No último dia 5, um pedido de um jovem que acabara de receber a notícia de que seria solto da cadeia surpreendeu quem participava da audiência no Tribunal de Justiça de Minas Gerais: ele queria continuar detido por algumas horas para conseguir comer. “Antes de eu ir embora, vocês não poderiam me deixar aqui só para eu jantar e não passar mal na rua? Meu corpo está muito fraco”, pediu.
A história ganhou repercussão nas redes sociais a partir de um tuíte do promotor do caso, Luciano Sotero Santiago. Defensores e promotores levantaram um debate sobre a relação entre pobreza, aumento da fome no Brasil e o sistema de justiça criminal.
Por um lado, alguns disseram que a história ilustra a crise econômica e o aumento da miséria no Brasil. Ao todo, 33 milhões de pessoas não têm o que comer diariamente no país, segundo o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia, um estudo produzido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional.
Por outro, houve críticas ao encarceramento em massa e ao sistema de Justiça — nessa visão, ambos ajudam a perpetuar o estado de violência e de criminalização da pobreza. Um dos usuários, por exemplo, citou o salário dos membros da audiência (juiz, promotor e defensor público), todos acima dos R$ 20 mil.
Em contraponto, algumas pessoas também criticaram a Justiça por ter soltado uma pessoa que praticou um delito violento, pedindo que Sotero levasse o jovem “para jantar em casa”.
“Estou há anos na estrada, e já vi muita coisa em audiências. Mas essa história me surpreendeu. Normalmente, as pessoas querem sair correndo da prisão, mas esse rapaz foi tão espontâneo e tão sincero ao falar da fome que chocou todo mundo na audiência”, diz Luciano Sotero Santiago, promotor que pediu a soltura.
A juíza Elâine Freitas acatou o pedido, e disse que o jovem poderia ficar na penitenciária para jantar enquanto os trâmites burocráticos da soltura eram resolvidos.
‘A maior preocupação era a fome’
O servente de pedreiro João (nome fictício), negro, de 20 anos, foi preso em flagrante na madrugada do dia 4 de junho após roubar um celular usando uma faca. Ele confessou o crime na delegacia, segundo a polícia. O caso, que aconteceu na cidade de Santa Luzia, região metropolitana de Belo Horizonte, foi revelado pelo portal UOL.
No Boletim de Ocorrência, a vítima — uma estudante de 22 anos — contou que foi abordada por João após os dois saírem de um ônibus. “Ele usava uma faquinha. Pegou celular, a faquinha caiu no chão e ele fugiu”, contou a jovem. Preso minutos depois, o pedreiro foi reconhecido pela vítima na delegacia. O celular foi devolvido.
Na audiência de custódia, que define se a pessoa vai permanecer detida enquanto responde ao processo, a juíza decidiu soltá-lo a pedido do promotor Luciano Sotero e da defensora Mirelle Morato Gonzaga. A magistrada determinou que João utilize uma tornozeleira eletrônica e não se aproxime da vítima. Ele ainda será julgado pelo crime e, se condenado, pode retornar à prisão.
Sotero diz que se baseou na Constituição e Código Penal para pedir a liberdade do pedreiro. “Ele é primário e confessou o delito. O código permite medidas cautelares, não existe antecipação da pena. E a prisão preventiva deve ser usada apenas em casos excepcionais, extremos”, explica.
Durante a audiência, João afirmou que tomava remédios para dormir, pois ficava muito “agitado” à noite, embora não tivesse prescrição porque nunca se consultou com um psiquiatra. A juíza então expediu um ofício à prefeitura de Santa Luzia pedindo que o jovem tenha acompanhamento médico, além de solicitar um exame de “sanidade mental.”
Quando soube que seria solto, João tomou a palavra e pediu para ficar mais tempo detido para se alimentar na cadeia. “Vou pegar ônibus para ir embora. Quero jantar”, disse.
A defensora Mirelle Morato Gonzaga conta que a fala surpreendeu a todos. “Ele não demonstrou querer ser solto naquele momento. A maior preocupação foi com a fome, em ter algo para comer naquela noite.”
A juíza Elâine Freitas o tranquilizou dizendo que os trâmites de soltura iriam demorar um pouco, dando tempo para que ele jantasse no presídio.
O rapaz disse morar com o pai em um bairro de periferia de Santa Luzia — perdeu a mãe quando era criança. Desempregado e com Ensino Fundamental incompleto, vive de bicos esporádicos como servente de pedreiro. A reportagem entrou em contato com a família dele, mas ela não quis falar sobre o assunto.
Acesso a direitos básicos
Segundo o promotor Luciano Sotero, o caso de João reflete a falta de acesso da população pobre a direitos básicos, como alimentação, saúde e educação.
“Muitas vezes a pessoa só consegue se consultar com um médico ou voltar a estudar quando é presa. Mas hoje chegamos ao ponto de alguém só conseguir comer na prisão”, diz Sotero, que atua na Promotoria de Minas Gerais há 11 anos.
“Não se trata de diminuir o sofrimento da vítima, mas me pergunto o que é pior: um roubo ou a falta de perspectivas de vida, de alimentação, saúde, educação pública? A diferença é que o roubo é crime, e o restante não”, diz.
Para Maurício Dieter, professor de criminologia da USP, o caso contradiz o “principio da mínima elegibilidade” do direito penal — ou seja, a ideia de que as condições de uma prisão são piores do que fora dela.
“Quando a pessoa é presa, ela espera que a vida na cadeia seja pior do que se ela estivesse livre. A ideia do encarceramento vem daí. Mas nossa sociedade admite o contrário. O Brasil consegue oferecer jantar para uma pessoa na prisão e não fora dela”, diz.
Já Sotero acredita que manter o pedreiro encarcerado seria “acabar com a vida dele”.
“Há bandidos, tanto de classe média quanto da baixa, que realmente precisam ser apartados da sociedade. Mas quando você coloca na cadeia um jovem marginalizado, invisível e sem perspectiva de vida, o que vai acontecer com ele? Vai ficar em um presídio superlotado, sem condições mínimas, controlado por facções. Para não sofrer a abusos, para se proteger, terá que fazer acordos e vai sair de lá devendo… A tendência é que cometa crimes piores”, diz.
Justiça x criminalidade
Uma das críticas que se faz à Justiça criminal brasileira é que, embora o encarceramento e o número de condenações tenham se intensificado nas últimas décadas, os índices de criminalidade não diminuíram nas ruas. Esse é um posicionamento oposto ao de setores da sociedade, da política, do MP e da Justiça que pregam um endurecimento da repressão policial e das punições como resposta e prevenção à violência.
Em 2005, havia 296.919 detentos no Brasil. Em 2020, eram 919.651, alta de 209% — os dados são do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O número de vagas no sistema, no entanto, é de 442 mil — metade do contingente detido.
No período, o número de homicídios continuou no mesmo patamar — cerca de 51 mil por ano, em média. Em 2017, o Brasil bateu seu recorde histórico de mortes violentas: 65.602 pessoas foram assassinadas, de acordo com o Atlas da Violência.
Já as condenações por tráfico de drogas também aumentaram de maneira significativa, mas o número e a força das facções que controlam o mercado ilegal também cresceu. Em 2005, 14% dos presos foram condenados por delitos relacionados ao tráfico, segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen). Já em 2019, tráfico representava 27,4% — entre as mulheres, o índice chega a 54,9%.
Embora o Código Penal preveja mais de mil crimes no país, apenas três deles correspondem a 71% de todo o sistema carcerário: tráfico, furto e roubo. Já delitos contra a pessoa, como homicídio, respondem por 11,3% do total.
“Furto, roubo e tráfico acontecem nas ruas: a polícia prende em flagrante sem investigar, e a Justiça condena com provas frágeis. Quem é preso nessas circunstâncias? Os pobres que transitam pelo espaço público. O sistema criminal é seletivo, e funciona para gerir a miséria e o território. O que explica policiais andando com fuzis em bairros periféricos? O ‘combate ao tráfico’. Em sua imensa maioria, as pessoas presas não são grandes traficantes milionários, mas sim jovens pobres que atuam no varejo”, diz Dieter.
Para ele, o encarceramento em massa “não é uma coincidência”, mas um projeto da sociedade. “Nós temos o número de presos que queremos ter. Não é por acaso que a maioria seja pobre, negra e semianalfabeta. O sistema foi pensado para ser assim, é isso que se espera dele”, diz.
Nesse contexto, defensores e criminalistas costumam comparar punições por furto às de delitos envolvendo tributação. Se alguém furtar comida, por exemplo, pode ser detido e condenado à cadeia. Porém, quem tem dívidas tributárias de até R$ 20 mil sequer é processado.
“Uma pessoa pobre dificilmente vai dever R$ 20 mil de imposto. Quem deve imposto no Brasil? A parcela mais rica da população. Mas se alguém furtar um pedaço de carne para o filho comer vai responder criminalmente”, diz Sotero.
Perfis
O pedreiro João é um exemplo do perfil majoritário dos presos. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, dois em cada três são negros — apenas 51% concluíram o ensino fundamental. Já 62,3% têm entre 18 e 34 anos.
É um perfil é oposto ao dos magistrados que julgam essas pessoas.
Uma pesquisa do CNJ de 2018 ouviu cerca de 11 mil profissionais: 80% deles se declararam brancos, e 18%, negros. A maioria é homem (62%) e tem origem na camada mais rica — 51% têm o pai com ensino superior completo ou mais, e 42% tem a mãe na mesma faixa de escolaridade. Um quinto dos magistrados tem pais que atuaram na mesma carreira.
“Vigora no Judiciário e no MP um perfil de homens brancos, heteronormativos. As mulheres, e em especial as mulheres negras, são subrepresentadas. Isso com certeza se reflete nas decisões: um juiz julga a partir de valores que ele tem”, diz a promotora Celeste Leite dos Santos, idealizadora do Estatuto da Vítima, conjunto de medidas, ainda a ser votada no Congresso, que visa assegurar a proteção e a promoção dos direitos das vítimas de crimes.
Para Sotero, os operadores do direito vivem “apartados da realidade do país”. “Promotor e juiz ganham um salário muito acima da média. Andam de carro importado, moram em condomínios fechados. No tribunal, usam elevador privativo, gabinete com ar-condicionado, cafezinho… A justiça é um retrato da sociedade: racista, classista, preconceituosa. Se o sistema só trabalha com punição, excluindo outros direitos, vira uma máquina de moer pobres.”
Já Mauricio Dieter, da USP, acredita que não basta mudar o perfil do Judiciário e do MP para resolver a situação, como a política de cotas no Judiciário. “A única solução que vejo são menos condenações, menos processos, menos encarceramento… A massa dos presos não está ali porque cometeu crime, mas pelo que ela é. A Justiça não é a solução, mas sim parte do problema”, diz.