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Descoberta tardia do autismo afeta qualidade de vida: ’10 remédios por dia’, diz jovem

Abril Azul é o mês dedicado à conscientização mundial sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA), com direito a um dia, este domingo (2), dedicado exclusivamente a difundir informações para a população e reduzir a discriminação que cerca as pessoas com a condição.


Ao contrário do que estigmas afirmam, o TEA não caracteriza uma doença, mas, sim, uma variação do funcionamento típico do cérebro. A condição faz parte dos transtornos do desenvolvimento neurológico, sendo que os sintomas tendem a se manifestar nos primeiros anos de vida.


A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que haja 70 milhões de pessoas com o TEA no mundo, sendo cerca de 2 milhões só no Brasil. Mais de 80 anos depois do primeiro caso diagnosticado na história, a falta de informação ainda é a principal barreira para a inclusão desses indivíduos na sociedade.


O TEA é caracterizado, principalmente, pelas dificuldades em comunicação e interação social, e presença de padrões de movimentos restritos e repetitivos. Pessoas no espectro têm uma forma diferente de vivenciar experiências, agir e interpretar o mundo.


Por anos, foi considerado um transtorno restrito à infância, mas, com a maior divulgação sobre a condição, o cenário se alterou. O mais comum, contudo, é que pessoas adultas recebam outros diagnósticos frente aos sintomas.


Diferentes graus e grupos de autismo

 


Há, inclusive, uma classificação com o objetivo de facilitar e orientar o manejo e as intervenções necessárias para cada pessoa. Por ser um espectro, é difícil “colocar em caixas” cada manifestação do transtorno.


De qualquer forma, essa classificação é útil para definir o nível de apoio demandado por cada um. Ela é dividida entre graus e grupos.


  • Nível 1: existe uma dificuldade para a interação social, porém sutil, além de dificuldade para troca de atividades e problemas de organização, também de forma leve. Exige apoio leve.
  • Nível 2: a dificuldade para socialização é maior. Há também uma resistência a lidar com mudanças, além de comportamentos repetitivos. Exige apoio moderado.
  • Nível 3: há déficit de comunicação verbal e não verbal de forma mais clara. A pessoa também possui dificuldade em abrir-se para interações sociais que partam de outras pessoas, muita dificuldade em mudanças e comportamentos repetitivos constantes. Exige muito apoio.

Esse diagnóstico tardio pode afetar a qualidade de vida. É o caso do psicólogo Lucas Pontes de Andrade, morador de Botucatu (SP), de 25 anos, diagnosticado com autismo nível 1 de suporte aos 20 anos. Hoje, o jovem conta com um perfil com mais de 113 mil seguidores de todo o país.


Ao g1, Lucas explicou que possui altas habilidades e superdotação, além do autismo. Segundo ele, o principal fator que culminou no diagnóstico tardio está relacionado ao despreparo de profissionais, que descartavam a hipótese sem respaldo científico.


Ter amigos, conseguir falar e tocar violão foram alguns exemplos apontados por esses profissionais, conforme Lucas, para que não levassem em conta a possibilidade dos seus sintomas estarem relacionados ao autismo.


“Infelizmente, com base em preconceitos e achismos, os médicos que passei durante a minha infância descartaram a possibilidade do diagnóstico do autismo, de maneira equivocada. Eu também recebi o diagnóstico de ansiedade e depressão. Eram cerca de10 remédios por dia, que não eram focados na minha real necessidade. Eu tinha crises diariamente por não saber lidar com a minha sobrecarga sensorial. Agora, eu consigo porque faço terapia focada para isso e tomo remédios focados nisso, depois do diagnóstico para autismo”, salienta.


Depois de anos na tentativa de encontrar respostas para os seus sintomas, Lucas ressalta que o diagnóstico para autismo foi feito por um psiquiatra especialista na área, além do acompanhamento de uma neurologista.


Também é o caso da dentista e moradora de Tupã (SP), Rúbia Julienne Maldonado dos Santos, de 48 anos, diagnosticada com autismo nível 1 de suporte em fevereiro do ano passado, aos 47 anos. Na família, os dois filhos, Miguel, de 15 anos, e Davi, de 11 anos, também possuem a condição.


Ao g1, a dentista contou que teve prejuízos de não saber sobre o diagnóstico com antecedência, principalmente com relação ao relacionamento social.


“Eu sentia dificuldades se a minha rotina se alterava. Eu faço uma programação e, se ela muda, eu fico incomodada, grosseira, o que passa uma má interpretação para colegas de trabalho, por exemplo. Tive ex-companheiros que falavam que eu não era confiável por não olhar nos olhos para conversar”, lamenta.


Quando recebeu o diagnóstico, mesmo que tardio, foi como se sentisse livre, pela primeira vez, conforme ela. Isso porque encontrou respostas para os comportamentos divergentes que apresentava desde criança.


Da mesma forma que Rúbia, os filhos foram diagnosticados com autismo. O filho mais velho, Miguel, foi diagnosticado aos quatro anos com nível 2, o que atrasou o despertar para a necessidade de um acompanhamento que fornecesse melhor qualidade de vida ao jovem.


Miguel, de acordo com a dentista, não brincava com outras crianças, além de ter um atraso na fala, dificuldade sensorial e angustia ao se aproximar de outras pessoas. Em uma de suas crises, o menino chegou a ficar inconsciente ao bater a cabeça na parede.


“Desde cedo que já percebia os sinais, ele não brincava, não sabia se aproximar, teve atraso na fala, tinha dificuldade sensorial. Em um lugar com som alto, ele batia a cabeça na parede durante as crises. Teve um dia que ele bateu tão forte que chegou até a perder a consciência. Na época, não sabíamos os diagnósticos”, diz.


A mãe também destaca que o menino desenvolveu seletividade alimentar. Por isso, em determinada idade quando criança, Miguel apenas comia alimentos de cor branca, como clara de ovo e farinha de trigo.


Com o diagnóstico positivo, Rúbia iniciou os acompanhamentos do menino, com intervenções da terapeuta ocupacional e da fonoaudióloga. Com a melhora, Miguel passou a frequentar as aulas, foi alfabetizado, “aceitou” melhor os colegas de sala, além de passar para nível 1 de suporte.


O segundo filho de Rúbia, Davi, foi diagnosticado, assim como ela, com nível 1 de suporte com 8 anos. Por conta desse longo período, o menino ficou com déficits, principalmente ligados ao aprendizado.


Com tantos exemplos na família, Rúbia enxerga no diagnóstico precoce a importância para a neuroplasticidade cerebral, de forma que o órgão se adapte mais fácil aos estímulos.


“Com relação ao diagnóstico precoce, eu vejo também em relação à família, porque eu consigo compreender o que está acontecendo com aquela criança, e buscar ajuda. Sem o diagnóstico, você vê que seu filho é diferente de outras crianças, mas não consegue saber o que está acontecendo. Essa angústia é muito ruim”, pontua.


Assim que percebeu semelhanças com relação ao comportamento dos filhos, Rúbia consultou a médica psiquiátrica, com o intuito de elucidar dúvidas sobre o seu possível diagnóstico para o autismo.


“No dia a dia, eu comecei a reparar nas minhas ações, e fui investigar se eu também estava dentro do espectro. Foi uma grande surpresa, eu descobri que era autista e tinha um QI acima da média, o que eu não esperava. Quando eu recebi o diagnóstico, eu recebi uma carta de alforria. Há 40 anos, não se falava sobre o autismo. Com o diagnóstico, eu sinto na pele o que autistas leves sentem, e me identifico”, comenta.


Com tantos aprendizados, Rúbia ressalta, agora, enxerga também a importância de se falar sobre a condição e, dessa forma, contribuir para que o diagnóstico de pessoas que apresentam sintomas semelhantes seja emitido o quanto antes.


“Muitos autistas falam bem, mas, não saber falar não é a mesma coisa que não saber se comunicar. Muitos necessitam de mais apoio, outros necessitam de menos. É ruim você não entender que não faz parte daquele meio. Eu espero que meus filhos no futuro sejam melhores do que eu sou hoje. Que eles encontrem pessoas no caminho que lhes compreenda”, pede.


 


Descobrindo-se autista

 


Quando se fala em pessoas diagnosticadas tardiamente, costuma haver um padrão: são pessoas que manifestam os sintomas de forma mais leve, em nível de suporte 1, tidas apenas como tímidas ou com dificuldades sociais típicas, o que atrasa o diagnóstico.


Como nos casos de Lucas, Rúbia e seus filhos, o diagnóstico tardio aconteceu porque, receberam outras explicações para seus sintomas.


O chefe de unidade de neuropediatria do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP) e especialista em autismo, Erasmo Barbante Casella, de 65 anos, ressaltou ao g1 que o diagnóstico precoce em adultos tem sido cada vez mais efetuado.


O diagnóstico de TEA é feito por um médico neurologista, que pode contar com o auxílio de um psicólogo. O maior obstáculo para fechar o diagnóstico em adultos, segundo Erasmo, é a formação não adequada do profissional, além dos próprios familiares do paciente.


De acordo com o neurologista, os pais que enxergam sinais, como problemas sensoriais, em seus filhos devem buscar uma avaliação completa. Já os médicos, por sua vez, devem se atentar em propor uma investigação profunda sobre o histórico do paciente, para, depois, fornecer ferramentas técnicas específicas para obter um resultado confiável.


“Os sintomas de TEA leve podem aparecer só mais tarde, e podem ser confundidos com TDHA, depressão e ansiedade. Principalmente meninas com TEA mais leve disfarçam os sintomas e comportamentos, o chamado ‘efeito camaleão’”, lembra.


Desde criança, Lucas afirma que se percebia diferente de outras com a mesma idade, mas não sabia explicar o porquê, assim como seus familiares que percebiam os sintomas, mas não encontravam justificativas.


“Quando chegou na adolescência, essa percepção de que eu era diferente passou a ser que tinha algo muito errado comigo, o que é bem problemático. Eu comecei a suspeitar da possibilidade depois que eu li uma reportagem sobre a Síndrome de Asperger. Assistia filmes também que têm personagens que têm autismo e eu me identificava mais com eles do que com as pessoas do meu convívio social, o que ajudou também”, indica.


O papel do psicólogo

 


A psicóloga, pedagoga e analista do comportamento de Bauru (SP), Larissa Helena Zani, de 27 anos, disse, em entrevista ao g1 que, como psicóloga, atua com intuito de auxiliar, junto a um médico neurologista ou psiquiatra, no diagnóstico em adultos.


A diferença, segundo ela, de diagnosticar crianças e adolescentes é que a primeira observação dos sinais deles ocorre dentro de uma escola. Ao contrário, quando adulto, é necessário que ele procure o atendimento, o que, por muitas vezes, não acontece.


“A gente aplica testes padronizados, fazemos resgate de coisas da infância e fazemos entrevistas com o adulto para o diagnóstico”, conta.


Assim que feito o diagnóstico, Larissa explica que se inicia a terapia de acompanhamento, que envolve os déficits e exageros comportamentais, emocionais, sensoriais e motores. O intuito, segundo a psicóloga, é ampliar as habilidades de autistas e reduzir os possíveis prejuízos e sofrimentos.


Larissa ainda reforça que quanto antes diagnosticado maior a promoção do desenvolvimento de habilidades que esses autistas não possuem em ambiente “natural”, de forma que a intervenção leva até o paciente um ensino estruturado.


“Dá para rastrear esses sintomas de forma precoce em autista, o que é importante para já iniciar a intervenção, mesmo sem um laudo fechado”, finaliza.


O g1 também conversou com a fonoaudióloga e especialista em intervenção de casos de TEA há mais de 15 anos em Bauru (SP), Patrícia Ramos Bueno Alexandre, de 43 anos. Ela explica que no caso específico para adultos, o atendimento varia conforme o histórico de cada paciente.


“Se o adulto, de casos leves, foi estimulado desde cedo a probabilidade é que ele já esteja reabilitado, desenvolvendo e desempenhando o que se espera para a sua idade. Caso contrário, se o adulto tem sintomas para o nível 2 ou 3 de autismo, é implementado o que a gente chama de comunicação alternativa e suplementar, com recursos de alta tecnologia, ou, a depender do aspecto cognitivo, por meio de figuras padronizadas”, comenta.


Segundo a fonoaudióloga, a primeira palavra que vem à mente quando se fala em adultos com TEA é “funcionalidade” e “autonomia”, no sentido de analisar o que falta para o desenvolvimento e o que precisa ser trabalho para que o paciente alcance a independência.


Depois do diagnóstico, que exige expertise do profissional, Patrícia reforça que, na fase adulta, raros sãos os casos de necessidade de uma fonoaudióloga. Contudo, é interessante que invistam no acompanhamento com uma equipe integrada e preparada, para uma investigação minuciosa.


“Depois que ele atinge a linguagem oral, correspondente ao que se espera, ele recebe alta. Há casos de indicação para os casos de diagnóstico tardio que o paciente tem realmente dificuldade para comunicação e necessita de aprimoramento para leitura e escrita. Há também casos de alimentação que a fono também pode atuar. Quem chega na fase adulta são casos de sintomas leves. Isso porque, os casos mais graves, os familiares já investigam quando crianças”, pontua.


Conforme a fonoaudióloga, inclusive, há riscos para a saúde de autistas que não recebem intervenções e o acompanhamento correto.


“Os adultos que chegam tarde no consultório funcionam como um livro em branco. Então, essa etapa da estimulação que deveria ter sido feita lá atrás passou. É muito comum que a gente tenha associado ao autismo em adultos uma bipolaridade, humor deprimido, transtorno de humor caso essas dificuldades não tenham sido identificadas e trabalhadas. Essas comorbidades também dificultam na hora de fechar um diagnóstico correto, porque fica muito mascarado”, destaca.


Em relação à importância de um diagnóstico precoce, a principal pergunta que a fonoaudióloga responde aos familiares é sobre a possibilidade de volta da fala em crianças autistas não-oralizadas. Sobre isso, Patrícia ressalta que o futuro depende de como essa criança é estimulada. Ou seja, quanto antes diagnosticado, mais rápido a intervenção.


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