito em espécie nas contas bancárias do governador G.L.C., valores, em sua maioria, depositados por parentes, agentes públicos e empresas nas quais possui participação societária, montante esse fracionado, em aparente tentativa de ocultação de origem e comunicação aos órgãos de controle”, afirma trecho da decisão de Andrighy.
Além dos depósitos bancários, a ministra aponta ainda “suspeita de que as transações imobiliárias apontadas (..) tenham envolvido recursos públicos supostamente desviados do Estado do Acre e que teriam sido objeto de crimes de lavagem de capitais por parte da organização criminosa investigada nestes autos”.
Um dos fatos citados é que a empresa Rio Negro, que pertence ao irmão do governador, Gledson Cameli, foi subcontratada por outra companhia que tinha um contrato com o governo estadual, a Murona. No mesmo dia em que recebeu R$ 200 mil, a Rio Negro utilizou esse valor para dar entrada em um “apartamento de luxo” em São Paulo.
Depois, o valor do financiamento teria sido pago “com verbas supostamente desviadas” por outra empresa, a Colorado. Cameli demonstrou intenção de passar o registro do apartamento para uma empresa sua, de acordo com mensagens obtidas pela PF.
Um outro apartamento foi comprado em Brasília por uma empresa que tem o pai do governador como sócio administrador. Entretanto, a PF afirma que o verdadeiro dono seria Cameli, porque ele posteriormente emitiu notas fiscais de serviços destinados ao imóvel.
Veículos comprados em sequência
A PF também levanta suspeitas sobre a aquisição de carros, que “teriam sido negociados com o escopo de ocultar e dissimular a origem de recursos ilícitos supostamente desviados”. Ao todo, a PF aponta negociações de 11 veículos de luxo.
Em um dos casos, um amigo de Cameli pagou a entrada de R$ 110 mil de uma BMW que foi comprada pela esposa do governador, Ana Paula Cameli. O pagamento ocorreu um dia após a empresa de Souza receber recursos de uma outra empresa com contrato com o governo estadual, a Atlas, para realizar uma decoração natalina.
“Valores desviados do contrato de coração natalina de 2020 foram utilizados para pagar parte da BMW X4, carro de luxo adquirido pelo governador do Acre”, afirma a representação da PF.
Um Jaguar E-Pace, avaliado em R$ 250 mil, foi comprado por uma empresa de engenharia “em benefício do governador e da sua esposa”. Cumprindo mandados de busca e apreensão, a PF encontrou nota fiscal do veículo e comprovante de pagamento de IPVA debitados na conta corrente do governador, além de proposta de seguro em nome de sua esposa. A empresa também pagou uma parcela de R$ 52,6 mil do financiamento de uma Toyota Hilux SW4.
Outro veículo, um Amarok, “teria sido adquirido com possível desvio de verba pública e pertenceria, de fato, ao Governador, embora estivesse formalmente registrado em nome da empresa Colorado”, de acordo com a decisão do STJ.
Há casos em que a compra dos veículos não foi esclarecida, muitas deles ocorrendo em sequência. Uma Pajero HPE, avaliada em R$ 256 mil, foi paga à vista, “não tendo o proprietário da concessionária esclarecido, com segurança, a origem desse recurso”. Um Toyota Corolla Altis foi adquirido por R$ 136 mil, mas a PF não encontrou os pagamentos nas contas de Cameli e sua esposa.
Um Pajero Sport foi comprado por R$ 270.000,00, mas houve comunicação ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) por “suposta aquisição subfaturada”.
Cartões de crédito
Um relatório da PF também apontou “total incompatibilidade” dos valores gastos por Cameli com cartões de crédito e sua renda declarada. Para a corporação, há uma relação entre os crimes investigados e o “crescimento patrimonial sem lastro” do governador.
De acordo com o relatório, o governador e a sua esposa gastaram R$ 2,9 milhões com cartões de crédito entre 2018 e 2019. No mesmo período, Cameli declarou à Receita Federal rendimentos de R$ 1,2 milhão. “Assim, apenas com cartão de crédito, o Governador gastou pouco mais de um milhão e setecentos mil reais acima da sua capacidade financeira”, afirma o texto.
A PF ressalta que Ana Paula é listada como dependente do governador em suas declarações de Imposto de Renda, “e, portanto, não possui fonte de renda apta a justificar a diferença dos valores observado”.
A corporação ainda indica indícios de lavagem de dinheiro: cerca de R$ 145 mil em faturas dos cartões teriam sido pagos por “terceiros”, e outros R$ 345 mil teriam sido pagas por “pessoas não identificadas”. “Estas duas descobertas indicam a possibilidade real de lavagem de capitais por parte de Gladson Cameli”, afirma a PF.