A família de Yuri diz que o iFood entrou em contato no dia 26, onze dias após o acidente, e não houve nenhum tipo de apoio psicológico. E afirma que a “situação irregular” do jovem é, na verdade, corriqueira entre entregadores: a criação de perfis alternativos para contornar os bloqueios arbitrários da plataforma e poder continuar trabalhando. Essa é uma reclamação constante dos trabalhadores: é pauta nacional desde o primeiro Breque dos Apps em 2020 – e o iFood já foi condenado na justiça por banir um entregador sem apresentar justificativa.
Em novembro de 2021, Yuri criou uma conta com o CPF de sua namorada, mas com seu nome, foto e CNH reais. A expectativa era usá-la quando a conta original fosse bloqueada – o que aconteceu no dia 9 de maio de 2022. A família não sabe o motivo e diz que a suspensão foi indevida. Após o bloqueio, naquela semana, Yuri passou a usar a conta com o CPF da namorada. Era ela que estava em uso quando ele se acidentou.
No dia 17 de maio, a família viu que a conta dele e a com os dados da namorada estavam bloqueadas. No dia 21, a família entrou com recurso apenas contra o bloqueio da conta “principal” do Yuri. Dia 26, cinco dias depois, o iFood ligou para a família e respondeu ao recurso com a desativação definitiva da conta principal de Yuri por suposta “má conduta dentro da plataforma”.
Segundo Luciana, irmã de Yuri, o iFood não informou os parentes sobre a inconsistência de dados. A família afirma que a empresa entrou em contato exigindo uma série de comprovações sobre o aplicativo em que o entregador estaria logado no momento em que sofreu o acidente. “A preocupação deles era se ele atendia por mais de um aplicativo, se eu saberia dizer em qual ele estava logado, se ele tinha esposa e filho e como era o relacionamento meu com ele, se era bom. Um absurdo”, ela me contou. A família diz que, longe de oferecer suporte, o iFood foi apenas “invasivo e sem empatia”.
A orientação foi que a família procurasse diretamente a seguradora MetLife – que negou o pagamento do seguro. A alegação da negativa é de que não houve comprovação de que o acidente ocorreu durante uma rota de entrega da iFood. A seguradora também alegou que o iFood não pagou o prêmio, valor pago pelo segurado para ter acesso à proteção. A empresa não explicou ao Intercept o não pagamento do prêmio.
Fundamentação questionável
“O iFood aplica vários bloqueios. Se você não rodar, se quem recebeu falar que não recebeu, se demorar”, explicou Luciana Fontes, irmã de Yuri. “Ele foi bloqueado porque morreu no caminho da entrega”.
Na saga para tentar comprovar que Yuri morreu entregando comida, a família se deparou com mais uma dificuldade: ao extrair os dados das viagens das duas contas usadas pelo entregador, perceberam que nenhuma registrou a entrega do dia 15 de maio. A última viagem registrada na conta com o CPF da namorada de Yuri aconteceu às 22h48 do dia 14 de maio.
Ao Intercept, no entanto, uma gerente e uma funcionária do restaurante Delírio Tropical, registrado na nota fiscal do pedido levado por Yuri, confirmam a entrega naquele domingo. “Quando informaram para a gente que ele tinha falecido, entramos para ver quem era o entregador. A gente lembrava do rosto dele”, me disse uma supervisora de entregas. Ela salientou que o restaurante trabalha com a iFood há algum tempo e “às vezes acontece do motoboy ter cadastro com o nome de uma outra pessoa. Mas era a foto dele mesmo, porque a gente chegou a ver no dia quando ele veio a falecer”. Os funcionários que confirmaram a história pediram para não ser identificados.
Para advogados e especialistas consultados pelo Intercept, a fundamentação do iFood para negar o pagamento do seguro é questionável. Primeiro porque o próprio banimento arbitrário – e sem possibilidade de defesa – contraria a lei. “O usuário tem o direito de questionar o motivo pelo qual está sendo excluído”, explicou Renan Kalil, procurador do trabalho no Ministério Público do Trabalho de São Paulo, o MPT-SP.
‘Enquanto era conveniente, o Yuri podia rodar burlando o sistema na cara deles. Mas na hora do seguro, aí não pode’.
Ele lembrou que, recentemente, o Tribunal Superior do Trabalho condenou a Uber a pagar uma indenização à família de um motorista assassinado enquanto trabalhava. “O TST entendeu que a pessoa estava prestando serviço”, disse Kalil. Para o procurador, é possível traçar um paralelo entre os dois casos. “Objetivamente, existia uma pessoa que estava prestando serviços para a plataforma. O iFood não é uma empresa de tecnologia. É de transporte de produtos alimentícios”.
Além disso, para o advogado Daniel Soares Mayor Fabre, doutorando na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, o uso de outro login no momento do acidente “não significa que não existe relação trabalhista ou civil que justifique não dar o seguro”. Segundo ele, “um recurso na justiça do trabalho ou uma investigação do MPT ou do próprio Ministério Público poderia delinear melhor essa situação”.
Vitor Araújo Figueira, professor de Economia da Universidade Federal da Bahia e coordenador do projeto Caminhos do Trabalho, parceria entre o MPT e UFBA para fornecer auxílio jurídico aos entregadores, reforça o argumento. Para ele, “a questão do CPF não é relevante”. Quanto ao fato de as viagens não estarem registradas, ele diz que o caminho é requisitar, na justiça, uma perícia da plataforma para saber em qual conta foi feita a viagem. O iFood não negou em seu comunicado que a viagem aconteceu. Disse apenas que ela foi feita de forma irregular.
“Enquanto era conveniente, o Yuri podia rodar burlando o sistema na cara deles. Mas na hora do seguro, aí não pode”, reclamou Luciana.
O acidente de Yuri ocorreu perto de uma cabine da Polícia Militar. Os policiais afirmaram que o entregador escorregou e caiu sozinho, mas os familiares e entregadores da região, amigos de Yuri, afirmam que foi um atropelamento e que o motorista fugiu sem prestar socorro. Eles fizeram um protesto em maio cobrando que o caso fosse investigado e que as imagens do acidente, registrado em vídeo, fossem periciadas. Isso não aconteceu, segundo a família.
O caso está sendo investigado na 32ª Delegacia de Polícia em Taquara, Rio de Janeiro. Foram chamados a prestar depoimento um motorista de ônibus presente no vídeo que viralizou e outros dois motoristas. Até agora, não há suspeitos apontados na investigação.
The Intercept Brasil