Como ficou a situação do trabalho escravo no Catar? País sede da Copa é alvo de denúncias de exploração e mais de 6.000 mortes por causa das construções da Copa

O país-sede da Copa do Mundo de 2022 é uma nação relativamente nova. O Catar tornou-se independente da Inglaterra em 1971 e teve sua primeira constituição escrita em 2005.


É por isso que muitas pessoas só ouviram falar do país quando ele foi escolhido pela Fifa para receber o maior evento de futebol do mundo.


No campo econômico, o país começou a ganhar destaque muitos anos antes, a partir da década de 40, quando foram descobertas grandes reservas de petróleo e gás natural em seu pequeno território. Isso transformou o que era um dos países mais pobres do Golfo Pérsico em um dos estados mais ricos da região em poucos anos.


Esse rápido crescimento econômico se reflete na moderna capital Doha, no canal de notícias de alcance internacional Al Jazeera e na companhia aérea Qatar Airways.


Só que para construir tudo isso, o país, que tem uma população nativa estimada em 300 mil pessoas, teve que contar com a força de trabalho de mais de 2 milhões de imigrantes. Estrangeiros que, em muitos casos, tiveram que trabalhar em condições análogas à escravidão, segundo denúncias da Anistia Internacional, Human Rights Watch, entre outras entidades internacionais, dentro de um sistema conhecido como kafala.


O que é o sistema kafala?

O sistema kafala, que também poderia ser chamado de patrocínio, define a relação entre trabalhadores estrangeiros e seu empregador local, ou patrocinador.


Segundo o Council on Foreign Relations, grupo internacional que discute política externa, esse sistema foi criado em uma época de grande crescimento econômico, quando era preciso ter mão-de-obra barata e abundante.


As empresas ficam autorizadas pelo governo a buscar trabalhadores estrangeiros, muitas vezes por meio de agências de recrutamento. O empregador é quem cobre as despesas de viagem e oferece moradia ao imigrante.


Só que esses trabalhadores ficam presos aos seus patrocinadores. Além de começarem em dívida e ficarem dependentes da moradia oferecida, é preciso permissão se quiserem, por exemplo, tentar mudar de emprego ou simplesmente encerrar o contrato de trabalho.


“Sair do local de trabalho sem permissão é uma ofensa que resulta na rescisão do estatuto legal do trabalhador e potencialmente prisão ou deportação, mesmo que o trabalhador esteja fugindo do abuso”, explica a jornalista Kali Robinson, em um documento no site do Council on Foreign Relations.


Isso limita muito a liberdade do trabalhador, que acaba sendo submetido a maus tratos por conta dessa relação de domínio.


Apesar de ser conhecido como uma forma de escravidão moderna, o kafala é usado em diversos países da Península Arábica, entre eles o Catar, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes.


Mudanças lentas

Segundo a Anistia Internacional, não seria possível a realização da Copa do Mundo sem os mais de 2 milhões de trabalhadores imigrantes, mas o sistema baseado em patrocínio deixa o estrangeiro vulnerável a um ciclo de abusos.


Após anos de pressão por parte da Anistia e outros grupos de direitos, o Catar assinou em 2017 um acordo com a Organização Internacional do Trabalho, comprometendo-se a seguir “práticas internacionais de relações de trabalho”.


Desde então, o governo do Catar promulgou leis que beneficiam o trabalhador estrangeiro. Uma das principais mudanças foi a retirada da exigência de uma autorização para pedir demissão, possibilitando que os estrangeiros pudessem sair do país sem necessidade de avisar previamente o seu empregador.


Outra mudança é que desde 2018 os funcionários podem tentar mudar de empresa sem ter que avisar o atual empregador.


Também foram incluídas regras como salário-mínimo, limitação na jornada de trabalhadores domésticos e a instalação de um comitê para disputas trabalhistas. A criação de sindicatos, no entanto, continua proibida.


Apesar da vitória legal, a Anistia diz que as regras não estão sendo implementadas com a força ou cobrança do governo que eles esperavam.


“Milhares de trabalhadores continuam à mercê de empregadores inescrupulosos”, diz a entidade.


Ainda há relatos de passaportes que são confiscados, principalmente entre trabalhadores domésticos. Além da dependência de estar empregado para ter um lugar para morar, o que tira o poder do trabalhador de reivindicar seus direitos.


Outra denúncia da Anistia é de salários atrasados ou de falta de pagamentos. Para resolver essa questão, o governo implementou um sistema eletrônico para monitorar e detectar irregularidades, que segundo a entidade, também não funciona corretamente.


No caso dos trabalhadores domésticos, muitos ouvidos pela Anistia disseram trabalhar mais de 14 horas por dia, sem nenhuma folga semanal. Além dos que declararam serem insultados, cuspidos ou agredidos fisicamente.


‘Foquem no futebol’

A Fifa escreveu no início do mês para as seleções da Copa do Mundo pedindo que se concentrem no futebol no Catar e não deixem o esporte ser arrastado para batalhas ideológicas ou políticas.


A carta do presidente da Fifa, Gianni Infantino, e da secretária-geral da entidade, Fatma Samoura, é uma resposta não apenas a preocupações com o tratamento de trabalhadores imigrantes, mas também em relação a protestos feitos pelas seleções sobre outras questões, como direitos da comunidade LGBTQIA+.


“Por favor, vamos agora focar no futebol!”, disseram Infantino e Samoura de acordo com a rede britânica Sky News.


“Sabemos que o futebol não vive em um vácuo e estamos igualmente cientes de que existem muitos desafios e dificuldades de natureza política em todo o mundo. Mas, por favor, não deixem que o futebol seja arrastado para todas as batalhas ideológicas ou políticas que existem”, diz a carta.


Steve Cockburn, chefe de justiça econômica e social da Anistia Internacional, respondeu por meio de um comunicado.


“Se Gianni Infantino quer que o mundo ‘foque no futebol’, há uma solução simples: a Fifa pode finalmente começar a abordar as sérias questões de direitos humanos em vez de colocá-las para debaixo do tapete”, afirmou.


A seleção australiana de futebol se manifestou pedindo uma posição do governo do Catar sobre direitos humanos negados e criminalização de relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo.


O governo holandês confirmou que enviaria uma delegação para o Catar em novembro, antes do início do evento, devido a preocupações com o tratamento dado aos trabalhadores migrantes.


A Federação Dinamarquesa de Futebol (DBU) disse que a Fifa rejeitou seu pedido de jogar com camisas com as palavras direitos humanos para todos. “Acreditamos que a mensagem é universal e não um apelo político, mas algo que todos podem apoiar”, disse o executivo-chefe da DBU, Jakob Jensen, à agência de notícias Ritzau no dia 10 de novembro.


Construtora francesa

Um juiz da França colocou a Vinci Construction Grands Projets, uma unidade do grupo de construção francês Vinci, sob investigação formal no início do mês por acusações de trabalhadores migrantes no Catar, disse o grupo de direitos humanos Sherpa.


“Estamos satisfeitos com a investigação formal”, disse Sandra Cossart, chefe da Sherpa France. “É a primeira vez que uma empresa é cobrada dessa forma pelas atividades de uma de suas subsidiárias no exterior.”


Essa decisão vem a partir de uma denúncia de 2019 apresentada pelo grupo de direitos humanos Sherpa, que tem sede em Paris, e pelo Comité contre L’esclavage Moderne (Comitê Contra a Escravidão Moderna), junto com 11 pessoas que trabalhavam para a Qatari Diar Vinci Construction, subsidiária da Vinci no Catar, na qual a empresa francesa possui uma participação de 49%.


As duas ONGs e os 11 ex-trabalhadores acusam a Vinci de “trabalho forçado” e “manter as pessoas em servidão”, entre outras acusações.


Vinci disse, através de seu advogado Jean-Pierre Versini-Campinchi, que iria imediatamente recorrer da decisão. Em nota, a empresa negou as acusações, disse que sempre se preocupou com as condições dos trabalhadores e declarou que não participou das obras para a Copa do Mundo 2022.


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