O vencedor do Prêmio Nobel de Medicina de 2022 criou uma disciplina que contribuiu para essa importante descoberta: a paleogenômica.
Imagine que todas as páginas de um dicionário foram destruídas em um triturador de papel e você teve que reconstruir todo o trabalho.
Suponha que, além disso, as milhares de tiras picotadas daquele dicionário foram misturadas com as de milhares de outros livros, que também foram triturados.
Para piorar, por cima dessa montanha de papel cortado, foi despejada uma xícara de café.
Como você pode imaginar, o resultado disso é uma enorme bola colada que mistura milhões de letras e segmentos mínimos de um texto, que se tornou inelegível e confuso.
Mas será que é possível restaurar esse dicionário?
Essa foi a figura de linguagem que o cientista sueco Svante Pääbo usou no documentário First Peoples (“Primeiros Povos”, em tradução livre), da rede de televisão pública americana PBS, para descrever a dificuldade que enfrentava: a reconstrução do DNA neandertal após de dezenas de milhares de anos da extinção dessa espécie.
A passagem do tempo, a corrosão dos possíveis restos desses humanos parentes do Homo sapiens, a interação com bactérias e fungos ao longo de centenas de séculos e o contato com os humanos modernos impossibilitariam a reorganização das peças genéticas.
“Existem todos os tipos de danos no DNA que podem fazer com que você determine sequências erradas, especialmente quando se começa com poucas moléculas. Também há contaminação do material por DNA humano, que está em quase toda parte”, escreveu Pääbo em um artigo publicado em 1989.
Mas Pääbo e sua equipe conseguiram fazer o que parecia improvável. Graças a isso, ele ganhou o Prêmio Nobel de Medicina de 2022 na segunda-feira (3/10).
“Por meio de sua pesquisa pioneira, Svante Pääbo alcançou o impossível: sequenciar o genoma neandertal, um parente extinto dos humanos modernos”, declarou o comitê do Nobel ao anunciar a decisão.
Mas como ele conseguiu esse feito?
A chave está no Egito Antigo
Para entender o processo que levou Pääbo, de 67 anos, à reconstrução do genoma neandertal, é preciso voltar à sua adolescência.
Quando tinha 13 anos, a mãe o levou de férias para o Egito.
Lá, ele ficou fascinado com a antiga cultura e arqueologia do país e voltou convencido de que iria se tornar um egiptólogo.
Quando chegou a hora de começar a graduação, Pääbo entrou na Universidade de Uppsala, 70 quilômetros a noroeste de Estocolmo, capital da Suécia, e começou de fato a estudar egiptologia.
No entanto, depois de dois anos, ele percebeu que isso não era o que aspirava na vida. A carreira foi orientada para o estudo da gramática hieroglífica (forma de escrita por símbolos adotada no Egito Antigo), e ele sonhava em descobrir múmias e pirâmides.
“O trabalho não era do tipo romântico, meio Indiana Jones, que eu pensava”, disse Pääbo à BBC há alguns anos.
Foi por isso que ele passou a cursar medicina. No doutorado, resolveu estudar genética molecular, o que o levou a vincular o interesse que tinha desde a adolescência ao campo profissional.
“Comecei a perceber que tínhamos todas essas tecnologias para clonar o DNA, mas ninguém parecia tê-las aplicado a vestígios arqueológicos, principalmente às múmias egípcias”, disse Pääbo em um perfil publicado pela Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos.
A partir dessas ferramentas, ele poderia criar uma máquina do tempo genômica.
A inquietação o levou a estudar o genoma de múmias e, alguns anos depois, se mudar para os Estados Unidos com o objetivo de investigar DNAs antigos na Universidade da Califórnia em Berkeley.
Ele então seguiu o trabalho em Munique, na Alemanha, onde se dedicou a mamutes e ursos que viviam em cavernas.
Apesar de todas as dificuldades, Pääbo não desistiu. Com o tempo, ele se propôs a fazer algo muito mais ambicioso: decifrar o DNA neandertal e o que o diferencia dos seres humanos atuais.
Sem querer, ele praticamente criou uma nova disciplina na ciência: a paleogenômica.
Resquícios de 40 mil anos
No final da década de 1990, Pääbo foi contratado pelo Instituto Max Planck de Antropologia Evolucionária, localizado em Leipzig, na Alemanha.
Ele já estava trabalhando com partes do DNA dos neandertais. No novo local de trabalho, porém, a oferta aumentou: o cientista teria a oportunidade de investigar diretamente o núcleo do DNA desses parentes próximos da nossa espécie.
“No novo instituto, Pääbo e equipe melhoraram constantemente os métodos para isolar e analisar DNA de restos ósseos arcaicos. O time de pesquisa aproveitou os novos avanços tecnológicos, que tornaram o sequenciamento de DNA muito eficiente”, detalha o comitê encarregado de conceder o Prêmio Nobel de Medicina.
O estudo do genoma neandertal usou fragmentos de ossos dessa espécie que estão preservados há mais de 40 mil anos. A partir desse material, foi possível obter uma quantidade suficientemente boa de DNA.
Um fator que contribuiu para o sucesso da investigação foi o canibalismo entre esses hominídeos.
“Quando analisamos as amostras, notamos que, muitas vezes, tivemos mais sucesso com fragmentos de ossos que realmente tinham marcas de corte ou foram deliberadamente quebrados. Segundo paleontólogos, isso sugere que esses indivíduos haviam sido comidos”, disse Pääbo à BBC.
“Se você separar os ossos da carne e jogá-los no canto da caverna, onde secam rapidamente, eles terão menos atividade microbiana e ficarão preservados”, acrescentou.
“Temos de agradecer ao canibalismo pelo sucesso do nosso projeto.”
Pääbo usou a tecnologia de sequenciamento de DNA e criou laboratórios com altos padrões de limpeza para evitar a contaminação das amostras.
Ele então analisou milhões de fragmentos de material genético e usou técnicas estatísticas para isolá-los de genes modernos, vindos de seres humanos, bactérias e fungos.
Com isso, ele não apenas reconstruiu o genoma neandertal, como também encontrou ligações entre esse material genético e o do humano moderno.
Isso, por sua vez, comprova que o Homo sapiens teve relações sexuais e descendentes com os neandertais — e essa interação gerou novas espécies, como os denisovanos que viveram na Ásia.
Essa série de descobertas levaram o meticuloso pesquisador sueco a ganhar um dos mais destacados prêmios do mundo.
G1