Embora o Brasil tenha se tornado um Estado laico há 132 anos, os adeptos das crenças de matriz africana sofrem a maioria dos ataques de intolerância religiosa no país. Amparados pela fé, resistem às ameaças físicas e verbais. Enfrentam a depredação de seus espaços de culto. Neste sábado (20/1), Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, os dados mostram que essa realidade não é diferente no Distrito Federal.
A hostilidade aparece no dia a dia. Luís Carlos Batista, 57 anos, conhecido como Ogã Pai Luis (Axogum), relembra um momento marcante quando estava em um curso de aperfeiçoamento, onde diariamente os policiais faziam oração. O subtenente na reserva da Polícia Militar, conta que passou cinco meses ouvindo apenas católicos e evangélicos nos encontros. Em uma quarta-feira, que era dia de Xangô, ele levantou a mão e pediu a palavra: “Vocês vão me desculpar, mas vou louvar o que eu acredito, que é o meu orixá”, falou ao grupo. “Comecei a cantar, mas observei que no fundo da sala havia pessoas virando a boca. Ninguém comentava nada, mas eu via nos olhos delas”, recorda.
Pai Luís, candomblecista há 38 anos, não se importou com esse tipo de reação e foi elogiado por alguns colegas de profissão. Ele explica que o Candomblé acolhe a todos, sem nenhum tipo de discriminação, e aceita as pessoas independentemente de cor, orientação sexual e classe social.
Geovanna Moreira, 23, cresceu em família evangélica. Após os 18 anos, quando começou a estudar sobre outras doutrinas, encantou-se pela Umbanda. “É uma religião que se tornou extremamente importante na minha vida. Posso estar em um péssimo dia, mas só de ir ao terreiro me sinto mais leve, feliz e em paz”, confidencia. “As pessoas tem que entender o quão errado é toda essa história da intolerância religiosa, o quão mal faz aos outros. Você sempre vê histórias de terreiros que foram queimados, pessoas que foram ofendidas por estarem de branco, guias ou algo do tipo”, lamenta a técnica de enfermagem.
Mãe no Santo do Centro Caboclo Serra Negra, Tereza Pereira de Jesus, 65, destaca o acolhimento como principal característica de sua crença. “Nosso trabalho é resgatar almas, pessoas, trabalhar pelo bem espiritual, emocional, psicológico e social das pessoas. A Umbanda tem essa magia”, afirma a sexagenária, umbandista há 52 anos, acrescentando que é importante a divulgação e o ensino da história das religiões de matrizes africanas como instrumento para ajudar a dar fim ao preconceito.
Insegurança
De 2018 a 2022, a Polícia Civil (PCDF) registrou 39 ocorrências de intolerância contra religiões de matriz africana, o que representa mais de 70% de todos os episódios envolvendo outras crenças. Em comparação às demais, a diferença mostra o tamanho do preconceito. No mesmo período, de acordo com a PCDF, foram seis ataques envolvendo a religião espírita e quatro a evangélica, além de outros quatro relacionados a uma crença não informada. O catolicismo aparece em último lugar com duas ocorrências — em 2020 e 2021.
Não há uma estatística que reúna os dados de todas as forças de segurança. Entre janeiro e novembro de 2022, por exemplo, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) informou o total de 21 ocorrências de discriminação religiosa na capital federal — uma a mais do que no mesmo período do ano anterior. Porém, não se sabe quantas se referem às crenças de matriz afro.
Erika Fuchida, da Comissão de Liberdade Religiosa da Seccional do DF da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-DF), avalia que a ausência de um recorte específico comprova que a proteção direcionada a essas crenças é deficiente. Para a especialista, o caminho para haver respeito passa pelo Estado, que deve ter políticas públicas efetivas, além de educar a população desde cedo. “Precisamos trabalhar os casos de intolerância na raiz, e não lá na ponta, trazer o assunto para as escolas, o que é muito importante para que as crianças cresçam vendo que as pessoas são todas iguais”, conclui a advogada.
Resistência
Para Rafael Moreira, presidente da Federação de Umbanda e Candomblé de Brasília e Entorno, há uma falha do Estado ao tratar da questão. “A gente tem pouca visibilidade em todas as atividades relacionadas a esse tema. Antes, tínhamos a Secretaria de Igualdade Racial do Distrito Federal. Hoje, virou uma subsecretaria, onde existem poucos cargos para fazer um trabalho efetivo”, ressalta.
A instituição dispõe de suporte aos líderes religiosos vítimas de discriminação. “Quando o caso chega até nós, mandamos nossos advogados para acompanhá-los até a delegacia, para que façam a ocorrência de forma adequada. Sempre aconselhamos a encaminhar a denúncia para a Delegacia Especial de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa, ou por Orientação Sexual, ou Contra a Pessoa Idosa ou com Deficiência (Decrin)”, recomenda. A organização também realiza um trabalho de esclarecimento aberto ao público nas escolas das periferias.
Pensando no enfrentamento da intolerância, o deputado distrital Fábio Félix (PSol) foi autor do projeto que cria o Programa Distrital de Combate ao Racismo Religioso. O objetivo é promover os valores democráticos da liberdade de credo e da laicidade do Estado, via articulação de diferentes órgãos públicos e responsabilizando quem incorrer em crime. O texto foi aprovado em dezembro pela Câmara Legislativa e aguarda sanção do Executivo.
Ataques
Em março do ano passado, um homem invadiu o terreiro Ilê Axé Omò Orã Xaxará de Prata/Ofa de Prata, na zona rural de Planaltina. Com um facão, destruiu as esculturas de orixás.
No mesmo mês, a loja Iansã Ilê, de materiais afro-religiosos, foi invadida e depredada por uma pessoa que se dizia cristã.
Em novembro de 2022, um policial militar do Distrito Federal denunciou a Decrim um caso de intolerância religiosa e homofobia. Ao ir à Associação dos Praças Policiais e Bombeiros Militares (Aspra-DF), no Gama, para questionar serviços que não estavam funcionando, foi orientado a reclamar na ouvidoria. Depois de ir embora, ouviu um insulto, proferido pelas costas:”Além de viado é macumbeiro”.
Segundo o artigo 208 do Código Penal Brasileiro (CPB), é crime zombar de alguém publicamente por motivo de crença ou função religiosa, impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso, humilhar publicamente ato ou objeto de culto religioso. A pena é de um mês a um ano de prisão, e multa. Se houver uso de violência, a pena é aumentada em um terço.
Onde denunciar
Polícia Civil
Telefone 197
Denúncia pelo site: pcdf.df.gov.br/servicos/197
Unidade de assuntos religiosos: 3961-1524
Comissão de Defesa dos Direitos Humanos, Cidadania, Ética e Decoro Parlamentar da CLDF
E-mail: [email protected]
WhatsApp: 99904-1681
Site: cl.df.gov.br/web/guest/ccj
Comissão de Liberdade Religiosa da OAB-DF
Telefones: 3035-7244, 3035-7245
WhatsApp: 98570-5949
E-mail: [email protected]
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