Há um sofá bloqueando a entrada de uma das casas do subúrbio de Saudades, no oeste catarinense. A cena destoa. Numa cidade de 10 mil habitantes despreocupada com segurança, as residências não têm muro, cerca ou portão. Foi o jeito encontrado pela família do jovem de 18 anos que invadiu uma creche e matou cinco pessoas na terça-feira para proteger o imóvel e deixar a cidade.
Naquele dia, Fabiano Kipper Mai fez a última refeição em casa por volta das 9h30m, minutos antes de cometer o atentado. Estava em seu horário de descanso na empresa em que trabalhava, uma fabricante de material esportivo. Segundo colegas, ele costumava chegar pontualmente às 5h no trabalho.
Solícito e competente, era tido como exemplo de produtividade na confecção. Por outro lado, não batia papo com ninguém.
— Fazia o trabalho de duas pessoas, e quando terminava a tarefa mais cedo, ainda ajudava os outros que não tinham terminado — diz uma colega do setor, que não quis se identificar.
Quem estudou com ele na Escola Estadual Rodrigues Alves conta que o rapaz não tinha o mesmo empenho nos estudos. Havia repetido de ano e abandonado o último período letivo durante a pandemia, quando as aulas passaram a ser on-line.
— Ele não tinha problemas disciplinares, mas os professores comentavam que ele não tinha atitude alguma em sala de aula. A escola não era o mundo dele. Então recomendamos um psicólogo, mas não sentimos muita firmeza (de que eles aceitariam) — diz Rosilene Mohr, diretora na época em que o garoto estava no Ensino Fundamental.
No colégio, o jovem era conhecido por frequentemente se sentar sozinho em um dos bancos, embaixo de um mural. Tinha, segundo a diretora, “sempre um olhar fixo no chão”.
Conhecidos dizem que era comum ver Fabiano andando olhando para o chão e com as mãos nos bolsos. O jovem se afastou dos amigos nos últimos dois ou três anos. Antes, costumava acompanhar os meninos do bairro nos passeios de bicicleta pela cidade. Quando participava de encontros na casa de algum deles, pouco falava, e as interações se limitavam a risadas de piadas dos outros. Isso quando não era ele o alvo das brincadeiras.
— O pessoal “zoava”ele porque ele era alto, estranho — afirma um ex-companheiro de escola.
Antes de invadir a creche, o agressor deixava sua casa somente para o trabalho. Diferente de outros garotos de 18 anos, ele não tem Facebook, Twitter, Instagram nem celular. Passava o dia no computador. Era talentoso, segundo os amigos, no Free Fire, um jogo de ação em que vários jogadores interagem ao mesmo tempo.
Dúvidas sobre motivação
A introspecção do jovem levou vizinhos e conhecidos a se perguntarem nos últimos dias qual teria sido sua motivação. A resposta pode vir do notebook e do pendrive apreendidos pela polícia e que estão sendo analisados por peritos. Os investigadores querem saber o que motivou o crime e se o jovem tinha cúmplices ou foi incentivado por outras pessoas.
Sob custódia do Estado e com prisão preventiva decretada pela Justiça, ele não recebeu a visita dos pais no hospital, onde está internado após ter tentado se matar com um corte no pescoço no local do crime. Seu quadro clínico teve boa evolução, e ele não está mais sedado, segundo o boletim médico divulgado na noite de anteontem. Um bebê de 1 ano e 8 meses, que teve o pulmão perfurado, também segue internado.
Lucas Goulart, doutor em psicologia social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisador de comportamento extremista em fóruns anônimos da internet, faz um alerta para o caso de Saudades.
Ele diz que, embora ainda não seja possível afirmar que o agressor tenha tido contato com esse tipo de espaço virtual, o crime tem o padrão de “terrorismo incel” — abreviação para “celibatários involuntários”, em inglês. Incels são definidos como homens ressentidos que fomentam ódio contra mulheres em fóruns na internet. Eles culpam as mulheres por não conseguirem encontrar uma parceira romântica e sexual. Diversos atentados em escolas pelo mundo nos últimos anos tiveram indícios desse tipo de comportamento.
— O choque é um aspecto central para esses fóruns anônimos, porque funciona sob uma lógica da internet. Em meio a tantas histórias chocantes, só coisas muito extremas acabam se sobressaindo, e é nisso que eles têm interesse — diz Goulart.
“Fantasia de dominação”
O pesquisador, no entanto, afirma ser preciso focar nos meios de prevenção e tratamento para esse tipo de comportamento, que, segundo ele, nada tem a ver com videogames.
— Existe, sim, um subgrupo que provém desse mundo, que usa dessa fantasia masculina de dominação e violência — afirma.
Para o pesquisador, a melhor forma de diminuir esse tipo de atentado é ampliando a rede pública de saúde mental coletiva e assistência social. Os pais e educadores, diz ele, precisam ter mais acesso e informação sobre esse tipo de serviço para que possam identificar padrões e recorrer a um tratamento.