Mãe de Thalita do Vale, de 39 anos, que morreu em combate durante a guerra na Ucrânia em julho de 2022, Rose do Vale revela que a família passou o último ano em busca de notícias sobre o que, de fato, aconteceu com a filha.
Segundo ela, integrantes da Legião Estrangeira Ucraniana — unidade militar de voluntários estrangeiros que Thalita fazia parte — apresentaram, pelo menos, cinco versões diferentes da morte.
“Me davam explicações que não me convenciam, eu pedia pra ver o corpo, falavam que iam ver se era possível”.
Rose conta que chamou a atenção a informação que recebeu de um soldado do mesmo batalhão, que não estava dentro do bunker na hora do bombardeio, mas esteve no velório de Thalita e Douglas Burigo, que morreu junto com a brasileira.
“Quando ele pegou os caixões, falou ‘nossa, mas está muito leve’, e falaram pra ele ‘é que não tem corpo nenhum dentro’. Ele foi perguntar porque não tinha corpo dentro do caixão e aí explicaram que já tinha levado para cremação. Só que quando aconteceu isso, não tinham nem comunicado direito com a gente [da morte]”.
A mãe também conta que, em contato com uma mulher que se apresentou como comandante do batalhão que Thalita fazia parte, chegou a pedir, por diversas vezes, para fazer o reconhecimento do corpo da filha, ainda que de maneira virtual.
Neste ponto, ela desconfia que Thalita já tinha sido cremada.
“Falei ‘antes de qualquer procedimento tipo cremação, qualquer coisa, eu quero fazer reconhecimento, eu exijo’. Aí enviaram uma foto da Thalita, não do corpo inteiro. Só do rosto. Mandaram depois uma foto do velório perguntando se podia cremar ou não. Então foi tudo muito estranho”.
Thalita, que é natural de Ribeirão Preto (SP), morreu em Kharkiv, na Ucrânia, no dia 1º de julho do ano passado.
As cinzas só chegaram no Brasil oito meses depois, em março deste ano. Os pertences pessoais da brasileira nunca foram enviados, segundo a mãe.
“Ela [a comandante do batalhão] foi levando a gente na conversa durante um ano. Dizia para mim ‘na próxima semana, estou mandando [as cinzas e os pertences], vai pelo avião tal, tem uma voluntária que está levando até a Polônia e de lá segue, estou mandando o número de rastreio’. Nunca chegou”.
Falta de apoio
A família de Thalita também afirma que não teve qualquer apoio das Embaixadas do Brasil na Ucrânia e da Ucrânia no Brasil. O Ministério das Relações Exteriores nega.
“Não ajudaram em nada, simplesmente só pegaram o documento de repatriação, fizeram o trâmite da repatriação da cinzas, para que eu pudesse buscar em Guarulhos, no aeroporto, que é o básico do básico do básico. No mais, não se importaram com o que ocorreu, não buscaram nossas reclamações. Quando eu pedi ajuda, por conta de não falar ucraniano, pra embaixada em Kiev, ninguém quis ajudar. Simplesmente viraram as costas”, diz o irmão de Thalita, Theo Rodrigo Vieira.
Em nota enviada ao g1, o Ministério das Relações Exteriores informou que, por meio da Embaixada em Kiev, acompanhou o caso e prestou assistência consular aos familiares.
Também explicou que não pode fornecer dados específicos sobre casos individuais de assistência a cidadãos brasileiros, mas afirmou que, em caso de falecimento no exterior, os consulados brasileiros prestam orientações gerais aos familiares e cuidam da expedição de documentos, como atestado consular de óbito.
“O traslado dos restos mortais de brasileiros falecidos no exterior é decisão da família. Não há previsão regulamentar e orçamentária para o pagamento do traslado com recursos públicos”, diz trecho da nota.
O g1 tentou entrar em contato com a Legião Estrangeira Ucraniana, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
Brasileira chegou a manifestar desejo de retornar
Rose revela que conversava frequentemente com a filha na Ucrânia via aplicativo de mensagens instantâneas.
Em uma troca de mensagens, Thalita chegou a dizer para a mãe que estava pensando em voltar ao Brasil. Ela morreu uma semana depois.
“Ela mandou uma mensagem ‘mamãe, acho que vou embora, porque está acontecendo umas coisas estranhas aqui’ e eu falei ‘vem embora mesmo'”.
Ainda segundo Rose, três dias depois de manifestar o desejo de retornar para casa, Thalita teria enviado uma nova mensagem dizendo que ficaria no país por mais um mês.
“Quando ela mandava mensagem, mandava ‘oi, veinha, tudo bem, mãezinha?’ Dessa vez, foi uma mensagem muito seca ‘mãe, eu não vou embora ainda, não, fizeram um contrato com a gente e no contrato consta que a gente tem que ficar mais um mês’. Tudo foi uma semana antes de ela morrer, eu nem sei também se ela morreu no dia que eles comunicaram pra gente, ainda tem isso”.
Família considera morte mal explicada
A família vê hoje, um ano após a morte de Thalita, informações perdidas sobre as versões recebidas, uma vez que os ferimentos visíveis na foto pós-morte, parecem não bater com a forma que a brasileira teria morrido, diz a mãe.
Ela revelou ao g1 que um especialista chegou a analisar a imagem a pedido dela.
“Eles mandaram a foto do pescoço para cima. [A pessoa que analisou a imagem] me informou que em morte por asfixia, o rosto fica escurecido, desidratado. O dela não estava assim. Tinha uma queimadura no rosto e ele falou que tinha que estar murcho, porque quando você queima não incha, ele murcha, a pele murcha. E ela estava muito inchada. E eles [os soldados] falaram que ela não foi queimada, que estava intacta”.
A versão oficial é de que Thalita, que estava em missão humanitária na Ucrânia, morreu por asfixia por conta de um incêndio no bunker onde estava escondida.
“Eu já duvido [de tudo], até não sei nem o que fazer com tudo que aconteceu até agora”, diz Rose.
Medalha de honra ao mérito
Thalita foi a primeira mulher da Legião de Estrangeiros a ir para o front na guerra da Ucrânia, segundo a família.
Quando morreu, no entanto, a brasileira ocupava uma posição diferente daquela que a levou até o país, que era para ser de socorrista.
Se apresentar na linha de frente, no entanto, chamou a atenção dos combatentes e Rose conta que foi acionada após a morte da filha para ser informada de que Thalita receberá uma medalha de honra ao mérito.
Segundo a mãe, a brasileira é tida como heroína em Kharkiv, cidade que viveu.
“É um orgulho dizer ‘minha filha é heroína na Ucrânia, foi a primeira mulher a ir para o front‘? É um orgulho. Mas, meu Deus, seria mais orgulho dizer que ela tinha voltado para casa”.