Gabinete de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e Socioeducativo (GMF) busca verificar “estado de coisas inconstitucional”, instituto criado pelo Direito colombiano, definido como “violações massivas e generalizadas” de garantias individuais
O dia começa com a missão de dar início à inspeção no presídio Manoel Néri, na Comarca de Cruzeiro do Sul, sede do segundo maior município do Acre, a 640 Km da capital Rio Branco, no Vale do Juruá.
Os juízes de Direito Robson Aleixo e Andréa Brito, coordenador e vice-coordenadora do GMF, o Gabinete de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e Socioeducativo, entram no local e, após receberem os dados da equipe gestora, logo passam a vistoriar as alas, celas, verificando a existência do número de vagas e de pessoas privadas de liberdade, de itens de higiene, colchões, fornecimento de água e comida, cumprimento de alvarás de soltura, o cumprimento do prazo nonagesimal (para revisão de prisões preventivas) previsto no art. 316 do CPP, entre outros.
A atividade buscou possíveis descompassos com a Lei de Execução Penal (LEP), as normas editadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), ilegalidades no sistema carcerário, o que passou a se chamar “estado de coisas inconstitucional”, como denomina o próprio STF.
O resultado das visitas, que também aconteceram nos presídios e unidades do Instituto Socioeducativo do Estado do Acre (ISE/AC) de Feijó e Tarauacá, irá constar no Relatório de inspeções anuais do GMF.
“Procedimento!”
Antes de entrar nas alas do presídio, é necessário aguardar até que os presos obedeçam ao procedimento de segurança do IAPEN/AC, que consiste basicamente em se sentarem todos com as mãos na nuca, no chão das celas onde alguns por obra das escolhas infelizes, circunstâncias sociais de miserabilidade, situação de rua, dependência química, outros por doença mental evidente, se encontram e ainda deverão permanecer, vários deles por décadas, até poderem progredir ao regime semiaberto.
A primeira coisa que os magistrados do GMF fazem é se apresentar de cela em cela, pedindo para que os detentos saiam da posição de “procedimento” e estabeleçam contato visual. Primeiro, um dos presos se aproxima e relata as condições gerais do cárcere. Os demais detentos também são ouvidos. A maioria pede informações processuais ou “cálculos” aproximados de quanto tempo falta para poder progredir de regime.
As inspeções do GMF e o estado de coisas inconstitucional
Os procedimentos de inspeções anuais do GMF atendem às diretrizes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para garantir a cidadania e direitos fundamentais dos detentos, atendendo à política de desencarceramento do STF e a aplicação das alternativas penais, mais eficazes e baratas, que fundamentam as bases da Justiça Restaurativa, além das políticas públicas dos Conselhos.
O termo Estado de Coisas Inconstitucional foi criado pela Corte Constitucional da Colômbia e é declarado nos momentos em que o Tribunal se depara com uma situação de “violação massiva e generalizada” de direitos fundamentais, afetando um grande número de pessoas. O Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento de medida cautelar na ADPF nº 347/DF, que trata sobre as condições desumanas do sistema carcerário brasileiro, incorporou o instituto ao ordenamento jurídico do país.
Unidade masculina
Dados de primeira mão fornecidos pelo GMF indicam que o Presídio Manoel Néri abriga hoje 696 detentos que cumprem pena no regime fechado. O número de vagas disponíveis é de 512. A taxa de ocupação é de 135,9%. O reeducando mais velho cumprindo pena na unidade tem 68 anos. Na cela com o maior número de reeducandos, foram encontrados 14 apenados em um espaço para somente 8 pessoas. Em várias outras celas, 7 ou 8 presos ocupavam espaço para somente 2 pessoas.
Unidade feminina
Na Unidade de Regime Fechado Feminina de Cruzeiro do Sul a situação das detentas é mais confortável. Apenas 16 das 23 vagas encontram-se preenchidas, o que representa uma taxa de lotação de 69,5%.
Novamente, verificou-se que a maior parte das apenadas foi colocadas sob custódia do Estado pelo crime de tráfico de drogas, algumas usuárias, outras mulas de organizações criminosas.
As reeducandas também apresentaram dúvidas sobre seus processos e se queixaram da irregularidade no fornecimento de itens de higiene básica, como escovas e pasta de dentes.
Unidade Socioeducativa
Na unidade do ISE/AC em Cruzeiro do Sul, foi registrada uma taxa de ocupação ainda mais baixa, de 47%. Das 34 vagas disponibilizadas apenas 16 estão preenchidas por adolescentes em situação de conflito com a lei.
No local, foi verificado que os internos participam de atividades culturais, fazem leituras, praticam artesanato e participam de aulas de violão, entre outras ações disponibilizadas pelo ISE/AC, em parceria com instituições públicas e privadas.
A exemplo de Feijó, os magistrados do GMF novamente expressaram satisfação pela baixa de ocupação da unidade do ISE/AC e congratularam a direção local e o juiz de Direito Marlon Machado, titular da Vara e do Juizado Especial da Infância e da Juventude da Comarca de Cruzeiro do Sul, pelos resultados alcançados.
Tortura, maus-tratos ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes
Entre as atribuições do GMF estão ainda receber, processar e encaminhar reclamações relativas a irregularidades no sistema de justiça criminal e no sistema de justiça juvenil, com a adoção de rotina interna de processamento e resolução, principalmente das informações de práticas de tortura, maus-tratos ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.
Saiba mais sobre a competência do GMF
De acordo com a Resolução CNJ nº 214/2015, compete aos GMF’s: (Redação dada pela Resolução n. 368, de 20/01/2021) fiscalizar e monitorar as condições de cumprimento de pena, de medida de segurança e de prisão provisória e supervisionar o preenchimento do Cadastro Nacional de Inspeções nos Estabelecimentos Penais (CNIEP), com a adoção das providências necessárias para observância das disposições legais aplicáveis e para assegurar que o número de pessoas presas não exceda a capacidade de ocupação dos estabelecimentos; bem como fiscalizar e monitorar a condição de cumprimento de medidas socioeducativas por adolescentes autores de ato infracional e supervisionar o preenchimento do Cadastro Nacional de Inspeções em Unidades e Programas Socioeducativos (CNIUPS), com a adoção das providências necessárias para observância das disposições legais aplicáveis e para assegurar que o número de adolescentes não exceda a capacidade de ocupação dos estabelecimentos.
Também cabe ao GMF receber, processar e encaminhar reclamações relativas a irregularidades no sistema de justiça criminal e no sistema de justiça juvenil, com a adoção de rotina interna de processamento e resolução, principalmente das informações de práticas de tortura, maus-tratos ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.
Segundo a redação dada pela Resolução CNJ nº 368/2021, cabe ao GMF fiscalizar e monitorar a entrada e a saída de presos do sistema carcerário e supervisionar o preenchimento do Sistema de Audiência de Custódia (SISTAC), do Banco Nacional de Monitoramento de Prisões (BNMP) e do Sistema Eletrônico de Execução Penal Unificado (SEEU); fiscalizar e monitorar a entrada e a saída de adolescentes das unidades do sistema socioeducativo e supervisionar o preenchimento do Cadastro Nacional de Adolescentes em Conflito com a Lei (CNACL); acompanhar o tempo de duração e, com base nos sistemas eletrônicos, divulgar no sítio eletrônico do respectivo tribunal relatório quantitativo semestral das: a) prisões provisórias; b) alternativas penais aplicadas, inclusive medidas cautelares diversas da prisão e medidas protetivas de urgência, com indicação da respectiva modalidade; c) medidas de monitoração eletrônica de pessoas, como medida cautelar, medida protetiva de urgência e no âmbito da execução penal; d) medidas socioeducativas.
Estão incluídos ainda o acompanhamento do tempo de duração e, com base no sistema eletrônico, divulgação no sítio eletrônico do respectivo Tribunal de relatório mensal do quantitativo das internações provisórias decretadas no sistema de justiça juvenil, oficiando a autoridade judicial responsável pela extrapolação do prazo máximo de 45 dias; promoção de iniciativas para controle e redução das taxas de pessoas submetidas à privação de liberdade, incentivo à adoção de alternativas penais e medidas socioeducativas em meio aberto; incentivo e monitoramento e realização de inspeções periódicas das unidades de atendimento socioeducativo, bem como a discussão e apresentação de soluções em face das irregularidades encontradas.
E também: a fiscalização e monitoramento da regularidade e funcionamento das audiências de custódia, auxiliando os magistrados na implementação do serviço de atendimento à pessoa custodiada e outros serviços de apoio; a fiscalização e monitoramento dos pedidos de transferência e de prorrogação de permanência de pessoa presa nas diversas unidades do sistema penitenciário federal, inclusive daquela inserida em regime disciplinar diferenciado, incentivando, para tanto, o uso do Sistema Eletrônico de Execução Penal Unificado (SEEU); o requerimento de providências à Presidência ou à Corregedoria do Tribunal de Justiça ou Tribunal Federal local, pela normalização de rotinas processuais, em razão de eventuais irregularidades encontradas; representação ao DMF pela uniformização de procedimentos relativos ao sistema carcerário e ao sistema de execução de medidas socioeducativas; acompanhamento e emissão de parecer nos expedientes de interdições parciais ou totais de unidades prisionais ou de cumprimento de medida socioeducativa, quando solicitado pela autoridade competente; proposição de elaboração de notas técnicas, destinadas a orientar o exercício da atividade jurisdicional criminal, de execução penal e socioeducativa ao DMF, que poderá encaminhar a outros órgãos ou solicitar colaboração destes; colaboração, de forma contínua, para a atualização e a capacitação profissional de juízes e servidores envolvidos com o sistema de justiça criminal e sistema socioeducativo.
[Marcio Bleiner Roma Felix-Comunicação TJAC]