Um ano após rebelião com 5 mortos no AC, investigações do Ministério Público apontam falhas do Estado
G1
Um ano após a rebelião que deixou cinco presos mortos, três deles decapitados, no Presídio de Segurança Máxima Antônio Amaro, em Rio Branco, investigações do Ministério Público do Acre (MP-AC) apontam que o Estado foi omisso e negligente deixando de seguir uma série de medidas para evitar o confronto dentro da unidade prisional.
O g1 e a Rede Amazônica Acre prepararam uma reportagem especial com informações exclusivas da Polícia Civil, do MP-AC e, com autorização do Instituto de Administração Penitenciária do Acre (Iapen-AC), entrou no presídio onde houve a tentativa de fuga para conferir o que mudou desde o ano passado.
Um inquérito civil foi instaurado pelo promotor Rodrigo Curti para apurar os possíveis danos morais de natureza coletiva cometidos pelo Estado. A investigação está em fase final e, após isso, a gestão pode ser responsabilizada judicialmente, se o processo for encaminhado ao Judiciário ou extrajudicialmente, se for firmado um acordo com o MP-AC.
Em nota, a Procuradoria Geral do Estado (PGE) informou que ainda não foi notificada do inquérito civil.
Segundo o promotor, os erros cometidos pelo Estado vão desde a falta de equipamentos, a instalação de um paiol de armas dentro da unidade prisional, a falta de um plano de contingência, entre outras como:
• Não adoção de protocolos básicos de segurança;
• Entrada de um policial penal armado dentro do pavilhão 1;
• Falhas na fiscalização de entrada de materiais no interior do presídio, como a serra que foi usada para serrar as grades das celas e os equipamentos utilizados na construção de um parlatório da Ordem dos Advogados do Brasil na unidade;
• Deficiências estruturais, fragilidade das celas;
• Câmeras de segurança com defeito: as investigações apontam que várias câmeras de segurança do interior do presídio não estavam funcionando no dia;
• Aparelhos de comunicação com defeito. Policiais penais que estavam na parte de trás do presídio, no último pavilhão, não sabiam o que estava acontecendo. Só tomaram conhecimento por meio de uma sirene que eles mesmo tinham comprado;
• Falta de efetivo. Não havia policiais nas guaritas fazendo a guarda das muralhas. Além disso, o MP-AC aponta um déficit de 400 policias penais no Iapen-AC atualmente;
• Ausência de um plano de contingência e de treinamento adequado dos policiais penais
“Então, são ingredientes que vão compor esse barril de pólvora, essa dinamite, que culminou com a morte de cinco detentos, policiais penais que foram alvo de tiros e até o momento não se tem nenhuma atitude concreta do Estado para reverter essa situação, que ainda continua na mesma após essa tentativa de fuga que aconteceu no Antônio Amaro”, explicou o promotor Rodrigo Curti.
Para o promotor o Estado falhou ao não garantir a segurança dos presos e dos policiais penais. Ricardinho Vitorino de Souza, Marcos Cunha Lindoso, Francisco das Chagas Oliveira da Silva, Lucas de Freitas e David Lourenço da Silva foram mortos na rebelião e, segundo as investigações, eram líderes de uma facção criminosa rival a dos rebelados.
“A partir do momento que um preso ingressa no sistema prisional, está sob a custódia do Estado, que tem a obrigação e a responsabilidade legal de garantir a integridade física e psicológica daquela pessoa. Nesse sentido o Estado falhou porque possibilitou com que esses presos fossem executados. Por mais que fossem presos de altíssima periculosidade, o Estado tem a obrigação de garantir a integridade física deles e também dos policiais penais”, frisou.
Cinco homens foram assassinados durante a rebelião que durou mais de 24 horas em presídio do AC — Foto: Arquivo
O que mudou?
No dia 4 de julho deste ano, a equipe da Rede Amazônica Acre esteve no Presídio de Segurança Máxima Antônio Amaro acompanhada do diretor-presidente, Marcos Frank, e do atual diretor da unidade, Raifran Alves, para mostrar as mudanças feitas na estrutura.
“A administração anterior entendeu que a tecnologia poderia de alguma forma mitigar a falta de efetivo, houve a instalação de algumas câmeras e a intensificação do monitoramento, não só na Penitenciária Antônio Amaro Alves, mas em todo o Complexo Penitenciário”, afirmou Marcos Frank.
Conforme o diretor Raifran Alves, protocolos de segurança do presídio foram revistos. “Com instalação de câmeras, com uma monitoração mais efetiva, a gente consegue cobrir o campo de visão maior do policial penal que está monitorando as câmeras da Unidade. Protocolos, especificamente, para trazer presos ao isolamento, tomamos como medida a diminuição de presos dentro do pavilhão. Outra situação também é a constante revista do pavilhão e dos apenados que lá estão”, destacou.
Ainda segundo os diretores, o depósito de armas foi retirado de dentro do presídio. Sete pavilhões que tiveram as estruturas afetadas durante a rebelião foram reformados, sendo que um ainda está em obras.
“Aguardamos o fim das reformas, um prazo mais ou menos de 40 dias. Existe uma tentativa por parte dessa gestão de melhorar o atendimento e de proporcionar mais saúde mental não somente aos policiais penais que estiveram presentes no dia em que se deram os fatos, mas também de acolher toda a Polícia Penal nesse contexto”, finalizou Frank.
Sete pavilhões passaram por reformas após a rebelião — Foto: Reprodução/Rede Amazônica Acre
Antes da rebelião
A rebelião começou na manhã de 26 de julho de 2023 quando presos renderam policiais penais e tiveram acesso às armas que foram usadas para tomar o pavilhão de isolamento da unidade. O policial penal Janilson da Silva Ferreira foi atingido por um tiro no olho, mas conseguiu sair do local. O servidor, inclusive, segue afastado em tratamento de saúde.
Outro servidor foi mantido refém até o final da rebelião, que terminou por volta das 10h do dia 27 de julho. Antes de se entregarem, os presos exigiram a presença do promotor dos Direitos Humanos do Ministério Público, Tales Tranin, para colocar fim à rebelião. Tranin teve um papel importante no momento de crise e atuou junto com o gabinete de crise montado pelo governo
As investigações apontam que, cerca de dez dias antes da rebelião, foram feitas algumas transferências estratégicas de presos para o pavilhão 1. Após a transferência, os detentos iniciaram o processo de serrar as portas das celas e se prepararem para a fuga.
“Todo recluso, todo dia está pensando em fugir. O primeiro passo foi serrar as portas das celas do pavilhão 1, que era o corretivo. Quando eles cometiam infrações administrativas dentro da unidade, eram remanejados para o pavilhão do corretivo para ficarem ali durante alguns dias como uma aplicação de sanção administrativa”, contou o delegado Roberth Alencar.
Ainda segundo a polícia, um dos detentos envolvidos na tentativa de fuga foi transferido para o local no mesmo dia, sob a alegação de que teria sido encontrada uma pílula de viagra com ele.
Outro fato suspeito apurado pela Polícia Civil é a presença do ex-diretor da unidade, Francisco das Chagas Santos Pereira, que estava de férias, mas visitou o presídio quase todos os dias que antecederam a rebelião. Minutos antes dos fatos, inclusive, ele estava no presídio.
Pereira, como é conhecido, está afastado das funções até o início de agosto, assim como outros servidores suspeitos de envolvimento no caso. O servidor não foi indiciado por nenhum crime, contudo, o delegado Roberth Alencar destacou que ele é considerado suspeito.
“Os elementos de prova indicaram o possível envolvimento dele com o fato criminoso. Ainda não foi indiciado, não há prova indubitável, mas há elementos que determinaram o afastamento e, por isso, a investigação ainda está tentando elucidar de forma completa, porque, como é importante frisar, ninguém quer achar culpados, identificar autores de crimes, queremos elucidar os fatos”, frizou.
O advogado Cristiano Vendramin, que defende o servidor público, afirmou que Francisco das Chagas estava na unidade prisional no período de férias atendendo uma solicitação de auxílio do diretor em exercício da época.
A defesa confirmou que não pode se aprofundar em maiores detalhes porque o inquérito tramita em segredo de Justiça.
A rebelião
Treze detentos estavam no pavilhão no dia da rebelião. Imagens de câmeras internas do presídio, que estavam funcionando, mostram o momento exato que a tentativa de fuga começou. Eram 11 horas quando um policial penal entrou armado para entregar marmitas para o almoço.
O faxineiro, detento que fica solto na unidade e auxilia os policiais, também aparece nas imagens carregando as marmitas quando os presos saem das celas. Um deles corre em direção ao policial penal e outro ao faxineiro. Os dois são feitos reféns.
O delegado Roberth Alencar explica como foi a dinâmica da rebelião. “O primeiro passo foi serrar as portas das celas do pavilhão 1. Segundo passo, acessar o depósito para se armar. Terceiro passo, fugir e executar os rivais. E o quarto passo era transformar os rivais da organização criminosa. Fazer ali a conversão para a facção deles. E o que foi feito? Muitos passaram para a facção que foi responsável pela rebelião, justamente pela coação irresistível que foi feita com o uso da arma do próprio Estado”, disse.
Ainda segundo o delegado, os trabalhos investigativos apontam que houve uma trégua entre as organizações criminosas em determinado momento. Unidos, os presos iniciaram o planejamento de fuga entre os criminosos até certo momento, contudo, um grupo criminoso desistiu do plano.
“Veio a continuidade do plano por parte da organização que executou e ali decidiram o seguinte: ‘não querem fugir conosco, então, vamos fugir e ainda vamos tirar o poder deles eliminando os principais líderes’. Nossa tese é que houve um plano de fuga com execução dos rivais para o aumento de poder da organização criminosa. Tinham dois objetivos: fugir e matar os líderes durante a fuga”, pontuou.
Investigações
As investigações da Polícia Civil foram divididas em etapas. Uma dessas etapas investiga a participação de servidores públicos na rebelião. Em outro processo, são investigadas as mortes dos detentos. Os trabalhos ainda não foram concluídos.
O delegado Roberth Alencar acrescentou que há suspeita da facilitação por parte dos servidores públicos e até um pagamento em dinheiro para que a fuga acontecesse. Esses policiais, inclusive, teriam facilitado a entrada de objetos usados na rebelião.
“Temos desde o início a informação de que houve supostos pagamentos, mas ainda não concretizamos. A investigação está em andamento, estamos tentando provar quanto e quem recebeu. Se isso for provado, aí teremos uma prova efetiva de que realmente houve a corrupção”, relatou.
Alencar complementou que a investigação é complexa e que o suposto envolvimento dos servidores públicos torna o trabalho mais difícil. Segundo ele, foram analisados, durante três meses, imagens das câmeras de segurança, feitas diversas oitivas e ouvidas mais de 100 pessoas.
O crime de coação por parte da organização criminosa contra os servidores também não é descartado.
Em abril deste ano, quatro servidores do Instituto de Administração Penitenciária do Acre (Iapen) foram afastados durante a Operação Portas Abertas, que investiga as circunstâncias da rebelião. Além do afastamento, o policial penal Romilson da Silva Luna está preso por suposto envolvimento na rebelião.
“Nossa principal tese, que não foi plenamente confirmada, é de que foi pelo aspecto financeiro e foi verificado que muitos dos servidores da nossa investigação já praticavam atos similares, como por exemplo, entrar com alimentos o que ainda é proibido, tem que haver aquela captação do servidor recrutamento para que ele facilite”, argumentou.
O advogado Alfredo Severino Jares, que defende o policial Romilson Luna, disse que a defesa não vai se posicionar sobre as investigações.
De acordo com o Iapen-AC, os servidores seguem afastados até 5 de agosto, quando acaba o prazo de quatro meses de afastamento. A Justiça deve decidir o que vai acontecer com os servidores após esse prazo.
Segundo o promotor Bernardo Albano, do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime (Gaeco), ambos estavam no primeiro núcleo operacional que realizou a tomada de refém, desencadeando o início da rebelião. Os dois homens também são ligados a mesma facção de Fernandinho Beira-Mar, também preso na unidade.
“Eles participaram diretamente do início da rebelião, ou seja, da tomada de reféns e também da progressão até a reserva de armas de fogo. Isso foi o que motivou o pedido de transferência desses presos para o Sistema Penitenciário Federal”, reforçou.
Em março deste ano, o Gaeco ofereceu denúncia ao Tribunal de Justiça do Acre (TJ-AC) contra 13 detentos, dentre eles Deibson Cabral e Rogério Mendonça. “Paralelamente foi pedida a prisão preventiva de todas essas pessoas. Eles estão, para além do cumprimento de pena que já possuem, presos preventivamente nesse processo. E agora esse processo está na fase da coleta das defesas preliminares e vai para a instrução e julgamento”, concluiu.
Mudanças no sistema
Nove dias depois da rebelião, o governo do Acre exonerou Glauber Feitoza Maia, que ocupava o cargo de diretor-presidente do Instituto de Administração Penitenciária do Acre (Iapen), e o diretor executivo operacional, Marcelo Lopes da Silva.
O policial penal Alexandre Nascimento foi nomeado presidente do instituto em agosto de 2023, após a rebelião. Ele decidiu deixar o cargo em abril deste ano depois de uma acusação de assédio moral contra servidoras do Iapen.