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Resistência, regulamentação e proteção dos saberes ancestrais foram temas da 5ª Conferência Indígena da Ayahuasca

Foto: Felipe Freire/Secom

A Aldeia Sagrada Yawanawá, localizada no Alto Rio Gregório, município de Tarauacá, foi um terreno fértil para conversas relevantes sobre os povos originários e medicinas tradicionais, com a realização da 5ª Conferência Indígena da Ayahuasca. De 25 a 30 de janeiro, representantes de povos do Acre, Brasil e do mundo deliberaram sobre os usos, costumes e conhecimentos de diversos povos.


Conferência reuniu diversos povos indígenas em torno da defesa e valorização do conhecimento tradicional, um patrimônio imaterial de grande relevância. Foto: Felipe Freire/Secom

O evento, organizado pela Coopyawa, Instituto Cultural Nixiwaka e o Instituto Yorenka Tasorentsi, instituições indígenas locais, foi criado em 2017 com o objetivo de proporcionar um espaço de governança indígena. Realizado a cada dois anos, tornou-se uma instância fundamental para deliberação de demandas e soluções, mobilizando não apenas lideranças indígenas, mas também instituições nacionais e internacionais, autoridades políticas, pesquisadores e parceiros diversos.


Conferência é considerada campo fértil para encontro de representantes das comunidades indígenas deliberarem, levantarem demandas e soluções. Foto: Felipe Freire/Secom

Diálogo e regulamentação

A conferência foi marcada por debates em torno de questões como a regulamentação do uso da ayahuasca fora das comunidades indígenas, seu potencial para o tratamento de dependência química e a proteção do patrimônio genético e cultural dos povos originários. As discussões culminaram na elaboração de uma carta de recomendação, documento que sintetiza os posicionamentos, preocupações e prioridades das comunidades envolvidas.


Carta de recomendação foi apreciada por todas comunidades e instituições presentes. Foto: Felipe Freire/Secom

Uma das propostas centrais do encontro foi a criação de um comitê legal para garantir uma regulamentação adequada ao uso da ayahuasca e outras medicinas tradicionais, evitando sua exploração comercial indevida.


A luta contra a biopirataria

“O debate mais importante sobre ayahuasca não está acontecendo entre paredes de universidades, está acontecendo aqui, ao ar livre, em território acreano”, avaliou o líder Yawanawá e anfitrião da conferência, cacique Biraci Brasil.


“Tenho grande satisfação de recepcionar em minha terra esse encontro lindo, recebendo povos de diferentes localidades”, comunica o cacique Yawanawá. Foto: Felipe Freire/Secom

As lideranças indígenas observaram que, muitas vezes, por trás de promessas de cura se escondem interesses financeiros e violência, por parte daqueles que buscam comercializar a ayahuasca de forma industrializada, ao pretender reduzir o conhecimento ancestral a pílulas. A tendência é considerada, pelas representações, uma nova forma de colonialismo.


Baseado em estudos apresentados na conferência, o líder Yawanawá denuncia: “Levantamentos apontam que os Estados Unidos são o país que mais consome a ayahuasca, abastecido principalmente por plantações na Costa Rica e no Havaí. E essa produção é uma biopirataria, com formas escusas de produção, sem qualquer consentimento ou cuidado dos povos indígenas”.


Benki Piyãko, líder Ashaninka e fundador do Instituto Yorenka Tasorentsi, participou ativamente da conferência e, durante sua fala, enfatizou que a ayahuasca, expandida pelo mundo, tem gerado impactos positivos e desafios para os povos indígenas.


Benki alertou que a falta de regulamentação pode levar à perda da autonomia dos povos indígenas sobre suas próprias tradições, como ocorreu com outras plantas de poder ao longo da história. Foto: Felipe Freire/Secom

Um dos principais temas discutidos na conferência foi a crescente inserção da medicina tradicional no meio acadêmico e científico, com pesquisas laboratoriais que extraem substâncias da ayahuasca para estudos farmacêuticos. Benki alertou sobre o risco de apropriação desse conhecimento por laboratórios e indústrias, o que pode resultar na perda de direitos dos povos originários sobre suas próprias medicinas e tradições.


Medicinas tradicionais em foco

A ayahuasca esteve, ao longo dos cinco dias, no centro das discussões. Trata-se de uma bebida psicoativa produzida principalmente a partir da combinação do cipó Banisteriopsis caapi com as folhas do arbusto Psychotria viridis. Também é conhecida como hoasca, daime, yagé, santo daime e vegetal. Além de fazer parte da medicina tradicional dos povos da Amazônia, a ayahuasca também é associada a rituais religiosos e aplicações terapêuticas.


Ayahuasca é definida como conhecimento ancestral que resistiu à colonização, permanecendo viva na cultura de diversos povos indígenas, resistindo desde tempos imemoriais. Foto: Felipe Freire/Secom

“Ela é enteógena, ou seja, uma substância natural que faz você entrar dentro de você e se realinhar com você e com a sua comunidade, diferente de uma substância alucinógena que te distancia da realidade”, detalha o cacique Biraci Brasil, sobre a bebida.


Além da ayahuasca, aproveitando a pluralidade de seus participantes, o evento também abordou outras formas de medicinas tradicionais, como a jurema sagrada, o peiote, o kambô, o rapé e a sananga, entre outras, destacando seus usos e desafios relacionados à preservação e regulamentação.


Rapé, produzido por uma associação de ervas de poder e tabaco, segundo a tradição indígena, compõe a medicina sagrada da floresta. Foto: Felipe Freire/Secom

Interculturalidade

O encontro contou com a participação de mais de 400 pessoas de diversas localidades do Brasil e do mundo. Um verdadeiro exemplo de interculturalidade, conceito de interação, respeito e compreensão entre diferentes culturas e grupos étnicos. Um dos presentes foi o pajé Joseci Potiguara, que representou os povos nordestinos na companhia de outros indígenas.


“Tudo o que estou aprendendo aqui vai ser levado para o meu povo”, assegura pajé Potiguara. Foto: Felipe Freire/Secom

Segundo dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), o povo Potiguara é o maior do Nordeste brasileiro, com cerca de 17 mil pessoas nos municípios paraibanos de Baía da Traição, Marcação e Rio Tinto.


Acompanhando o pajé, Eugênio Potiguara, coordenador regional da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) da Paraíba, apontou a importância de um espaço como a conferência: “Aqui a palavra que destaco é a de interculturalidade. Temos uma oportunidade única de construir diálogos na nossa própria língua e conhecer outras formas de espiritualidade. Só vivendo para saber o tamanho da troca entre diversos povos em momentos como esse”.


“Sabemos que 80% da biodiversidade mundial está em territórios indígenas, e isso demonstra o papel essencial desses povos na preservação ambiental global”, diz Eugênio Potiguara, coordenador da Funai. Foto: Felipe Freire/Secom

Outros universos, dificuldades similares

A comunidade internacional também marcou presença no encontro, com a participação de representantes de mais oito países, como Colômbia, Peru, Guatemala, México, Estados Unidos, Egito e Indonésia. O nativo americano Sandor Iron Rope, do povo Lakota, reconheceu similaridades entre os desafios enfrentados em sua nação e o Brasil, com medicinas originárias diferentes.


Sandor é membro da Igreja Nativa Americana, que utiliza o psicoativo peiote e reivindica respeito e preservação de sua medicina ancestral, tendo em vista que muitas pessoas querem usá-la sem compreender sua importância cultural e espiritual. Ele conta que o peiote é protegido por políticas federais e estaduais que reservam seu uso pelos povos indígenas, mas há constante luta para garantir seu uso devido.


“Nossa missão é compartilhar esse pensamento indígena com o mundo, compreendendo que as questões enfrentadas aqui com a ayahuasca são semelhantes às que enfrentamos nos Estados Unidos com o peiote”, aponta Sandor Iron Rope. Foto: Felipe Freire/Secom

O peiote, ou Lophophora williamsii, é um pequeno cacto nativo do México e do sul dos Estados Unidos, conhecido por suas propriedades psicoativas devido à presença da mescalina, um alcalóide alucinógeno. Utilizado há séculos por povos indígenas em rituais religiosos e medicinais, o peiote pode induzir estados alterados de consciência, visões e introspecção espiritual. Seu consumo é tradicionalmente associado a práticas xamânicas, sendo considerado sagrado por algumas culturas.


“A integridade e o respeito são fundamentais, pois é isso que a medicina nos ensina: disciplina para a mente, o corpo e nossa relação com a Terra. Precisamos garantir que os que trabalham com a ayahuasca e demais medicinas tradicionais o façam com respeito e dentro dos princípios dos povos originários”, complementa.


Representando o Fundo de Conservação da Medicina Indígena (IMC), Sandor destaca sua missão de proteger as medicinas tradicionais, garantindo que o seu uso seja alinhado com os ensinamentos ancestrais. Em sua visão, considera fundamental a construção de um conselho indígena global para unir as vozes para proteger as medicinas tradicionais e fortalecer cada vez mais a conexão de todos com a natureza.


Governo do Acre na conferência

O governo do Acre marcou presença na conferência, ressaltando o seu compromisso com as lideranças indígenas e fortalecendo sua mobilização por direitos. Por meio da atuação da Secretaria Extraordinária de Povos Indígenas (Sepi), foi fornecido apoio, estrutura, garantia de suporte logístico e participação ativa das discussões e mediações do evento.


Presença de Cameli e de gestores do seu governo é significativa para a luta das comunidades indígenas acreanas. Foto: Felipe Freire/Secom

A presença do governador Gladson Cameli no evento fortaleceu ainda mais a relevância da conferência, evidenciando a necessidade de um apoio oficial do Estado para a proteção desses conhecimentos. O chefe de Estado esteve acompanhado do secretário nacional de Segurança Pública, Mário Sarrubbo, para ouvir as reivindicações levantadas por uma carta de recomendação construída com base nas discussões levantadas.


Presença do governador reafirmou o papel do governo na salvaguarda dos direitos dos povos indígenas e na preservação de seus saberes ancestrais. Foto: Felipe Freire/Secom

A diretora de Povos Indígenas da Sepi, Nedina Yawanawá, participou de todas as atividades propostas e destacou como um diferencial a primeira mesa-redonda realizada, que levantou a importância da atuação das mulheres indígenas, contemplando os seus saberes e as práticas de cuidado.


Nedina também aprecia o ambiente de participação de povos de outros lugares do Brasil e de outros países, com o compartilhamento de outros conhecimentos ancestrais. Foto: Felipe Freire/Secom

A partir de sua vivência, apontou: “As mulheres, muitas vezes, não são consideradas quando se trata da prática espiritual, mas, felizmente, isso tem mudado cada vez mais. E tenho orgulho em dizer que essa mudança foi mobilizada pelo meu Povo Yawanawá. Estamos avançando na nossa participação e trazendo melhorias significativas”.


Nedina complementa: “Vemos o fortalecimento da presença feminina, trazendo consigo os jovens e as crianças, ampliando esse espaço de conexão. Nossa participação, que antes era mínima, hoje se consolida como um elo fundamental entre a juventude e os mais velhos, mobilizando nossas comunidades em torno dos ensinamentos ancestrais”.


“Nós, como cidadãos do Acre, temos muito a agradecer ao governador, que se mostra como um verdadeiro parceiro, reconhecendo nosso valor e sempre buscando estar presente em nossas solenidades e festivais”, ressalta Puwe Puyanawa. Foto: Felipe Freire/Secom

O líder indígena José Luiz Puyanawa, o Puwe, salienta a força do suporte de instituições parceiras como o governo do Estado: “Com esse apoio, conseguimos fortalecer nossas atividades com mais autonomia, nos reerguendo na linha do turismo e reafirmando nossa soberania. Queremos que o Acre seja visto como um exemplo de força indígena, onde nosso povo possa superar as dificuldades enfrentadas pelos nossos antepassados. Nossa história, cultura e identidade são riquezas que merecem ser preservadas e fortalecidas para as futuras gerações”.


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