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Pesquisadores criticam CFM por limitar tratamento para crianças e adolescentes trans

Pesquisadores do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual da Universidade de São Paulo (USP) publicaram, ontem, um artigo na revista científica Nature Medicine em que criticam os retrocessos no acesso ao tratamento para crianças e adolescentes trans pelo mundo, inclusive no Brasil. O texto foi assinado por Igor Longobardi; Bruna Caruso Mazzolani; Hamilton Roschel; Bruno Gualano e Alexandre Saadeh.


Os autores afirmam que o cuidado à população trans está “sob ataque” da Europa às Américas e que governos e entidades profissionais impuseram restrições “ignorando padrões científicos e éticos” que “distorcem as evidências, desconsideram diretrizes clínicas internacionais e expõem populações vulneráveis a danos”.


No Brasil, em abril, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou uma resolução em que revisou os critérios para atendimento a pessoas trans. Em relação à hormonioterapia, que envolve o uso de testosterona e estrogênio para induzir características biológicas do gênero com a qual a pessoa trans se identifica, a norma antiga, de 2019, autorizava a partir dos 16 anos. Já a nova regra restringiu para apenas maiores de 18.


Outra mudança foi a proibição do bloqueio puberal, estratégia reversível utilizada para interromper a produção de hormônios sexuais em crianças e adolescentes trans. Com isso, impede o desenvolvimento de características físicas do sexo de nascimento até que esses jovens tenham idade suficiente para dar início à transição de gênero.


A resolução anterior autorizava a prática a partir do início da puberdade exclusivamente em caráter experimental dentro de protocolos rígidos de pesquisa em hospitais universitários e/ou de referência para o Sistema Único de Saúde (SUS). Agora, porém, não é mais permitida nem mesmo dentro de estudos.


Grupos de defesa da população trans entraram com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF), distribuída ao ministro Cristiano Zanin, pedindo a retomada da resolução antiga. No final de junho, o Ministério Público Federal (MPF) também pediu à Justiça Federal que suspenda a nova resolução, alegando que ela está “na contramão de uma série de recomendações internacionais dos órgãos de proteção de direitos humanos”.


No novo artigo na Nature Medicine, os pesquisadores criticam a resolução do CFM assim como outras medidas semelhantes impostas em 2024 e 2025 no Reino Unido e nos Estados Unidos. “Essas políticas não são apenas restritivas. Elas desmontam estruturas criadas para apoiar jovens trans com planos individualizados de cuidado e consentimento informado. Pior ainda, criam um efeito inibidor entre profissionais de saúde, que passam a temer sanções ou consequências legais”, escrevem.


Os pesquisadores citam que o cuidado de afirmação de gênero é respaldado por um corpo crescente de evidências. “Diversos estudos longitudinais mostram que bloqueadores de puberdade e hormônios afirmativos reduzem sintomas de depressão, ansiedade e ideação suicida entre adolescentes trans. Dois estudos holandeses de referência, em 2011 e 2014, constataram que a supressão da puberdade melhorou substancialmente o funcionamento psicológico de adolescentes diagnosticados com disforia de gênero”, defendem.


Eles citam ainda um trabalho americano de 2022, publicado na Jama Network Open, que mostrou que jovens trans em terapia hormonal tinham 73% menos chances de apresentar ideação suicida em comparação com aqueles que não recebiam o tratamento.


Taxa de arrependimento

Um dos pontos alegados pelo CFM é que haveria um aumento de taxas de arrependimento pós-transição, embora o próprio Conselho reconheça que não há dados sobre o contexto brasileiro e que as evidências avaliadas para apoiar a afirmação são incompletas.


Logo após a publicação da resolução, uma carta de cinco entidades médicas, entre elas a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) e a Associação Brasileira de Obstetrícia e Ginecologia da Infância e Adolescência (SOGIA-BR), rebateu o argumento afirmando que, embora estudos de fato tenham encontrado resultados heterogêneos, trabalhos mais rigorosos apontam para percentuais baixos de arrependimento, por vezes inferiores a 1%.


Um deles, que analisou o cenário na Holanda, primeiro país a introduzir um protocolo de tratamento para crianças e adolescentes com disforia de gênero, acompanhou 720 indivíduos que iniciaram a terapia com bloqueio hormonal antes dos 18 ao longo de aproximadamente duas décadas. Os resultados mostraram que 704 (98%) continuavam após 20 anos, ou seja, não haviam interrompido a transição.


Publicado no The Lancet Child & Adolescent Health, em 2022, o trabalho também destacou que não é possível afirmar que os outros 2% tenham abandonado o tratamento por arrependimento, já que pessoas transgênero podem simplesmente não desejar mais usar hormônios nem realizar intervenções cirúrgicas. O estudo foi o maior até hoje a investigar a continuação do tratamento em pessoas trans que o iniciaram ainda na adolescência.


“Em nossa experiência clínica na Universidade de São Paulo, onde a resolução anterior do CFM orientou o cuidado por quase uma década, tratamos 79 adolescentes trans com bloqueadores de puberdade. Os efeitos adversos foram raros, e apenas um paciente manifestou desejo de desistir da transição, sem arrependimento. Esses resultados estão alinhados com padrões internacionais, que indicam taxas de desistência abaixo de 2% quando os protocolos de avaliação são seguidos adequadamente”, escrevem os pesquisadores da USP no novo artigo.


Eles veem com preocupação especialmente o fato de o CFM ter vetado a pesquisa com os bloqueadores, o que torna “quase impossível gerar os dados de longo prazo que seus autores dizem exigir”. Para os autores, isso cria um cenário controverso, em que “exige-se evidência, mas se impedem as condições para produzi-la”.


Sobre os riscos da resolução, eles argumentam que a privação ao cuidado de afirmação de gênero eleva o risco de depressão, isolamento social e suicídio entre jovens trans. “No Brasil, onde o sistema de saúde já é desigual, essas políticas afetarão mais duramente as famílias de baixa renda. Os danos vão além dos resultados clínicos, ameaçando conquistas importantes em direitos, saúde e equidade para a população LGBTIQA+”, concluem.


Na carta das entidades médicas, divulgada em abril, especialistas citam ainda o risco de que as restrições levem ao uso de hormônios sem aconselhamento médico, “algo comum nesta população por uma histórica dificuldade de acesso aos serviços de saúde”.


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