O Acre estava em festa no dia 30 de agosto de 2002, período em que ocorria a maior feira agropecuária no estado. O dia havia amanhecido com o sol forte, típico de agosto. Os acreanos se preparavam para o show do cantor Frank Aguiar, em Rio Branco, que estava marcado para aquela noite.
Porém, no fim da tarde, o clima de festa foi cortado por um dos maiores acidentes aéreos já registrados no estado. Foi no fim da tarde que passou a circular a informação de que o voo 4823, da Rico Linhas Aéreas, havia caído pouco antes de pousar na capital. Começava ali o registro de uma das maiores tragédias que marcaram o Acre. A festa foi cancelada e todos os acreanos acompanhavam estarrecidos a tragédia.
O Grupo Rede Amazônica completa 50 anos no dia 1º de setembro e o g1 faz uma série que mostra algumas das principais coberturas do grupo no Acre. Uma delas é do acidente da Rico, que matou 23 pessoas e completa 20 anos no dia 30 de agosto.
O avião saiu de Cruzeiro do Sul, fez uma escala em Tarauacá e, a 1,5 mil metros do aeroporto de Rio Branco caiu, matando 23 pessoas. De acordo com o Centro de Investigações e Prevenção de Acidente Aeronáuticos (Cenipa), das 23 vítimas fatais, três eram tripulantes e 20 passageiros.
O acidente também deixou seis passageiros em estado grave e dois com lesões leves. A aeronave levava 31 pessoas e teve danos graves. A recuperação da aeronave foi considerada economicamente inviável. Ainda quando caiu, o impacto com o solo fez a aeronave atingir seis bezerros e duas vacas, além de ter colidido contra uma porteira.
O local onde o avião caiu era de difícil acesso, em estrada de terra e, para dificultar ainda mais, caía uma chuva torrencial. As equipes de TV foram as primeiras a chegar no local do acidente e presenciaram um verdadeiro cenário de guerra.
Este foi o segundo maior acidente aéreo registrado no Acre, ficando atrás somente de um desastre aéreo registrado em 28 de setembro de 1971 em Sena Madureira. O avião DC3, da empresa Cruzeiro do Sul, apresentou problemas no motor, bateu em uma árvore e caiu na região da comunidade Boca do Caeté que fica a poucos minutos do centro de Sena Madureira. Com a queda, o avião explodiu e todos os seus ocupantes morreram carbonizados, foram 33 vítimas fatais na época.
Cobertura jornalística
Em entrevista à Rede Amazônica em 2012, o repórter cinematográfico Célio Roberto, que foi enviado ao local, conta o que viu.
“A gente caía muito, porque era muita lama. A gente ainda demorou uns 40 minutos para chegar ao local, porque tinha muita gente passando. Em todos esses anos, nunca fiz a cobertura de uma reportagem para ela marcar tanto a minha vida, de forma negativa. A gente trabalhava e se emocionava”, contou.
Quem estava à frente da direção da Rede Amazônica no Acre naquela época era o jornalista Jefson Dourado. Ele conta que assim que a informação da queda chegou até a redação, foi montada uma verdadeira força-tarefa para acompanhar tudo.
“A gente soube do acidente no início da noite, o que sabíamos era que tinha acontecido em uma região próxima ao aeroporto e, a partir de então, começamos a mobilizar as equipes. Era um período também de Expoacre, tinha uma equipe na feira e pedi que fosse direto para o possível local onde teria acontecido o acidente e eu fui para a equipe do ao vivo. O Bruno Cássio ficou no estúdio na época, dando as informações. O Jairo Barbosa e o Célio Roberto foram até o local do acidente, uma área de difícil acesso, porque estava chovendo e foram um dos primeiros a chegar no local e verificaram de perto o resgate das vítimas, sobreviventes e esse foi o momento mais tenso, porque os familiares de todo o estado sabiam do acidente e, de repente, nós éramos a única fonte de informação”, relembra.
As imagens mostram amontoado de corpos, sirenes e muita correria. Como o local tinha muita lama, o pedido era que pessoas que tivessem caminhonetes traçadas ajudassem no resgate dos corpos. A entrada do pronto-socorro da capital também era a imagem de dor e sofrimento. O Acre foi coberto pelo sentimento de luto.
‘A gente se comovia junto’
Repórteres cinematográficos que estavam de férias foram convocados para fazer a cobertura do desastre. Naquele dia, o jornalista disse que o trabalho se estendeu horas a fio pela madrugada.
“No dia seguinte ao acidente, imagina a nossa dificuldade, não só para acessar o local, porque tinha ainda equipe do socorro, equipe fazendo perícia, assim como o pessoal da FAB, então a gente tinha dificuldade de acesso ao local, dificuldade de informações do que tinha acontecido de fato e o mundo inteiro querendo essas informações. Todas as rádios se baseavam no que a gente coletava, então dobramos a carga horária de todo mundo para atender a demanda de todos os telejornais”, conta Dourado.
Um acidente como esse repercute ainda por muito tempo. Não é à toa que até hoje, quando se toca no assunto do acidente, as histórias ressurgem e, para quem perdeu alguém naquela noite, é difícil não reviver o luto.
“Como o acidente teve várias vítimas e algumas bastante conhecidas e isso repercutia muito, porque cada um era uma história e em cada história íamos em busca dos personagens dessa história. Em cada uma dessas histórias, a gente sofria junto, a gente se comovia junto. Foi uma semana de muito trabalho, mas também de muito reconhecimento, porque a gente era um instrumento para que aquelas famílias pudessem homenagear as vítimas e ao mesmo tempo pudessem ter as informações”, destaca.
A afiliada da Globo no Acre fez entradas nos telejornais nacionais e também na GloboNews. O mundo inteiro voltava os olhos para saber o que tinha acontecido.
Renascimento
“Tem que continuar celebrando a vida, mas sempre lembrando daqueles que se foram”. A frase é da médica pneumologista Célia Rocha, que é uma das sobreviventes desse desastre aéreo. Ela é uma das resgatadas que aparecem nas imagens com parte do couro cabeludo arrancado.
Natural de João Pessoa, a médica conta que na época a família, que morava no Nordeste, ficou sabendo do acidente pelo Jornal Nacional. Célia era secretária executiva na Saúde estadual e havia ido a Cruzeiro do Sul a trabalho. Com ela, vários amigos e colegas de profissão estavam naquele voo, que tem o objetivo de voltar para casa.
Ela conta que estava sentada no meio do avião ao lado de uma amiga.
“O avião não deu absolutamente nenhum sinal, não percebi turbulência, luzes não acenderam no corredor, não houve nenhum aviso da cabine. Para mim, aquilo foi falta de combustível, porque não teve nem a opção de ir para Porto Velho e até hoje não houve uma elucidação do caso. Para mim, no meu desconhecimento, foi falta de combustível”, diz.
‘Marcado na história do estado’
A médica passou três meses internada no hospital 9 de julho em São Paulo e o acidente a fez fazer, ao todo, 37 cirurgias. Desde a reconstituição da face, joelho, pé e parafuso de titânio.
“Estar viva é uma benção dos céus, não tem nada que pague nesse mundo, mas sinto por todos os meus amigos que estavam naquele voo e que faleceram. Isso ficou marcado na história desse estado”.
A médica diz que não houve pânico no avião. Segundo ela, parte dos passageiros desmaiou, assim como ela. Penso eu, porque desacordei, que a pressurização caiu e muitas pessoas desmaiaram antes do impacto”, destaca.
Mesmo diante de tudo isso, Célia conta que não tem traumas e conseguiu superar tudo. Isso porque, um ano e nove meses depois de ter sobrevivido a uma queda de avião, ela descobriu estar com câncer de mama e teve que lutar contra a doença, que lhe rendeu 30 sessões de quimioterapia. Mais um desafio e mais uma vitória para contar.
“Você acredita que nunca sonhei com esse acidente? Nunca. Não tenho nenhum trauma. Tem um vídeo na internet que aparece, inclusive, cenas comigo. Cientificamente, não tinha condições de eu falar, mas, segundo o Augusto Vaz, que é cirurgião plástico e que estava no meu resgate, fui eu que conduzi todo o meu resgate. Era Deus, eu não podia falar, porque estava com sangramento total no pulmão e ele conta que eu disse: ‘não me transportem deitada, tenho que estar sentada’. Devo muito aos meus colegas aqui no Acre, tenho uma gratidão imensa, porque todo mundo correu”, destaca.
E não tem como uma história como a de Célia não virar livro. Em 2006, ela lançou o livro “Vida – força, fé e garra”, onde ela conta sua história como sobrevivente de uma queda de avião e de um câncer. Além das memórias, ela também reuniu relatos de amigos e até profissionais que fizeram a cobertura daquele dia que deixou marcas em todo o estado que ainda doem 20 anos depois.
Relatório
Duas décadas depois e ainda não se tem de fato a causa certa do acidente. O relatório do Cenipa lista algumas condições do dia do voo, como mau tempo, condições psicológicas da tripulação e até falta de combustível.
“Existem traços da participação de aspectos suspeitos relacionados ao temperamento dos tripulantes, ansiedade, aspecto perceptivo e da atenção, hábitos adquiridos, improvisação, excesso de autoconfiança e relacionamento interpessoal. É possível que a junção desses aspectos tenha propiciado uma situação onde se constata que as normas de Segurança de Voo na operação da aeronave não foram adequadamente observadas e consideradas”, destaca o documento.
Na aeronave, grande parte dos passageiros era de políticos, candidatos, empresários, ou seja, pessoas influentes e, inclusive, há o apontamento sobre a pressão de o avião pousar na capital justamente por carregar tanta gente influente.
“É aparente que existia uma pressão, mesmo que inconsciente, para que a aeronave pousasse em Rio Branco naquela noite, em virtude dos passageiros que transportava serem de influência reconhecida na região, tais como empresários e políticos.”
Na época, a comoção foi geral. O governador do estado naquele ano era Jorge Viana, que decretou luto em todo o estado por dois dias em respeito às vítimas. O velório e enterro dos que morreram foram acompanhados por centenas de pessoas, tanto na Assembleia Legislativa do Acre (Aleac), como na Catedral de Cruzeiro do Sul.
Fonte: G1