Poeta de Rio Branco vira personagem principal de documentário produzido por cineasta europeu

Imagine uma casinha simples de um bairro residencial numa área nobre de Rio Branco, Capital do Acre, no coração da Amazônia, cuja varanda foi transformada num ponto de encontro entre militantes políticos, poetas, jornalistas e outros viventes que poderiam ser perfeitamente alinhados no perfil dos contestadores da política vigente no país e em nível local. Mais que um barzinho ou um restaurante de menu basicamente vegano, por influencia do dono, César Augusto Felix da Silva, que, além de vegetariano, é uma mistura de cozinheiro, professor, poeta e militante político de esquerda.


É claro que este caldeirão de pessoas e de cultura poderia resultar num roteiro cinematográfico. E virou. Foi a partir da poesia do dono do lugar que o o diretor de documentário franco-espanhol José Huerta filmou o que deu o título em francês de “Un poète en Amazonie”, Um poeta na Amazônia, em tradução livre.


Trata-se, na verdade, de documentário inspirado no conturbado processo eleitoral brasileiro de 2018, vencido por Jair Bolsonaro, o atual presidente que aparece em várias situações ao longo do filme, de1h20min de duração. O cineasta joga luz no trabalho do poeta acreano que, durante a campanha, propôs literatura e poesia em contraponto ao ambiente violento que predominou nas redes sociais no período que fraturou a sociedade brasileira.


Desde 1987 José Huerta faz idas e vindas ao Brasil para trabalhar e produzir documentários engajados, sempre focados em temas sociais, ambientais e nos efeitos da globalização em comunidades mais vulneráveis. Mas ao acompanhar, da França, onde reside, o turbulento processo que culminou na eleição de Jair Bolsonaro, José Huerta decidiu fazer um trabalho de uma perspectiva mais emocional. E fez.
Trata-se de um documentário emocional, retirado de um “espetáculo” de dor e sofrimento numa das regiões mais espetaculares do mundo, a Amazônia brasileira.


“É um país maravilhoso, mas quando vi aquele processo político em curso, sofria muito porque vi muitas fraturas nas famílias. Ou seja, chegou a um ponto muito grave em que entrou na estrutura mais profunda da sociedade que é a família”, explica o cineasta na entrevista à RFI.


O protagonista escolhido foi o poeta acreano César Augusto Félix da Silva, aquele do barzinho “O Cantoria” ou “Café com Poesia”. O poeta já conhecido do cineasta por trabalhos anteriores para outros documentários. Historiador formado em Santa Catarina, Félix era coordenador da reserva extrativista Chico Mendes, no Acre, onde Huerta lembra que, “90% da floresta ainda está de pé”.


O filme mostra, além de passeios pela floresta, cenários como o ”Café com Poesia” – , um espaço criado por César Félix em Rio Branco, que virou, de acordo com Huerta, “um refúgio para muitas pessoas que se sentem ameaçadas pelas novas políticas do governo atual, como a comunidade LGBT, os indígenas, intelectuais, pesquisadores e até músicos”.


O personagem é o que o diretor chama de síntese da preocupação social e ambiental aliada à força da cultura. O argumento central do documentário foi desenvolvido a partir de observações de José Huerta das postagens do poeta em seu perfil nas redes sociais, palco de confrontos ideológicos e de narrativas dos partidos e candidatos durante o conturbado processo eleitoral.


O diretor franco-espanhol, que diz não ter a ambição de tentar explicar a “complexidade brasileira”, buscou dar visibilidade a um personagem que preferiu se expressar por meio da palavra e da poesia em um ambiente de disputa de narrativas.


“No universo do Bolsonaro, as palavras são importantes, as palavras veiculadas nas redes sociais e por ele mesmo, que é uma pessoa que não se esconde. Eu queria então trabalhar com as palavras da poesia e da cultura. A cultura é o espaço que a gente pode colocar a razão e a emoção juntos para se conectar com o mundo e tentar revelar o mundo na sua complexidade”, justifica, em entrevista à imprensda na Europa.


“Durante o processo eleitoral, vimos muitos discursos violentos, radicais, de ódio. Eu quis mostrar e trabalhar o aspecto de que a cultura é fundamental para nosso destino comum e coletivo”, acrescenta.


José Huerta iniciou as filmagens no primeiro semestre de 2019, logo nos primeiros meses da chegada do novo governo, para captar a emoção ainda latente no país e nos personagens do documentário. A pandemia interrompeu o processo, que foi retomado este ano com a ajuda de amigos e apoiadores.
Para terminar a fase final de filmagem no Acre, prevista para setembro, José Huerta recorreu a uma coleta virtual de recursos. A iniciativa já o fez arrecadar cerca de 50% do montante que precisa para concluir o filme.


“O filme apresenta dois mundos: o do poeta e o do presidente da República”, diz o protagonista.


A seguir, o poeta e personagem principal do documentário concede entrevista ao Ecos da Notícia. Veja os principais trechos:


Ecos da Notícia – Como se deu essa sua relação com o diretor José Huerta que resultou neste filme em que o senhor é personagem principal?


César Felix – José Huerta já me conhecia desde 2005, quando participei de um outro filme dele, “Em busca da terra sem mal”. De lá pra cá não perdemos mais o contato, sempre nos falamos e ele me acompanha no Facebook. Ele disse que, olhando minhas manifestações políticas/poéticas, teve a ideia do filme. Fez o contato, apresentou a proposta e eu aceitei fazer o filme. José Huerta é franco espanhol, nasceu na Espanha, mas desde criança mora na França, mais especificamente, em Paris. É cineasta experiente. Tem um trabalho muito voltado para produção de documentários críticos. Já realizou mais de 30 filmes.


Ecos da Notícia – Ao que tudo indica o filme/documentário não tem um apelo comercial. Já foi exibido para uma grande plateia? Vai haver um lançamento?


César Felix – O filme já foi apresentado em novembro no festival LatinoDoc. Na cidade de Toulouse, França. E depois, naquele mesmo país, nas cidades de Rennes, Metz, Fréjus, Monselle e Paris. O primeiro lugar a ser apresentado no Brasil, foi no Acre. Na sede da Adufac (Associação dos Docentes da Universidade Federal do Acre), depois teve outra projeção no Cine Teatro Recreio. Não é um filme de circuito comercial, será sempre apresentado em eventos específicos, quase sempre acompanhado de um bom debate. Agora em julho e agosto acontecerão projeções em Florianópolis, Porto Alegre e no Ceará.


Ecos da Notícia – Para as pessoas que ainda não viram o filme, o senhor poderia dizer do que trata o enredo?


César Frlix – O filme busca captar nossos sentimentos a partir do resultado das eleições de 2018. Apresentar um pouco do meu mundo e personagens e artistas que temos no Acre, mas que a própria população desconhece. O público alvo é quem a gente puder alcançar.


Ecos da Notícia – A primeira impressão que passa, ao reproduzir algumas falas do presidente Jair Bolsonaro é que se trata de um filme antibolsonarista. Isso procede?
César Felix – O filme não visa ser antibolsonarista, o filme apresenta dois mundos: o do poeta e o do presidente da República. As pessoas tirem suas conclusões. No filme ele fala por ele e eu falei por mim.


Ecos da Notícia – O senhor, que já foi militante de partidos de esquerda, continua a pensar como um homem de esquerda?


César Felix – Não me rótulo mais, porém, sou filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e gosto muito das duas ideias, fazendo o de sempre: me manifestar e lutar contra qualquer injustiça social.


Ecos da Notícia – Faltando menos de três meses para as eleições e com o petista Lula sempre na frente e podendo ganhar a eleição, o senhor acha que ele teria condições de pacificar o país?


César Félix – Não, o país vai demorar a ser pacífico, o governo Bolsonaro criou condições para a criação de um movimento muito violento, um movimento semelhante ao fascismo, que age através de milícias armadas, autoritário, preconceituoso, machista, homofóbico, misógeno, racista. Isso não acaba de um dia para o outro, muito menos com a eleição de um presidente. Vai demorar a luta contra esse modelo.


Ecos da Notícia – Depois das denúncias que o senhor faz no filme, não tem medo de retaliação, inclusive físicas, por parte dos bolsonaristas locais? É possível enfrentar isso com poesias?


César Felix – A poesia sempre será necessária. Ela te convida a ver o mundo por várias dimensões, te possibilita criar, criticar, apresentar posições, elaborar e reelaborar conceitos, isso sempre será necessário. Defino minha poesia como um espaço livre de manifestação de meus sentimentos. Claro que tenho medo, mas já acostumei viver com medo, por isso o medo não faz mais medo. Desde criança que assisto as pessoas serem assassinadas no Brasil pelo fato de lutarem contra as injustiças, que o Estado faz de conta que não ver. Cresci assistindo as pessoas que poderiam me defender, serem assassinadas ou pelo estado, ou sob o silêncio do estado. Por isso não confio uma só vírgula na direita Brasileira, aprendi que ela não dialoga, ela mata.


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