O empresário Kalil Bittar, ex-sócio de Fábio Luís Lula da Silva, o “Lulinha”, e um dos alvos da operação da Polícia Federal (PF) que mira superfaturamento em contratos de prefeituras paulistas para aquisição de material escolar, afirma, segundo sua defesa, estar morando em Portugal há dois anos e que recebeu dinheiro da principal figura do esquema, André Mariano, como contrapartida a serviços de tecnologia, e não para atuar como lobista da Life.
Nesta quinta, agentes cumpriram mandados de busca e apreensão em um endereço relacionado a ele em um conjunto do Lago Sul, em Brasília (DF), mas não o encontraram. A Justiça autorizou ainda a quebra dos sigilos fiscal, bancário e telefônico de Kalil entre janeiro de 2021 e agosto de 2025, assim como a apreensão do seu passaporte. A operação, em parceria com a Controladoria-Geral da União (CGU), terminou com cinco pessoas presas e mais de 50 ações em três estados.
Tanto Kalil quanto Carla Ariane Trindade, ex-nora do presidente Lula (PT), casada por 19 anos com Marcos Cláudio Lula da Silva, são apontados pela polícia como parceiros de Mariano no esquema. A função deles seria a de manter influência na liberação de verbas do Ministério da Educação que bancam a aquisição de livros e kits de robótica pelas prefeituras de cidades como Sumaré, Limeira e Hortolândia. Esses contratos seriam firmados com a Life por preços abusivos, até 35 vezes acima do valor de mercado, a partir de fraudes e com a conivência de servidores municipais.
A defesa de Kalil afirma que ele é amigo de Carla há mais de 30 anos, mas “jamais fez a dita prospecção de negócios, em especial com áreas do setor público” para a Life. O termo consta no mandado de busca que está sob sigilo, obtido pelo GLOBO. “O senhor Kalil, há mais de dois anos, transferiu residência para Portugal, de onde desenvolve suas atividades profissionais, todas elas exclusivamente relacionadas ao setor privado”, afirma nota enviada pelo advogado Roberto Bertholdo.
A PF narra que o primeiro contato entre Mariano e Kalil teria ocorrido em dezembro de 2021, quando houve o encaminhamento de um edital da prefeitura de Hortolândia antes da sua publicação oficial.
Uma das mensagens apreendidas, segundo consta no inquérito, mostra o dono da Life apostando na maior influência do ex-sócio de Lulinha em ministérios do atual governo e em “estados do PT”. Entre 2022 e 2024, Mariano fez transferências bancárias para Kalil na ordem de R$ 150 mil, incluindo contas da esposa do empresário. Ele também teria doado um veículo BMW 540I, de propriedade da Life. Houve uma tentativa de transferir o carro para a empresa de Kalil, o que acabou não ocorrendo.
Bertholdo não soube precisar ainda o montante exato recebido por Kalil, mas alega que “os recursos recebidos foram por conta de prestação de serviços relacionados ao desenvolvimento de produtos de tecnologia, não havendo qualquer ação relacionada a atividades comerciais e/ou mercantis da empresa sob investigação”.
Quanto ao veículo supostamente doado, a defesa de Kalil sustenta que ele pegou o carro emprestado “em regime de eventualidade” e que outras pessoas também fizeram uso dele nesse meio tempo. “Em determinado momento aconteceu a tentativa de aquisição do veículo pelo senhor Kalil, negociação que acabou não se concretizando em virtude do não acordo entre as partes quanto ao valor e forma de pagamento”.
A dita influência de Kalil com o governo Lula teria aparecido ainda em uma comitiva do governo brasileiro à China, diz a PF. Em junho de 2024, ele esteve em uma reunião de negócios da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex Brasil), em meio à viagem do vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) ao país asiático.
A defesa do empresário afirma que ele não integrou a comitiva do governo federal e que, “em sua atual vida profissional, o senhor Kalil tem ido à China em algumas oportunidades para tratar de assuntos relacionados às áreas de tecnologia e comunicação”. “Em nenhuma das suas idas à China o senhor Kalil tratou de qualquer assunto que diga respeito a atividades relacionadas ao setor público brasileiro”, declarou em nota.
O GLOBO busca contato com a defesa de André Mariano e de Carla Trindade.
Agendas no MEC
Carla teria sido apresentada ao suposto líder da organização criminosa por Kalil e pelo secretário de educação de Hortolândia, Fernando Moraes, preso preventivamente nesta quinta. Arquivos digitais de Mariano, que usam codinomes como “amiga de Paulínia”, em referência à cidade paulista, e “nora”, apontam que ela seria responsável por solucionar pendências em Brasília. A propina, por sua vez, era tratada como “café” e oriunda de saques em espécie com doleiros, que mantinham empresas de fachada para lavagem de dinheiro.
“Ao menos duas vezes, Carla teria ido a Brasília com passagens custeadas por André Mariano”, aponta trecho da decisão que autorizou a operação da PF. “A dinâmica dos agendamentos, muitas vezes corroborados por outros arquivos, demonstra que Carla defende os interesses privados de Mariano junto a órgãos públicos, principalmente na busca por recursos e contratos.”
O ponto de contato em Brasília seria o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), que libera recursos para as prefeituras bancarem a aquisição de produtos e melhorias nos municípios. Apesar disso, o pedido de operação da PF não lista nenhum integrante do governo federal entre os investigados, dando a entender que, ao menos por ora, os agentes públicos envolvidos no esquema atuam em instâncias inferiores.
Mariano teve pelo menos duas reuniões com a atual presidente do FNDE, Fernanda Pacobahyba. Em dezembro de 2023, o dono da Life esteve acompanhado do secretário de educação de Hortolândia. A outra reunião, de maio de 2024, que tratou especificamente de “livros paradidáticos, material para alunos e bibliotecas”, teve a presença de outros dois representantes de empresas do setor educacional.
Histórico
Kalil foi sócio de Fábio Luís, o Lulinha, na Gamecorp, empresa produtora de conteúdo de jogos eletrônicos que ficou conhecida por uma investigação, posteriormente arquivada, sobre aportes suspeitos da Oi/Telemar. Ele é irmão de Fernando Bittar, que constava como dono do sítio de Atibaia em escrituras públicas.
Kalil e Fernando são filhos do ex-prefeito de Campinas, Jacó Bittar, um dos fundadores da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e do PT. Em 2016, o empresário apareceu em grampos da Lava Jato usados como prova de que o sítio seria, na verdade, de propriedade do presidente e de sua falecida esposa, Marisa Letícia.
Carla foi casada com Marcos Cláudio, filho de Marisa Letícia adotado por Lula, entre os anos de 1991 e 2010. O casal divorciado deu um neto ao presidente, Thiago Trindade, que é militante do PT. Segundo registro divulgado pelo jornal “O Estado de S. Paulo”, o enteado do presidente estava na casa da ex-mulher no momento da operação.


