Analfabeto e vítima de trabalho análogo ao escravo, Márcio Messias de Conceição conseguiu somente aos 72 anos de idade obter o registro de nascimento. O idoso mora em Campinápolis, a 658 km de Cuiabá, e teve acesso ao documento após uma decisão judicial.
Natural do Maranhão, ele mora em Mato Grosso desde a década de 1980. Em entrevista ao UOL, o idoso contou que a falta de documentação era comum na própria família. “Ninguém na minha casa tinha documentação. Nem minha mãe, nem minha avó e nem minhas tias, nada. Então, eu nunca tive também”.
Sem documento, ele sempre contou com apoio de outras pessoas quando necessitava ter acesso a serviços como os de saúde, por exemplo. “Quando eu precisava, alguém ia comigo para pegar o remédio. Sempre dependi de alguém para ajudar”.
Submetido a condições degradantes de trabalho por quase três décadas em uma fazenda na região, foi somente depois de deixar a propriedade rural que, ajudado por um amigo, conseguiu um advogado e entrou com o pedido na Justiça para ter o registro de nascimento.
O processo foi julgado no dia 9 de setembro pela juíza substituta Lorena Amaral Malhado, que determinou com urgência o registro tardio de nascimento, após parecer favorável de um promotor de Justiça substituto.
“Aqueles que não possuem registro vivem em condição de invisibilidade social, situação experimentada pelo requerente, que não possui o instrumento que possibilita o exercício do direito ao nome e toda a proteção jurídica a tal direito da personalidade: o registro”,
Lorena Amaral Malhado, juiza
Na audiência, Conceição pôde escolher o próprio nome. Apesar de ter tido uma tia que o chamava de Raimundo, ele passou a ser conhecido como Márcio na região onde morou a maior parte da vida.
“A juíza perguntou se eu queria Raimundo, mas eu disse que achava que Márcio era melhor. E Messias da Conceição são sobrenomes da minha família”, contou.
O idoso afirmou ainda que ficou inseguro em fazer a solicitação à Justiça. “Eu estava com muita vergonha de mexer com isso por causa da minha idade. E tinha muita especulação também. Eu achei até que não ia dar certo”.
Sem mulher e filhos, agora ele mora sozinho numa casa em Campinápolis e trabalha com o amigo Aparecido Antônio de Lima, 50, que era dono de uma mercearia na região e atualmente atua como técnico em eletrônica. Ele conhece o idoso desde 2004.
“Eu conheci o Márcio quando tinha esse comércio e ele ainda trabalhava na fazenda. Ele ia lá comprar as coisas. Quando vi que ele tinha saído de lá, fiquei sensibilizado com a situação, triste mesmo. Então agora o Márcio mora numa casinha aqui do lado, que é do meu filho e trabalha comigo”, disse Lima.
Conceição é assistido pela Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo da Secretaria de Estado de Segurança Pública, que mandou ofício pedindo agilidade no andamento do processo.
O direito à documentação básica é garantido pela Constituição Brasileira de 1988. Com o registro de nascimento em mãos, ele pensa agora em aprender a ler e escrever.
“Agora acabou a vergonha que eu tinha por não ter documento. Uma hora vou comprar uns cadernos e vou tentar estudar. Vou comprar uma bíblia também”, contou.
Trabalho análogo ao escravo
Desde que chegou a Mato Grosso, Conceição trabalhou com serviços gerais em fazenda. Foi numa delas que foi submetido a condições análogas à escravidão por 28 anos.
“Todo mundo que eu falava sobre o jeito que eu era tratado, dizia que estava errado. O dono da fazenda não me trazia para a cidade, eu morava num barraco cheio de cobra. Era escravo mesmo. Recebia por dia de trabalho e vinha só metade do dinheiro ainda”,
Márcio Messias de Conceição
Ele conseguiu deixar o trabalho ainda no ano passado, quando se mudou para cidade. Uma fiscalização do Ministério do Trabalho esteve na propriedade rural no primeiro semestre deste ano e, ainda que o trabalhador já não exercesse mais as funções lá, foram tomadas providências em relação ao caso.
“Esse trabalhador não chegou a ser resgatado formalmente porque já tinha oito meses que ele tinha deixado a fazenda. Mesmo assim, conseguimos reunir todas as provas para demonstrar que ele trabalhou no local, então fizemos um auto de infração formalizando o período que ele trabalhou lá”, disse o auditor fiscal Adalto Araújo, que participou da fiscalização.
Araújo contou ainda que o Ministério do Trabalho também peticionou no processo do registro de nascimento. “Pedimos para ter uma atenção especial porque era um caso de redução à condição análoga à de escravo”, disse Araújo.