Atenção: esta reportagem contém detalhes que podem ser sensíveis para alguns leitores.
Em maio de 1983, Andrew Mould encontrou um objeto sólido arredondado, enterrado na turfa em um pântano chamado Lindow Moss em Cheshire, no noroeste da Inglaterra. O objeto lembrava uma antiga bola de futebol feita de couro, mas um olhar mais atento revelou que se tratava de algo muito mais assustador.
“Nós limpamos tudo e sabíamos que era um crânio”, segundo Mould. No seu interior, havia até uma substância amarelada que ele soube depois que se tratava dos restos do cérebro.
Encontrar restos humanos no pântano não é totalmente uma surpresa. Há séculos existem relatos de partes de corpos vindas à superfície em pântanos similares a Lindow Moss em todo o norte da Europa.
O corte de turfa era o negócio familiar de Mould. Muitos dos seus parentes trabalhavam no pântano e ele viajava para Lindow Moss desde que era criança para ver seu pai cortar a turfa.
Mould já havia lido sobre esses casos e ele próprio havia encontrado “pedaços” de corpos durante o seu trabalho, mas este caso era diferente. Ele então fez o que a maioria das pessoas faria e informou a polícia.
Havia já mais de 20 anos que a polícia de Cheshire suspeitava que um morador local, Peter Reyn-Bardt, teria assassinado sua esposa Malika de Fernandez, mas o corpo dela nunca havia sido encontrado. Encontrar um corpo, ou parte dele, vindo à superfície no pântano próximo poderia finalmente encerrar o caso.
E, quando a polícia de Cheshire contou a Reyn-Bardt que o crânio de uma mulher havia sido desenterrado em Lindow Moss, ele confessou ter matado sua esposa. “Foi há tanto tempo que eu achei que nunca seria descoberto”, disse ele aos investigadores.
O que Reyn-Bardt não sabia é que o crânio não era da sua esposa morta. Na verdade, ele pertenceu a uma mulher que havia vivido cerca de 1.600 anos antes. Por isso, enquanto a polícia encerrava um caso, os arqueólogos abriam outro, muito mais misterioso.
Nas profundezas aquosas ácidas do pântano, com baixo teor de oxigênio, bactérias e outros micro-organismos não conseguem decompor tecidos orgânicos. Por isso, restos biológicos permanecem efetivamente em suspensão por milhares de anos.
No caso da Mulher de Lindow, como ela ficou conhecida, o pântano chegou a preservar até um globo ocular, além do seu cérebro.
Existem muitos outros como ela. Em todo o norte da Europa, o mesmo processo que transforma musgos em turfa conserva restos humanos na forma de corpos do pântano.
Essas pessoas vêm sendo enterradas em pântanos da Irlanda até a Alemanha desde o ano 2000 a.C. – embora tenham sido encontrados esqueletos sem tecidos moles que foram datados até 8500 a.C.
Os arqueólogos suspeitam que haja algo de incomum em muitos dos corpos dos pântanos, além da sua extraordinária preservação.
Ser enterrado naquele período da história não era comum. Os enterros formais eram raros na Europa durante a Idade do Ferro. Os mortos muitas vezes eram cremados, recebiam funerais a céu aberto ou uma série de práticas diversas e criativas.
Muitos dos corpos do pântano eram de jovens adultos, adolescentes e crianças, aparentemente em forma e saudáveis. Alguns estavam nus, exceto por algum pedaço de corda, chapéu ou casaco bem preservado. Às vezes, as roupas eram enterradas separadamente dos corpos em locais próximos no pântano.
Mas, acima de tudo, muitos dos corpos haviam sofrido mortes extremamente violentas. E, como os métodos de exame forense dos corpos do pântano avançaram rapidamente nos últimos anos, estamos começando a descobrir os mistérios sobre esses corpos e quem eles eram, na vida e na morte.
Depois da Mulher de Lindow, outra descoberta feita ao acaso no mesmo pedaço de turfa ajudou a reformular o estudo de corpos do pântano na Europa. A descoberta foi feita por alguém que já é nosso conhecido – novamente, Andrew Mould.
No verão seguinte à descoberta da Mulher de Lindow, Mould estava trabalhando na esteira da máquina de moer turfa quando um torrão sólido escuro caiu aos seus pés.
“Pensamos inicialmente que fosse um pedaço de madeira do pântano”, relembra Mould. Mas, quando ele pegou o torrão, sentiu o que parecia ser o couro de uma bolsa.
Ele mostrou para um colega. “Foi aí que limpamos um pouco e vimos as unhas dos dedos dos pés.”
Nos dias que se seguiram, uma cabeça inteira e o dorso foram cuidadosamente escavados (mesmo que, desta vez, a polícia de Cheshire não tenha resolvido nenhum outro caso pendente). O Museu Britânico concluiu que o corpo era de um homem na casa de 20 anos de idade, com cerca de 1,73 m e 64 kg, que havia vivido perto do século 1° d.C.
“O espetacular a respeito dele é que ele quase foi morto por três vezes”, afirma Miranda Aldhouse-Green, professora emérita da Faculdade de História, Arqueologia e Religião da Universidade de Cardiff, no Reino Unido, e autora do livro Bog Bodies Uncovered (“Corpos do pântano descobertos”, em tradução livre).
“Ele recebeu uma morte prolongada muito específica por alguém que conhecia a anatomia humana”, explica ela. “Ele foi atingido na cabeça com força suficiente para atordoá-lo, mas não matá-lo. Ele foi então estrangulado e, ao mesmo tempo, teve sua garganta cortada.”
Por que um assassinato tão brutal? O excesso de violência usado para executar o Homem de Lindow indica algo muito mais incomum que um assassinato “normal”, segundo Aldhouse-Green.
Lugares sagrados
Para entender o destino dos corpos do pântano, é preciso primeiro compreender o pântano na Idade do Ferro e na Europa do Império Romano.
“Nós consideramos os pântanos como espaços vazios”, segundo Melanie Giles, professora sênior de arqueologia da Universidade de Manchester, no Reino Unido, e autora de Bog Bodies: Face to Face with the Past (“Corpos do pântano: cara a cara com o passado”, em tradução livre). “Não é assim que as pessoas da Idade do Ferro os viam.”
“Eles retiravam combustível do pântano, cortando turfa e retirando minério de ferro”, explica ela. “Eles produziam instrumentos e armas como caldeirões e espadas. Eles retiravam o musgo e teciam artigos extraordinários com ele. Eles caçavam as aves que viviam ali. Os pântanos eram lugares ricos e produtivos para as pessoas da Idade do Ferro.”
E existe o fato de que o pântano é uma região de fronteira, entre a terra e a água.
“Acho que os pântanos também são muito especiais porque eles são repletos de miasmas”, afirma Aldhouse-Green. “Eles têm vapores que saem deles e, às vezes, entram em combustão espontânea. Eles podem ter odores fortes. Eles parecem terra, mas não são terra. Eles podem ter sido compreendidos como sendo portais para o outro mundo e portais para os deuses.”
Até hoje, os pântanos elevados podem ser hipnotizantes, segundo Ole Nielsen, diretor do Museu Silkeborg em Hovedgården, na Dinamarca. Para ele, “realmente não é necessário fantasiar muito para imaginar que existem mais forças atuando do que você pode ver na realidade.”
Giles afirma que análises detalhadas das vizinhanças do local onde foi encontrado o Homem de Lindow demonstraram que, muito provavelmente, ele estava vivo quando adentrou pela última vez naquele ambiente de passagem.
Usando dados do Sistema de Informações Geográficas (GIS, na sigla em inglês) para mapear o pântano, os pesquisadores concluíram que o Homem de Lindow foi enterrado na sua parte mais profunda.
Conduzir uma pessoa morta ou atordoada até aquele local teria sido extremamente difícil naquele terreno traiçoeiro. “Como é muito perigoso chegar até aquele ponto, provavelmente ele estava vivo enquanto era transportado”, segundo Giles.
Os detalhes das suas lesões fatais apontam nessa direção. “O assassino era grande conhecedor da anatomia humana e sabia como manter aquela pessoa pairando entre a vida e a morte por muito tempo”, explica Aldhouse-Green. “Quando ele foi empurrado com o rosto para baixo contra o pântano, ele ainda estava respirando, pois havia água nos seus pulmões.”
Última refeição
Outros sinais vêm do estômago do Homem de Lindow. Análises meticulosas da sua última refeição revelam um prato muito simples à base de cevada, talvez um pouco torrado demais.
“A última coisa que ele comeu antes de morrer foi um alimento realmente muito simples”, segundo Sophia Adams, curadora do Período da Idade do Ferro Europeia e da Conquista Romana do Museu Britânico. “Ele comeu o que chamamos de pão na chapa.”
A falecida acadêmica celta Anne Ross, que realizou importantes trabalhos iniciais com o Homem de Lindow, argumentava que esse pão na chapa, feito de cevada e parcialmente queimado, revela algo sobre o seu destino.
Entre as classes sacerdotais britânicas daquela era, o pão na chapa era usado em uma cerimônia muito similar ao jogo dos palitos. As pessoas retiravam pedaços de pão na chapa de um saco e quem tirasse o pedaço queimado e torrado era escolhido como bode expiatório.
E o pão na chapa do Homem de Lindow também continha traços de outra planta denunciadora: o visco. Ross argumenta que isso indica relação com os antigos druidas, que eram conhecidos por realizar rituais de coleta de visco.
Aldhouse-Green destaca que o visco era conhecido na Antiguidade como planta medicinal para distúrbios nervosos e “pode ter sido http://ecosdanoticia.net/wp-content/uploads/2023/02/carros-e1528290640439-1.jpgistrado ao homem de Lindow para acalmá-lo e deixá-lo mais submisso frente à sua morte terrível”.
Outros corpos do pântano também contam últimas refeições incomuns. Um corpo dinamarquês conhecido como Homem de Grauballe é o de um agricultor da Idade do Ferro que viveu em cerca de 390 a.C., no centro da Dinamarca.
Sua última refeição incluiu mais de 60 tipos diferentes de vegetais, amassados em um mingau intragável de cereais, ervas com sabor amargo e mais de 13 espécies de grama.
“Você tem muitas sementes e plantas de uma área bastante ampla reunidas nessa refeição, o que indica muito conhecimento daquele território e sugere que era um ritual representado no sacrifício”, afirma Aldhouse-Green. “Mas você pode interpretar esta última refeição de uma infinidade de formas. Pode também ter sido uma forma de humilhação.”
O Homem de Grauballe também teve uma substância psicoativa acrescentada à sua última refeição – mas, neste caso, a intenção pode ter sido qualquer uma, menos de acalmá-lo.
Traços de toxinas alcaloides no intestino revelaram que sua última refeição incluiu o esporão-do-centeio, um fungo que cresce nas espigas de cereais como centeio e cevada. Em doses altas, o envenenamento com esse fungo causa alucinações e efeitos terríveis, conhecidos como Fogo de Santo Antônio. Eles incluem parada circulatória, sensação de queima e perda das extremidades por gangrena.
Mas, nos níveis encontrados no trato digestivo do homem de Grauballe, o efeito teria sido mais suave.
“Ele pode ter causado um comportamento muito estranho logo após a ingestão”, afirma Aldhouse-Green. “O fungo teria feito com que ele fizesse movimentos desordenados, sentisse muito calor e gritasse. Ele estaria à beira de um fenômeno psicótico extremo e, possivelmente, isso era parte das preliminares rumo ao sacrifício.”
Características distintas
Entre os corpos descobertos nos pântanos, existe um alto percentual de pessoas com características físicas diferentes que podem ter chamado a atenção na sua comunidade, segundo Miranda Aldhouse-Green.
A Menina de Yde, por exemplo, que viveu 2 mil anos atrás e morreu no pântano de Stijfveen, na Holanda, tinha curvatura pronunciada da espinha, que deve ter causado dores crônicas e provavelmente um andar cambaleante.
Outro corpo do pântano holandês da mesma época, a Mulher de Zweeloo, tinha uma forma de nanismo. E, no Reino Unido, o terceiro corpo antigo encontrado em Lindow Moss (conhecido como Lindow III) tinha um vestígio de um segundo polegar na mão direita.
“Existe a possibilidade de que as deficiências físicas não fossem exatamente comemoradas, mas sim marcadas como algo especial e poderoso, possivelmente associado a ser tocado ou abençoado pela divindade”, afirma Aldhouse-Green.
Mas ela salienta que não podemos ter certeza de como as diferenças físicas eram percebidas na Antiguidade e essas teorias são apenas especulativas.
Ética na exibição
Os corpos dos pântanos da Europa têm sido frequentemente exibidos em museus após sua escavação e preservação cuidadosa.
Mas surgiram controvérsias sobre a exibição pública dos corpos. Uma exibição itinerante em Ottawa, no Canadá, enfrentou reações negativas por exibir os restos humanos.
Ritual da morte
Talvez o rosto mais bem preservado de todo o mundo antigo seja o do Homem de Tollund, um corpo do pântano encontrado na Dinamarca em maio de 1950. Atualmente, ele repousa em posição fetal no Museu Silkeborg.
Como ocorre com muitos desses corpos, os ácidos do pântano transformaram a cor da sua pele em um tom preto-azulado. Seus pelos e cabelos ficaram com cor laranja brilhante, embora ele esteja usando um chapéu de pele de carneiro que cubra a maior parte.
Todas as linhas finas e quase todos os poros da pele são visíveis. Suas pálpebras enrugadas estão fechadas, dando a ilusão de um sono pacífico.
“Você consegue realmente conhecer essa pessoa”, afirma Ole Nielsen. “O rosto é a parte do corpo que detém a maior expressão do corpo humano. E é realmente fascinante conhecer um homem da Idade do Ferro, com mais de 2 mil anos de idade, que parece poder despertar a qualquer momento.”
Além do seu chapéu de pele de carneiro, o Homem de Tollund foi enterrado vestindo apenas um cinto de tecido na cintura e uma corda em volta do pescoço.
“Se ele estivesse vestido com alguma roupa de lã, ela teria sido preservada, sem dúvida”, segundo Nielsen. Os ácidos do pântano preservam colágeno e queratina, que estão presentes em materiais como a lã. “Os seus cabelos ainda estão ali, suas unhas estão ali.”
Também não há marcas de roupas na superfície da pele do Homem de Tollund.
“Nós realmente examinamos seu corpo com muito cuidado, usando microscópios. Ainda existem muitas folhas de musgo que podem ser observadas no corpo, mas nada que indique que houvesse alguma outra coisa sobre ele. Por isso, provavelmente ele foi morto como nós o vemos. É realmente muito inusitado vê-lo nu com um chapéu”, explica Nielsen.
No seu conjunto, as condições do homem de Tollund indicam um ritual da morte. “Para o sacrifício, ele foi barbeado e colocado no pântano com a corda do enforcamento”, destaca Nielsen.
Ele acredita que deixar a corda com o corpo seja simbólico, já que até um objeto simples como uma corda tinha valor e podia ser usado novamente.
“Ela provavelmente foi deixada como um sinal”, afirma Nielsen. “Sua função era ser colocado no pântano porque tinha aquele propósito. Se ele foi voluntário ou escolhido ao acaso, nós não sabemos. Mas ele não parece tão insatisfeito.”
Presentes para os deuses
A ideia de seguir voluntariamente para uma morte tão tenebrosa é difícil de entender para uma mente do século 21, mas pode não ter sido tão bizarra para as pessoas que viviam na Idade do Ferro.
“Precisamos pensar em um mundo em que os deuses estão em toda parte. Tudo o que você fizer é associado aos deuses”, afirma Aldhouse-Green. Por isso, manter os deuses felizes pode ser questão de vida e morte não só para os indivíduos, mas para comunidades inteiras.
“Se você aborrecesse os deuses, eles dariam uma colheita fraca, uma praga, as safras seriam perdidas e assim por diante. E você precisava ter os deuses do seu lado”, explica Miranda Aldhouse-Green.
Melanie Giles concorda. “Você está lidando com entidades que influenciam a sua vida, deuses ou espíritos, existe algo sobrenatural ali e se pode ter acesso pelo pântano”, afirma ela.
Giles acrescenta que pode ter havido um elemento circular para a oferenda de pessoas aos deuses pelo pântano. “Como as pessoas tiravam muito dos pântanos, elas parecem ter sido compelidas a devolver alguma coisa.” Às vezes, eram caldeirões, às vezes havia oferendas de alimentos como manteiga do pântano.
“Se você ofertar uma pessoa, uma vida – talvez fosse o melhor tipo de oferenda que você poderia fazer”, explica Giles.
“Existem alguns corpos que não exibem sinais de violência e essas pessoas podem ter simplesmente afundado”, ressalta ela. “São locais perigosos. As pessoas morrem no pântano – elas morrem de exposição, morrem tentando cruzar o pântano, perdem seus calçados ou calculam mal onde estão andando. Algumas delas podem ter sido mortes acidentais.”
Outros, segundo ela, podem ter sido simples assassinatos. Talvez o pântano deserto às vezes fosse apenas um local conveniente para atos abomináveis. E pode também ter havido vítimas de suicídio entre os mortos, talvez colocados ali em uma época em que essas mortes eram tratadas com medo e não com empatia.
“Os pântanos podem ter sido considerados o local certo para colocar um corpo perigoso – alguém que morreu misteriosamente ou de forma não natural”, afirma Giles.
“Parte disso tinha a ver com as declarações da igreja, de que não queria essas pessoas nos seus cemitérios. E parte disso porque o pântano é um local poderoso, além da visão humana, onde os mortos podem ser guardados”, conclui ela.
G1