Queixas antigas: como o Pix se tornou motivo de atrito na relação entre Brasil e EUA

(Marcello Casal Jr. / Agência Brasil)

BRASÍLIA (Reuters) – A ofensiva do governo Donald Trump contra o Pix expôs um incômodo silencioso que há anos colocava o Banco Central do Brasil no radar dos Estados Unidos: empresas norte-americanas gigantes como Mastercard e Visa tendo suas receitas afetadas pelo popular sistema de pagamentos instantâneos, visto como um rival estatal em ascensão meteórica.


O duplo papel do BC como operador e regulador do Pix já era questionado inclusive junto a organismos multilaterais, e a suspensão do serviço de pagamentos via WhatsApp, da Meta, pouco antes do lançamento do Pix no país reforçou a percepção entre os norte-americanos de viés na atuação do BC, segundo fontes ouvidas pela Reuters.


A insatisfação, que ganhou contornos concretos com a inclusão do Pix em uma investigação comercial aberta em julho pelos EUA sobre práticas comerciais brasileiras consideradas desleais, também teve como pano de fundo um desconforto político diante de esforços sinalizados pelo grupo de nações emergentes Brics para buscar alternativas ao dólar, destacaram as fontes.


O foco do governo Trump no Pix despertou reações intensas no Brasil, onde o intenso uso do sistema, com seus mais de 177 milhões de usuários, o transformou em um dos raros consensos em uma sociedade profundamente polarizada politicamente.


“Defendemos o Pix de qualquer tentativa de privatização. O Pix é do Brasil. É público, é gratuito e vai continuar assim”, disse em discurso da Independência, em setembro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que viu as investidas comerciais de Trump ajudarem a impulsionar sua popularidade.


O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou que novos sistemas de pagamento podem desafiar os interesses das empresas de cartões, mas frear sua evolução não faz sentido. “É o mesmo que defender o telefone fixo em detrimento do celular,” afirmou a uma rádio em julho.


Autoridades brasileiras nunca haviam expressado indignação contra as investidas ao Pix de forma tão enfática, mas o país já estava há anos ciente da frustração das empresas norte-americanas com o sistema de pagamento brasileiro, segundo sete fontes ouvidas pela Reuters — uma realidade que se verificava mesmo quando a correlação de forças políticas estava trocada nos dois países, com um governo de direita no Brasil e com a Casa Branca sob o comando dos democratas.


O mesmo Escritório do Representante Comercial dos EUA (USTR) que incluiu o Pix em sua investigação da Seção 301 já havia destacado em seu relatório anual de 2022, sob a administração do presidente democrata Joe Biden, que monitorava de perto o papel duplo do BC como operador e regulador do sistema.


Reforçando preocupações semelhantes, o Conselho Empresarial dos Estados Unidos para Negócios Internacionais (USCIB) — cujo conselho inclui Ravi Aurora, vice-presidente sênior de políticas públicas globais da Mastercard — apoiou a investigação do governo Trump em um documento público de agosto.


Mas o descontentamento do USCIB já havia se materializado em dezembro de 2021, após o primeiro aniversário do Pix, quando o conselho enviou carta à divisão de concorrência da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) questionando a liderança do BC no sistema, disseram duas fontes à Reuters.


“O USCIB defende há anos que o Brasil comprometa o Banco Central a implementar medidas eficazes para lidar com seu conflito de interesses”, disse Alice Clark, vice-presidente sênior de Comércio, Investimento e Digital da associação, referindo-se ao fato de que, enquanto opera o Pix, o BC também atua como único regulador sistêmico do setor financeiro, definindo condições de entrada, padrões operacionais e estruturas de precificação para todos os arranjos de pagamento.


O USCIB defende que o Pix seja sujeito à regulação e supervisão de um órgão independente de forma equivalente à imposta aos agentes privados. Procurada, A OCDE não comentou o assunto.


Documentos recentes enviados ao governo dos EUA também mostram que a Câmara de Comércio dos EUA manifestou as mesmas queixas sobre o Pix, enquanto o Conselho da Indústria de Tecnologia da Informação (ITI) — cujos membros incluem Visa, Mastercard, Meta, Apple e Google — afirmou que o BC brasileiro usa seu papel duplo para favorecer seu próprio produto, incluindo exigir que todos os bancos participantes exibam o Pix de forma destacada em seus aplicativos.


“Isso não é um desenvolvimento de mercado orgânico, mas uma exigência regulatória que parece destinada a direcionar a escolha do consumidor”, disse o ITI.


O BC vem defendendo publicamente seu papel como agente neutro fornecendo infraestrutura digital pública, ressaltando que não lucra com o Pix, mas permite que o mercado se desenvolva de forma mais competitiva, mesma posição adotada em resposta a preocupações do passado, afirmaram as fontes.


Outro argumento sempre destacado pela autarquia é o de que o Pix incluiu mais de 70 milhões de pessoas no sistema financeiro, parte das quais também passaram a usar cartões.


Dados confirmam essa realidade: transações com cartões continuaram a crescer após o lançamento do Pix, embora sua participação no total de pagamentos tenha caído drasticamente.


Atualmente, o Pix responde por 51% das transações no Brasil em quantidade. Desde seu lançamento, a fatia dos pagamentos com cartão de crédito caiu de 20% para 14%, e a dos cartão de débito, de 26% para 11%, de acordo com estatísticas do BC.


Nos primeiros anos do Pix, a Mastercard — que detém 51% do mercado de cartões no país, segundo dados da NORBr — foi quem mais duramente criticou, em privado, o papel duplo do Banco Central, disseram as sete fontes à Reuters.


Procurados pela Reuters, Mastercard e BC não responderam a pedidos de comentários.
As queixas de longa data agora se transformaram em ações concretas por parte de uma Casa Branca mais receptiva a argumentos libertários e refratária a regulamentações estrangeiras em setores dominados por empresas norte-americanas, disseram três fontes.


Outros grandes mercados emergentes, como Índia, Tailândia e México, também criaram sistemas semelhantes, e o Qris, da Indonésia, chegou a ser citado pelos EUA neste ano como uma possível barreira comercial danosa a companhias norte-americanas.


Mas nenhum deles atingiu o crescimento meteórico do Pix, que, lançado no final de 2020, ultrapassou 100 transações por usuário já no segundo ano de operação — a mais rápida taxa de adoção no mundo para sistemas do tipo, segundo dados do Banco de Compensações Internacionais (BIS), conhecido como o banco central dos BCs.


Pagamentos com Whatsapp suspensos

Parte da insatisfação de gigantes norte-americanas também tem raízes na suspensão pelo BC do sistema da Meta de pagamentos via WhatsApp apenas oito dias após seu lançamento, em junho de 2020, poucos meses antes de o Pix ser implementado no Brasil, disseram cinco das fontes ouvidas pela reportagem.


Na época, a Meta se associou a Visa e Mastercard, já licenciadas pelo BC, para realizar transferências. Também escolheu a Cielo, então líder no mercado de adquirência, como única processadora dos pagamentos que seriam feitos pelo popular aplicativo de mensagens, que é usado por praticamente todos os brasileiros com celular.


Embora a Meta tenha se valido de uma brecha regulatória que permitia que operasse sem licença até atingir certo porte, o BC avaliou que a ampla base de usuários do WhatsApp poderia alavancar rapidamente seu serviço de pagamentos e concentrar o mercado, contrariando esforço regulatório iniciado na década de 2010 para ampliar a concorrência no setor.


“O fato de isso tudo ter ocorrido num período de tempo próximo ao lançamento do Pix fez com que houvesse interesses diversos a apontar essa coincidência e dizer que havia algum interesse escuso”, disse uma das fontes. “Uma queixa completamente falsa. Você tinha um caso anticoncorrencial de livro-texto”, acrescentou.


O BC liberou transferências entre usuários dentro do aplicativo em março de 2021.
As transações com cartões via WhatsApp ganharam luz verde dois anos depois, após a empresa ter apresentado um modelo de negócios que também envolvia outras empresas adquirentes — e num momento em que o Pix já assumira, com folga, a dianteira das transações totais de pagamento no Brasil.


A Meta, que não comentou o assunto quando procurada pela Reuters, descontinuou transferências entre cartões de débito no WhatsApp no fim do ano passado, alegando que daria foco a soluções baseadas no Pix.


Brics e o desafio ao dólar

O desconforto de Washington também reflete inquietação com esforços verbalizados pelo grupo de economias emergentes Brics para reduzir a dependência do dólar.


Três fontes disseram à Reuters que a insatisfação foi semeada antes mesmo da eleição de Trump, quando a Rússia, ao presidir o grupo em 2024, mencionou em uma reunião a portas fechadas o projeto de blockchain mBridge, apoiado pelo BIS, como modelo para pagamentos entre países com moedas distintas.


Isso deu a senha para que a iniciativa fosse encarada por alguns nos EUA como politicamente motivada e uma tentativa de contornar o dólar, algo especialmente relevante para a Rússia, atualmente sob pesadas sanções financeiras.


Poucos dias após a reunião do Brics em Kazan, no fim de outubro do ano passado, o BIS recuou formalmente do mBridge, agora liderado por China, Hong Kong, Tailândia, Emirados Árabes e Arábia Saudita, afirmando que o projeto havia atingido fase de teste de viabilidade sem a necessidade de sua participação.


Desde que tomou posse, Trump atacou em diversas ocasiões os esforços do Brics de buscar alternativas ao dólar.


Por sua vez, Lula, que ocupa a presidência do bloco, seguiu enfatizando a necessidade de agilizar pagamentos comerciais.


“Não vou abrir mão de achar que a gente precisa procurar construir uma moeda alternativa para que a gente possa negociar com os outros países. Eu não preciso ficar subordinado ao dólar,” afirmou em evento do PT em agosto.


Apesar da retórica afiada, seis fontes disseram à Reuters que o projeto é tratado mais como declaração de intenção do que plano concreto, sem cronograma ou modelo operacional sequer esboçados.


O Brasil considera o caminho multilateral uma possível forma de reduzir os custos das transações internacionais, mas por ora acompanha o tema de maneira periférica, disseram as fontes, citando estudos do G20 e iniciativas como o Nexus, rede que integra sistemas de pagamento instantâneo já existentes por meio de uma infraestrutura de mensageria que viabiliza transferências transfronteiriças mais rápidas e baratas.
Andrew McCormack, CEO do Nexus Payments, disse que a rede deve entrar em operação no início de 2027, inicialmente conectando seus cinco países proprietários — Cingapura, Malásia, Filipinas, Tailândia e Índia.


“Nossa visão é expandi-la para incluir outros países com sistemas modernos de pagamento instantâneo prontos para adesão”, disse ele, ressaltando que a Indonésia e o Banco Central Europeu são atualmente observadores especiais do Nexus.


Enquanto isso, titãs norte-americanos seguem reconhecendo o risco de perda de terreno representado pela conexão transfronteiriça entre sistemas de pagamento que já afetam seus negócios em nível doméstico.


“À medida que a interconexão dessas infraestruturas for mais explorada, elas poderão perturbar nossa atual participação de mercado em transações cross-border”, disse a Mastercard em seu último relatório anual, no qual mencionou o Pix entre soluções cada vez mais vistas como alternativas a “esquemas como os nossos.”


“Sistemas que conectam redes de pagamento em tempo real estão avançando e irão competir com nossos negócios transfronteiriços”, fez coro a Visa em seu documento do tipo, no qual o Pix é citado como “impulsionado por forte patrocínio governamental e iniciativas regulatórias.”


No Brasil, onde a Visa responde por 31% do mercado de cartões, a empresa parece ter adotado, como a Meta, estratégia de se unir ao Pix diante da avassaladora ubiquidade do sistema. No fim de agosto, a companhia recebeu autorização do Banco Central para atuar como provedora de iniciação de pagamentos Pix.


Fernando Amaral, vice-presidente de Inovação e Produtos da Visa do Brasil, afirmou que o serviço será a primeira solução da empresa sob o Visa Conecta, hub digital lançado em junho “como parte do nosso compromisso com o Brasil.”


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