“Ele não só matou meu filho, ele exibiu o menino como troféu, tripudiou em cima da morte dele”. Este é o relato de Ângela Maria de Jesus, de 51 anos, mãe do adolescente Fernando de Jesus, de 13 anos, morto em 2017 quando tentou furtar a casa do ex-sargento da Polícia Militar, Erisson de Melo Nery, em Rio Branco. Em entrevista exclusiva ao g1, ela lamentou a decisão judicial que condenou Nery a oito anos de prisão em regime semiaberto e absolveu o outro réu, Ítalo de Souza Cordeiro, na última sexta-feira (22).
O g1 não conseguiu contato com as defesas dos réus até a última atualização desta reportagem.
Sete anos após a morte de Fernando, Ângela relatou a curta trajetória de seu filho, que era dependente químico e que, segundo ela, por esse motivo teria entrado na casa do ex-sargento para furtar itens e vender. Conforme a denúncia, na manhã do dia 24 de novembro de 2017, Nery matou o adolescente com pelo menos seis tiros, no intuito de “fazer justiça pelas próprias mãos”, e alterou a cena do crime. O caso ocorreu no Conjunto Canaã, bairro Areal, em Rio Branco.
Ângela diz que descobriu, posteriormente, que o filho foi induzido por outros jovens a entrar na casa do policial, por ser pequeno e conseguir passar por lugares menores.
“Esse policial que matou meu filho falou que ele tinha entrado para assaltar e ele não entrou para assaltar. Ele foi junto com dois caras que ‘convidaram’ ele, porque sabia que ele era pequeno. Eles colocaram o Fernando para subir e abrir o portão para eles entrarem para furtar. Eles tinham pegado televisão e várias coisas e tinha deixado no portão para levar”, narra ela.
Ainda de acordo com a denúncia, ao perceberem a chegada de uma viatura da polícia, os dois maiores de idade conseguiram pular o muro e fugir, enquanto que Fernando de Jesus foi deixado para trás pelos comparsas e acabou morto pelo policial. Ângela descreve que ficou sabendo da morte do filho através de grupos de notícias, mesmo a casa do policial não sendo distante da dela.
“Eu fui buscar meus filhos na escola e passei de frente da rua que ficava a casa do policial e não tinha movimentação de nada, não tinha carro de polícia, não tinha nada. Estava lavando roupa no fundo do quintal, aí escutei uma sirene ligada. Falei assim pro meu esposo: ‘aconteceu uma coisa muito grave, porque a ambulância passou voada no meio da rua’, afirma.
Meia hora depois, o cunhado de Ângela chegou informando que haviam fotos do filho dela morto sendo compartilhadas em um grupo no WhatsApp.
“Pelo que dá para ver na foto, tem a bota do policial, então deve ter sido ele mesmo que tirou a foto e postou em algum grupo que vazou. Na hora que aconteceu, os vizinhos me disseram que ele trancou o portão e ficou sozinho lá e só depois as pessoas foram chegando. Tinha uma loja de material de construção na beira da rua, que tinha um muro, e teve gente que atrepou [sic.] em cima do muro e viu as coisas que ele estava fazendo lá”, sustenta ela.
‘Não tinha necessidade de ter matado’
Inicialmente, a mãe de Fernando diz que soube por testemunhas que, no momento da morte, o filho estava sozinho e desarmado. Primeiramente, o policial teria atirado na perna do garoto e que Fernando teria implorado pela vida.
“Ele mesmo pediu para ele não matar ele, que levasse ele pra delegacia, e ele continuando atirando no menino. Ele implorou para não morrer”, narra ela.
As informações recebidas pela mãe dão conta ainda de que o crime teria ocorrido por volta das 11h e o ex-sargento teria ficado trancado com o garoto por volta de uma hora dentro da casa e, somente após ter lavado o corpo para limpar o sangue, chamou o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), que apenas pôde atestar o óbito. Ela garante que durante esse período, teriam colocado a arma para fingir que seu filho estava armado e também lavado o corpo dele.
“Eu sei que ele estava furtando, que ele fazia coisas erradas, mas não tinha necessidade de ter matado o menino, podia muito bem ter pegado o menino, ter espirrado spray de pimenta nele, levado para a delegacia, encaminhado para o Conselho Tutelar, pedido para recolher ele na pousada, não tinha necessidade de ter matado […] ele é policial, sabe que o barulho que o menino estava fazendo era a agonia da morte. Aquilo para mim foi o fim”, disse ela.
‘Exibiu o menino como troféu’
Ângela ainda contesta a quantidade de tiros informada pela polícia, já que na autópsia foram constatadas 10 perfurações em Fernando. Ela conta que ainda que, mesmo Fernando sendo dependente químico, nunca foi agressivo, não estava armado e tinha porte de criança, não apresentando perigo ao ex-policial.
“Ele ficou tripudiando em cima da morte, dizendo que tinha dado seis tiros nele e que lutou com o menino. Não tem nem cabimento, porque a pessoa quando pega um tiro daquela arma, já fica imobilizado […] se ele [Fernando] fosse um homem adulto, eu ficaria até calada. Se ele estivesse armado, eu até que entenderia, mas era um menino de 13 anos, bem magrinho, desnutrido por conta da dependência química, ele quase não comia, só queria saber de usar droga. Ele não só matou meu filho, ele exibiu o menino como troféu, ele tripudiou em cima da morte dele”, evidencia Ângela.
Ângela também afirma que teve o apoio das pessoas do bairro onde morava, pois viram que a ação do ex-policial foi desproporcional no momento do ocorrido.
“Ninguém nunca achou que o que ele [Fernando] fez foi certo. Todo mundo sabia que meu filho estava errado em ir roubar, mas não dava o direito dele [Erisson Nery] ter feito o que ele fez. Era para ele ser um policial correto, ele tinha que ter feito o correto, que era proteger as pessoas e não executar”, lamenta ela.
Velório e intimidações
A mãe de Fernando afirma que quando velou o corpo do filho, se sentiu perseguida e sofreu muito porque observava uma viatura policial passando constantemente em frente à igreja onde o corpo estava sendo velado. “Ficaram me oprimindo. Ninguém ficou no velório, todo mundo foi embora com medo”, conta ela.
Ângela diz ainda que, após a morte de Fernando, os jornais locais repercutiram a história, mas depois não teve mais respostas judiciais e decidiu postar um desabafo na internet. No entanto, ela recebeu ameaças para retirar a publicação.
“Pedi para minha filha postar porque eu achava o cúmulo uma pessoa fazer o que ele fez e ficar por isso mesmo. Aí eu não sei se era ele ou quem era, mas começou a mandar mensagem para minha filha pedindo para ela retirar [a publicação], porque disse que a gente estava ofendendo e ameaçando ele. Aí a minha filha retirou, ela ficou arrasada”, declara.
Audiências e revolta com a decisão
Durante as audiências sobre a morte do filho dela, Ângela relata que foram momentos difíceis e que até chegou a passar mal, quando teve que ficar frente a frente com Nery sete anos depois do caso. O primeiro ponto dito pelo ex-policial, e que é contestado por ela, é que a família dela teria ameaçado o acusado.
“Ele mentiu dizendo que a minha família ameaçou ele. Eu nem sabia quem ele era, eu fui descobrir depois de dois anos que meu filho estava morto. Só sabia que tinha sido um policial. Eu passei muito tempo pesquisando ele no Facebook, nas redes sociais, mas ele removeu todas as coisas que tinha na internet”, reitera ela.
Ângela se revolta com o resultado da justiça, já que Nery foi condenado a oito anos em regime semiaberto e Ítalo de Souza Cordeiro foi absolvido pelo crime de fraude processual. A decisão foi assinada pelo juiz Robson Ribeiro Aleixo.
“O que mais me enoja é que eram dois homens grandes. Aquele outro policial, que eu nem sabia que estava envolvido nisso, ajudou ele e ainda foi inocentado, depois de tudo que eles fizeram, ele foi inocentado”, se revolta.
Ângela Maria, que agora trabalha com o marido como ajudante em reformas e pinturas de residências, atribui os problemas desenvolvidos pelos três filhos, nascidos depois de Fernando, ao episódio acontecido em 2017.
“Meus três meninos que eu tenho, que são mais novo do que ele, todos três ficaram com problemas de ansiedade. A minha pequena, de 11 anos, dá ataques de ansiedade e tem vezes que eu tenho que levar ela para a UPA. Os outros dois também tem problemas psicológicos, porque foi uma coisa muito forte, fora do normal”, disse.
Infância de Fernando
A mãe de Fernando teve um breve romance com o pai dele, porém decidiu que iria criá-lo sozinha, assim como fazia com os outros cinco filhos. Os dois eram do município de Acrelândia e ele trabalhava viajando, então só soube de sua gravidez meses depois.
Em 2023, quando Fernando tinha 9 anos, Ângela recebeu o primeiro baque. Um de seus filhos foi preso e ela precisou se mudar do município de Acrelândia para Rio Branco para poder fazer visitas a esse filho. Para sustentá-los, trabalhava como empregada doméstica e fazia faxinas, tendo a ajuda da filha mais velha para cuidar dos menores.
“Foi muito difícil para mim, porque eu tinha mais três meninos pequenos, eu tinha que trabalhar e tinha que cuidar dele, aí eu comecei a fazer acompanhamento com o Conselho Tutelar, mas ele não ficava em casa, era difícil. Eu fui várias vezes, no Conselho Tutelar pedir ajuda, mas eles diziam que a única coisa que eles podiam fazer era um acompanhamento de vir na casa e conversar com ele”, diz ela.
Ainda de acordo com Ângela, as raras vezes que vinha em casa, o adolescente, que virou usuário de drogas, não queria conversar. Nessa época, ela comenta que tentava pegar as faxinas para sair cedo e conseguir cuidar dos filhos. A mãe de Fernando relata que foi vendo a situação com seu filho piorar e não sabia a quem recorrer.
“Eu saía cedo, aí quando eu chegava em casa, ele já tinha acordado e saído por aí. Às vezes, ele chegava em casa espancado. O pessoal batia muito nele, os próprios policiais batiam nele, porque ele começou a furtar, a entrar nas casas que estavam fechadas e pegar celular, câmera para vender e poder comprar droga pra usar”, menciona ela.
Muito antes de completar a idade que morreu, Fernando já era completamente viciado em drogas. Ela se viu na necessidade de pedir a internação dele na pousada de menores, com medo de que acontecesse o pior nas ruas.
“Ele era muito pequeno e eu não sabia o que fazer. Aí uma vez eu fui no Conselho Tutelar pedir pra fazer o internamento nele numa pousada, porque ele estava roubando [furtando] muito e eu tinha medo de acontecer alguma coisa com ele, porque os policiais falavam muito em matar ele. Mas disseram que só poderiam internar com 14 anos”, comenta ela.
Desdobramentos do caso
Nery já respondia ao processo em liberdade, e a condenação recente manteve desta forma, sendo mencionado que “não existem nos autos outros elementos ou fatos contemporâneos que nos levem a ordenar a custódia preventiva e foi fixado o regime inicial semiaberto”. O ex-sargento ainda foi condenado ao pagamento das custas processuais, já o outro réu foi isento em razão da absolvição.
Na condenação de homicídio, é citado que a sentença apresentou um aumento de um terço na pena pelo fato do crime ter sido cometido contra uma pessoa menor de 14 anos. O documento apresenta a informação sobre o comportamento da vítima, afirmando que o adolescente “invadiu a residência do acusado com o objetivo de praticar o crime de furto. Tal comportamento contribuiu de forma direta para a deflagração dos fatos que culminaram no desfecho trágico”.
A decisão cita que aos 13 anos, a vítima encontrava-se em plena fase de desenvolvimento físico, psicológico e social e o homicídio, além de interromper de forma abrupta e trágica a possibilidade de reabilitação e reinserção social, trouxe profundas consequências emocionais à sua família, especialmente à sua mãe. O ex-sargento foi ouvido em audiência de instrução em agosto de 2022 na 1ª Vara do Tribunal do Júri.
Os militares teriam ainda colocado a pistola na mão direita do adolescente e fotografado. E, antes da chegada da perícia, decidiram mover a arma a uma distância de cerca de 13 centímetros da mão do menino. Depois da suposta alteração da cena do crime, o MP disse que ficou a cargo do militar Ítalo Cordeiro fazer o boletim de ocorrência alegando que o adolescente tentou disparar contra a cabeça de Nery, que agiu para se defender.
Trisal
Nery ficou nacionalmente conhecido após assumir um trisal com outras duas mulheres, em 2021. Alda e Nery, que estavam juntos desde 2000, se apaixonaram por Darlene e resolveram mostrar o dia a dia nas redes sociais por meio do perfil que ganhou o nome de “Três Amores”. Cada dia mais o casal ficava mais famoso e dividia opiniões na internet.
Quatro meses depois da repercussão, Nery usou as redes sociais para negar que estavam separados após o boato se espalhar. Os três, na época, moravam em Brasileia, no interior do Acre. Diariamente, eles postavam vídeos da rotina da casa, faziam lives e mostravam também os três em eventos.
Já no final de novembro de 2021, o trisal viu a vida virar de cabeça para baixo. Erisson Nery apareceu em um vídeo atirando no estudante Flávio Endres após uma briga em uma casa noturna de Epitaciolândia, onde estava acompanhado de Darlene e Alda. O estudante levou ao menos quatro tiros, ficou com sequelas em uma das mãos e chegou a ficar nove dias internado no Pronto-Socorro de Rio Branco após uma cirurgia no abdômen.
O ex-militar foi preso em novembro de 2021 e, neste caso, responde por tentativa de homicídio qualificado por motivo fútil e recurso que dificultou a defesa da vítima, além de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido e lesão corporal grave.
Ele deixou a prisão no dia 24 de agosto de 2023, após ter sido preso por esse fato e passou a cumprir medidas cautelares. Além de tentar reverter a decisão pelo júri popular, a defesa também havia pedido exame de insanidade, absolvição sumária por legítima defesa e exclusão de qualificadoras, o que também foi negado.
Em julho de 2022, a Vara Única Criminal da Comarca de Epitaciolândia fez uma audiência de instrução e julgamento do PM após recebimento da denúncia.
Fonte: G1 Acre