Um mundo repleto de monstros e caçadores convida o espectador a embarcar em uma aventura marítima. A bordo do navio “Inevitável”, o destino de “A fera do mar” é entender uma guerra centenária entre os humanos e essas criaturas. A partir do exercício de tentar recontar a versão oficial da história, o filme de Chris Williams, que estreou na Netflix na última sexta-feira (8), traz os questionamentos da pequena Maisie Brumble, uma protagonista negra, sobre o papel reservado a heróis e vilões nos livros. É com coragem e empatia que ela nos conduz a olhar para as feras de um novo jeito e nos faz repensar sobre as lendas que motivaram aquela guerra.
“A nossa história é uma mentira. Por gerações, os reis nos fizeram odiar as feras, e fizeram os caçadores destruírem elas. E, com cada mentira, esse império cresceu” – Maisie
O curso da narrativa se transforma quando Maisie resolve entrar no navio, de forma clandestina, e integrar a tripulação do capitão Corvo e de Jacob Holland. Sua maior inspiração para encarar essa jornada são seus pais, que morreram em batalha contra as feras. Enquanto acompanhamos uma jornada épica de marinheiros, vemos florescer a amizade de Maisie e Jacob, que foi resgatado do mar pela tripulação quando era criança.
Coragem para reformular a história que os livros não contam
A proposta de descolonizar o olhar, contribuindo para uma formação antirracista e decolonial de meninos e meninas, é um movimento importante para apresentar às crianças uma diversidade de possibilidades, saberes e vivências de outros povos, que não estejam restritas a conhecimentos e narrativas eurocêntricas.
Obras audiovisuais com protagonistas negros são uma forma de permitir que as crianças negras se reconheçam nesses personagens e construam referências poderosas para uma releitura da história. Para Pâmela Peregrino, animadora e professora de Artes da Universidade Federal do Sul da Bahia, com uma orientação pedagógica adequada, o discurso final de Maisie pode ser usado por educadores para propor um debate crítico sobre as versões oficiais da história.
“Você pode ser o herói e estar errado!”
Pâmela, que realiza curtas de animação em processos educativos, de imersão e vivência em comunidades tradicionais negras e indígenas, considera a importância do questionamento ser feito por uma criança negra. Mesmo sem marcações explícitas no filme, é possível traçar paralelos entre a guerra ficcional, de caçadores e feras, e episódios da nossa história, como o período da colonização e da escravização.
Contudo, ela aponta que o discurso de Maisie tem a limitação de não ser palpável. “É muito difícil pensar em uma criança negra falando assim na frente dos reis, sem que isso resulte em consequências negativas para ela”, pondera. “Embora seja uma cena bonita, ela não possui amparo na realidade. Dessa forma, o aspecto político do discurso fica prejudicado, podendo provocar uma paralisia no espectador, ao invés de convocar à ação.”
Por conteúdos mais diversos
Como resposta aos avanços das pautas do movimento negro, o setor do entretenimento tem buscado contemplar uma maior diversidade em suas obras. “A fera do mar” faz parte da estratégia de consolidar a Netflix como produtora competitiva de filmes de animação voltados para o público infantil, seguindo uma estética parecida com produções de grandes estúdios, como Disney e Dreamworks, inclusive apostando em profissionais renomados e com experiência em grandes produções.
Contudo, apesar da proposta de “A fera do mar” trazer diversidade na representação dos personagens principais, e até de temáticas, no novo filme de Chris Williams, o mesmo diretor de “Moana”, não há diversidade étnico-racial entre as lideranças da equipe técnica, um ponto-chave para construir narrativas verdadeiramente antirracistas e decoloniais, comenta Pâmela.
Embora haja atrizes negras nas dublagens da protagonista de diferentes países, Pâmela reforça que “é essencial ter pessoas negras nos papéis decisivos das equipes de produção, para evitar distorções no enredo e nas representações, e também para que as histórias sejam convincentes, de modo que a gente possa se identificar com os personagens, e que os espectadores entendam nossos conflitos e nossa história.”
Fonte/ Portal lunetas.com
Para contribuir com o debate sobre conteúdos focados em inspirar transformações sociais, a realizadora audiovisual traz a referência do Teatro do Oprimido, de Augusto Boal. Segundo o dramaturgo, quando uma obra de arte oferece uma solução pouco sólida para um grande conflito, ela estimula uma visão mágica sobre a realidade e afasta o espectador de formar uma visão crítica, impedindo-o de pensar em soluções concretas para transformar o contexto em que vive.