A recente escalada de tensões entre Washington e Caracas, na qual os Estados Unidos anunciaram o envio de pelo menos sete navios de guerra ao sul do Caribe, tem uma data de início precisa.
Em 7 de agosto, a secretária de Justiça dos EUA, Pam Bondi, anunciou uma recompensa de US$50 milhões por informações que levem à prisão de Nicolás Maduro, o ditador da Venezuela que, desde 2020, enfrenta acusações formais por narcotráfico no sistema judicial norte-americano.
No anúncio, Bondi declarou que Maduro “é um dos narcotraficantes mais poderosos do mundo e uma ameaça à segurança nacional” dos Estados Unidos.
Caracas sempre negou essas acusações, mas em questão de horas, mais de 4.000 militares americanos foram enviados para as águas caribenhas e, dias depois, mais navios, submarinos e elementos de inteligência aérea se juntaram a eles.
A rápida evolução da crise, poucos dias depois que o governo Maduro e a administração Trump celebraram uma troca de prisioneiros e a retomada das exportações de petróleo venezuelano através da Chevron, deixou muitos surpresos e abriu brechas dentro da própria Casa Branca, onde um setor oposto ao chavismo por razões ideológicas é equilibrado por aqueles que preferem evitar confrontos perigosos.
“Donald Trump chegou à Casa Branca como um presidente de paz e o toque do tambor de alguns setores da oposição venezuelana e legisladores do sul da Flórida não bate com a mensagem do presidente”, disse à CNN um funcionário do governo dos Estados Unidos com conhecimento da Venezuela, pedindo para proteger sua identidade por não estar autorizado a falar sobre o assunto.
Mas, além da retórica, que nunca parou, é impressionante que a Casa Branca enfrente Maduro por supostos vínculos com o narcotráfico, e não com a reivindicação de restabelecer a democracia na Venezuela.
Acusações envolvendo o Palácio Presidencial de Miraflores com o suposto tráfico de cocaína existem há pelo menos uma década.
Provas dos EUA
Além das acusações públicas, Bondi não apresentou provas contundentes do suposto papel do governante venezuelano no narcotráfico internacional.
Ao mesmo tempo, Caracas rejeitou categoricamente as acusações.
“Para que haja um cartel de drogas, ou você o produz, ou você o processa ou você o trafica. E se na Venezuela não há nem cultivo, nem produção, nem tráfico de drogas, como pode haver um cartel? É insustentável”, disse à CNN a deputada chavista Blanca Eekhout, referindo-se ao Cartel de los Soles, uma suposta organização narcotraficante que os Estados Unidos afirmam ser liderada por Maduro e que há algumas semanas o governo de Trump declarou como organização terrorista.
De acordo com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), a Venezuela não é um país produtor de cocaína.
A quase totalidade dos cultivos de coca – ingrediente principal da cocaína – está concentrada na Colômbia, Peru e Bolívia.
A Colômbia, em particular, tem visto sua produção de cocaína aumentar drasticamente nos últimos anos, tanto pelo aumento da superfície cultivada como, sobretudo, por um maior rendimento no refinamento do produto, de acordo com os investigadores da ONU.
Ou seja: mais folha de coca é cultivada e, ao mesmo tempo, cada folha produz mais cocaína. De 3.700 toneladas de coca produzidas mundialmente, mais de 2.500 vêm da Colômbia, enquanto a Venezuela não aparece nos mapas de produção, segundo o último relatório do UNODC publicado em junho.
Investigadores da Agência para o Controle de Drogas dos Estados Unidos (DEA) disseram o mesmo.
No relatório anual publicado em março, a agência detalhou que 84% da cocaína apreendida nos EUA vem da Colômbia.
Nas quatro páginas desse relatório dedicado ao tráfico de cocaína não se menciona a Venezuela, enquanto os países mencionados principalmente são Colômbia e Peru entre os produtores, bem como Equador, América Central e México no que diz respeito ao trânsito.
Mas por onde sai a droga? “A maior parte da cocaína colombiana está sendo contrabandeada para o norte pela costa do Pacífico”, diz o UNODC.
Embora não descartem o trânsito através da Venezuela, há outros países apontados como tendências emergentes nos mercados internacionais de drogas, como o Equador, onde se vincula o marcado aumento dos homicídios com o aumento do narcotráfico, afirma a ONU.
É uma análise que o Departamento de Estado também não contesta, pelo menos a portas fechadas, sugerindo que os recursos implantados no Caribe poderiam ser mais eficazes em outros lugares.
“É raro que não vejamos mais navios rumo ao Pacífico, ou a criminalização de (mais grupos colombianos)”, disse à CNN um diplomata americano que também pediu para não revelar sua identidade por não ter autorização para falar sobre esses assuntos.
O mesmo pareceu indicar no momento o ex-secretário de Justiça dos Estados Unidos, Bill Barr, que revelou as primeiras acusações de tráfico de drogas contra Maduro em 2020, apontando o governo venezuelano como facilitador do transporte de “até 250 toneladas de cocaína anuais”, o que representaria uma quantidade ínfima nos volumes globais de narcóticos e menos de 10% da produção.
A rota pacífica também domina as estatísticas de apreensão de drogas do UNODC, com Colômbia (37%), Equador (8,8%) e Panamá (4,2%) como os países da região que registram maiores quantidades de cloridrato de cocaína.
Nessa classificação, a Venezuela é o sexto país latino-americano por apreensões, com menos de 2%.
Então, a Venezuela está livre do tráfico de drogas?
Embora os dados das Nações Unidas parecem desmentir a narrativa da Casa Branca, a realidade é mais complexa.
O movimento de 250 toneladas anuais de cocaína, cujo fornecimento Barr acusou o governo venezuelano, é minoritário comparado ao tráfico global (3.700 toneladas, segundo o UNODC), mas continua sendo uma quantidade relevante de comércio ilícito que, supostamente, geraria lucros multimilionários para Maduro.
Na época, Barr também não apresentou provas do tráfico ilegal que denunciava.
O chavismo admite que o narcotráfico existe no país, mas não que o promove. Eekhout, por exemplo, disse à CNN que, no ano passado, as forças de segurança de Maduro apreenderam 490 aeronaves e 94 embarcações usadas para transportar cocaína, dados que a CNN não pode verificar independentemente.
E enquanto Caracas declara que está fazendo a guerra ao narco, há também evidências de um envolvimento direto com o tráfico de drogas dos estratos mais altos do governo.
Em novembro de 2016, um tribunal federal de Nova York declarou culpados dois membros da família presidencial – sobrinhos da primeira dama da Venezuela, Cilia Flores, de conspiração para traficar cocaína para os Estados Unidos, após serem detidos pela DEA no Haiti.
Ambos foram posteriormente devolvidos à Venezuela em uma troca de prisioneiros.
Mas ainda mais chamativo é o papel de Hugo ‘el Pollo’ Carvajal, um ex-alto funcionário venezuelano que em 25 de junho se declarou culpado de conspiração para importar cocaína nos Estados Unidos e de atividades narco-terroristas.
Isso aconteceu após um longo julgamento em que os promotores dos EUA o acusaram de trocar armas de fogo por cargas de cocaína com as extintas guerrilhas das FARC, cujas dissidências na Colômbia controlam algumas das principais regiões produtoras de drogas.
Sua admissão de culpa veio depois de um longo processo de extradição da Espanha e poucos dias antes do julgamento começar em Nova York.
Na época, o Miami Herald relatou que Carvajal, que também foi acusado de ter sido parte do Cartel de los Soles, estava colaborando com os promotores americanos, entregando provas contra Maduro em troca de uma sentença reduzida, algo que a não pôde confirmar de forma independente.

Exatamente um mês depois, o Departamento do Tesouro classificou o Cartel de los Soles como uma organização terrorista internacional, permitindo às forças americanas maior liberdade de ação contra os supostos membros da organização.
Outros países da América do Sul como Argentina, Equador e Paraguai emitiram classificações semelhantes nos dias seguintes.
Existe, então, o Cartel de los Soles?
“O Cartel de los Soles, por si só, não existe: é uma expressão jornalística criada para se referir ao envolvimento das autoridades venezuelanas no tráfico de drogas”, disse à CNN Phil Gunson, um pesquisador do International Crisis Group baseado em Caracas há mais de uma década.
Isso não significa que não há militares envolvidos no tráfico de drogas, ou funcionários do governo.
“Os cartéis estão aqui, os colombianos e os mexicanos também. Há carregamentos de drogas pelo rio Orinoco e por via aérea através de pistas clandestinas, voos de Apure para a América Central. Tudo isso não seria possível sem um envolvimento direto de cima”, comenta o especialista.
Para Gunson, o papel de Maduro lembra o do ex-líder do Panamá, Manuel Noriega, condenado a décadas de prisão em diferentes jurisdições por sua associação com o cartel de Medellín em 1992: um parceiro externo que também se beneficiava de rotas de narcotráfico sob sua proteção.
Outros analistas independentes, desta vez do portal de inteligência InsightCrime, compartilham a mesma análise. “O Cartel de los Soles” é o termo usado para descrever os grupos obscuros dentro do Exército da Venezuela envolvidos em uma ampla gama de atividades criminosas. (…) Não é um grupo hierárquico, mas sim uma rede solta de células (…) que funcionam como organizações narcotraficantes”, afirma um relatório do site.
O próprio nome da organização a conecta ao aparato militar, sendo os “Soles” uma referência às insígnias que os generais venezuelanos carregam em suas ombreiras.
Da clandestinidade, a líder da oposição, Maria Corina Machado, aplaudiu as recentes declarações contra o cartel; outros setores da oposição se mostraram céticos.
O ex-candidato presidencial opositor Henrique Capriles disse à CNN que a administração Trump tem que “apresentar as provas” da existência do Cartel de los Soles, quando no passado acusou Maduro de estar envolvido em narcotráfico.
Por sua vez, o governante venezuelano sempre negou qualquer envolvimento pessoal no tráfico de drogas e continuará a negá-lo, pelo menos até que os promotores americanos apresentem provas indubitáveis, de importância semelhante àquelas que levaram à condenação dos sobrinhos de sua esposa há nove anos – sentença sobre a qual Maduro, notavelmente, manteve silêncio absoluto.
Nisso, o papel de Carvajal volta a ser chave e com ele, outra data: 29 de outubro.
Nesse dia, o general venezuelano aposentado e ex-chefe de inteligência será sentenciado por acusações de narcotráfico e terrorismo e provavelmente será mais fácil esclarecer se colaborou com a Casa Branca para formular as acusações contra seu ex-comandante em chefe.