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Maconha: condenados não conseguem reverter pena mesmo com descriminalização

Planta de maconha, em imagem de arquivo — Foto: AFP

Quatro meses depois de o Supremo Tribunal Federal (STFdescriminalizar o porte de até 40 gramas de maconha para uso pessoal, muitas pessoas que haviam sido condenadas criminalmente como traficantes — pegas com uma quantidade inferior a esse limite — têm pleiteado, mas não têm conseguido reverter a condenação.


Isso porque os tribunais avaliam se há outros elementos que indicam tráfico, incluindo o depoimento dos policiais que fizeram os flagrantes — possibilidade prevista na decisão do STF.


  • 🔍Descriminalizar não significa legalizar. A maconha continua proibida no país. O que o STF fez foi estipular que o usuário não é criminoso.

g1 analisou casos de pessoas pegas com até 40 gramas de maconha que acionaram a Justiça para mudar a condenação de tráfico para uso pessoal. Foram lidos 176 acórdãos — decisões de segunda instância tomadas por um grupo de desembargadores — dos 27 Tribunais de Justiça dos estados e do Distrito Federal. São acórdãos de julgamentos realizados entre 1º de julho e 21 de outubro, que citam a decisão do STF, de junho.


Os casos foram localizados por meio da pesquisa de jurisprudência disponível nos sites dos tribunais. O levantamento não engloba todos os processos sobre o tema porque os sistemas podem não mostrar alguns casos.


A justificativa dos magistrados para manter as condenações é que o STF decidiu que, quando uma pessoa é pega com até 40 gramas de maconha, presume-se que ela é usuária, mas essa presunção “é relativa”. Isso porque o STF definiu que o policial que faz a abordagem pode enquadrar o caso como tráfico caso veja elementos que indiquem isso.


Em muitos casos, esses elementos são materiais: uma balança de precisão, saquinhos para embalar a erva, dinheiro em espécie e anotações de vendas. Em outros, baseiam-se na palavra da polícia e no contexto do flagrante.


Os policiais normalmente relatam que abordaram o réu porque receberam denúncia anônima (por vezes não registrada), que a pessoa ficou nervosa e tentou se desfazer da droga ou que a prisão foi perto de um local conhecido como “boca de fumo”


“Se alguém vai comprar para usar, tem que ir a um lugar onde vende drogas. O fato de a pessoa estar ali pode ser para comprar a droga para uso”, diz o defensor público Rafael Muneratti, de São Paulo, que atuou no processo no Supremo.


“Denúncia anônima é algo que tem muito. É a palavra do policial, geralmente não tem registro. O próprio STJ [Superior Tribunal de Justiça] tem afastado essa questão da denúncia anônima porque você não sabe se isso é verdade ou não. Agora, é diferente quando [o processo] traz um elemento material — balancinha, saquinho, dinheiro, caderninho”, afirma.


Procurados pela reportagem, os Tribunais de Justiça informaram que não têm levantamentos próprios sobre a aplicação do novo entendimento do Supremo, que completa quatro meses neste sábado (26).


Veja abaixo alguns casos que constam nos processos:


Acusados de tráfico

 


Carla foi presa em flagrante com 22 gramas de maconha, em março de 2020, em Belém (PA). O Ministério Público a denunciou por tráfico de drogas, processo que ela respondeu até setembro deste ano em liberdade provisória. A pena para o crime de tráfico vai de 5 a 15 anos de prisão.


A Defensoria Pública pediu ao Tribunal de Justiça do Pará um habeas corpus para trancar a ação penal contra Carla, invocando a decisão do Supremo. Em 19 de setembro, os desembargadores da Seção de Direito Penal, por unanimidade, decidiram trancar o processo.


“Observa-se que a paciente [Carla] não foi detida em circunstâncias que sugiram envolvimento em atividades de comercialização de substâncias entorpecentes. Não há testemunhas que tenham presenciado a acusada realizando venda, oferta ou tráfico de drogas, nem foram encontradas quantidades fracionadas de droga que indicassem tráfico no momento de sua prisão”, diz a decisão.


g1 encontrou decisões similares, nas quais os desembargadores mudaram a classificação da conduta de tráfico para uso pessoal e absolveram os réus, em oito Tribunais de Justiça (SP, RJ, DF, SC, PA,TO, AL e PE).


Em um caso de Caruaru (PE), até mesmo elementos que costumam ser tratados como indicativos de traficância, como a apreensão de uma balança, foram analisados com cautela pelos desembargadores. Eles decidiram absolver um homem que havia sido condenado, em primeira instância, a 8 anos e 4 meses de prisão.


“A quantidade de droga apreendida — 14 gramas de maconha — está muito abaixo do limite de 40 gramas estabelecido pelo STF, que gera presunção de uso pessoal. A mera indicação de que no local ocorre tráfico de drogas ou apreensão de uma balança de precisão, isoladamente, não são suficientes para configurar tráfico, especialmente diante da explicação plausível para esta última, de que era utilizada para pesar água oxigenada em sua atividade como cabeleireiro”, diz a decisão, do último dia 9.


“Além disso, a quantia de R$ 120 apreendida com o réu não é expressiva a ponto de indicar movimentação financeira típica do tráfico de drogas. Essa quantia é perfeitamente compatível com transações comuns do dia a dia e, isoladamente, não tem o condão de comprovar que o apelante estivesse envolvido no comércio de entorpecentes.”


Impacto menor

 


Casos como esse são minoria. No Rio de Janeiro, por exemplo, em apenas um dos acórdãos analisados pela reportagem o tribunal entendeu que o réu deveria ser enquadrado como usuário — e, consequentemente, absolvido. Em outros 11 casos as condenações por tráfico foram mantidas.


Segundo o defensor público paulista Rafael Muneratti, já era esperado que o novo entendimento do Supremo tivesse impacto menor sobre casos passados de pessoas condenadas por tráfico. Para ele, a expectativa de mudança está nos casos futuros.


“Para um juiz, reverter uma condenação já feita é muito mais difícil do que não condenar em um processo que está correndo. Nós estamos achando que não vamos encontrar um grande número de casos em que pessoas vão ser soltas. Mas ainda é cedo para avaliar”, diz.


No Distrito Federal, em um único caso analisado um homem condenado a 8 anos e 9 meses de prisão teve sua conduta reclassificada de tráfico para consumo pessoal. Ele foi absolvido e solto em 10 de outubro.


Em outras 12 decisões os desembargadores mantiveram as condenações por tráfico. Em 8 delas, enfatizaram o valor probatório dos testemunhos dos policiais.


Foi o caso de um jovem condenado a cinco anos de prisão pelo crime de tráfico, em 30 de agosto. Ele foi preso com um cigarro de maconha perto de um conhecido local de venda de drogas, segundo os policiais. Numa lixeira próxima, na rua, a polícia encontrou um pote de vidro com 16 porções de maconha (12 gramas).


O réu admitiu que é usuário de maconha e que estava fumando com colegas, mas negou que tivesse relação com as porções apreendidas na lixeira. Os policiais relataram que receberam denúncias anônimas, com a descrição do rapaz, e que o viram se aproximar da lixeira antes de ser preso.


“Os policiais, no desempenho da relevante função estatal a eles atribuída, gozam de presunção de idoneidade, e seus depoimentos tomados na condição de testemunha servem como prova apta a respaldar decreto condenatório, máxime quando se mostram em harmonia com os demais elementos de prova”, destaca a decisão do TJ.


Enquadrados como usuários

 


Diferentemente dos acusados de tráfico, pessoas condenadas como usuárias de maconha têm conseguido rever as condenações nos Tribunais de Justiça e limpar sua ficha.


Rafael teve o carro abordado em uma estrada de Taubaté (SP) em dezembro de 2021. Ele levava 8,36 gramas de maconha e um cigarro pronto para consumo.


Denunciado como usuário, foi condenado criminalmente, em primeira instância, a prestar serviços à comunidade. Sua defesa apelou ao Tribunal de Justiça de São Paulo citando a decisão recente do STF.


No último dia 4, a 10ª Câmara Criminal decidiu absolvê-lo. “Por força do citado julgado do Colendo Supremo Tribunal Federal, com repercussão geral, sua conduta não tipifica infração penal, sendo de rigor a absolvição pela atipicidade da conduta”, afirma a decisão.


O caso de Rafael exemplifica como vêm sendo tratados os processos de usuários de maconha em todo o país. Como as penas para usuários geralmente são de prestação de serviços à comunidade, e não de prisão, o principal efeito prático é que eles se livram de ter antecedentes criminais.


Anderson, de Balneário Camboriú (SC), também foi denunciado à Justiça como usuário, mas a análise do caso dele foi diferente.


Ele foi flagrado com 1,9 g de maconha e 7,4 g de crack. A juíza de primeira instância o absolveu, antes mesmo da decisão do Supremo, por considerar que as quantidades eram pequenas e suficientes para causar mal apenas a ele próprio.


O Ministério Público recorreu. O TJ catarinense, então, manteve a absolvição de Anderson quanto ao porte de maconha, com base na decisão do STF, mas determinou que ele responda criminalmente como usuário por causa do crack.


“A decisão proferida pela Suprema Corte não descriminalizou o porte de outras espécies de substâncias entorpecentes para uso próprio, ainda que apreendidas em pequenas quantidades”, registra a decisão.


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