A secreção do sapinho conhecido como Kambô, utilizado em rituais de cura por índios da Amazônia, principalmente no Acre, na região do Juruá, onde a presença do animal parece endêmica, está patenteada por laboratórios farmacêuticos de países como Estados Unidos, França e Japão.
Isso significa que, no futuro, se algo não for feito para reverter a situação, os índios, seringueiros e outras pessoas interessadas em usar a secreção da rã, vai ter que pagar pelo uso para tais laboratórios.
A ciência já detectou que a secreção compõe um poderoso antibiótico natural. Já os índios, em seus rituais, dizem que o uso do produto é capaz de uma série de curas, entre as quais a “panema” (falta de coragem seguida de má sorte), que seria uma espécie de depressão entre os caboclos amazônicos.
A informação de que o produto genuinamente amazônico foi patenteado no exterior está publicada na revista “Direito GV”, em sua quarta edição, a qual revela que registros de patentes relacionados à espécie de rã nativa da Amazônia foram realizados, em sua maioria, em países como Estados Unidos, Canadá, Japão, França e Rússia. A denúncia é feita por um pesquisador da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Marcos Vinício Feres.
Segundo ele, trata-se de um caso de apropriação de recursos genéticos da Phyllomedusa bicolor, como o sapo é biologicamente nominado, e é um exemplo acabado das brechas jurídicas na regulamentação internacional de sistemas de patentes e imprecisões de termos normativos. Isso faz com que países do Norte global explorem recursos e saberes tradicionais de povos indígenas sobre a flora e fauna brasileiras.
O pesquisador realizou levantamento dos registros de patentes sobre a espécie de rã em bases de dados internacionais.
A partir destes documentos, ele observou que países desenvolvidos predominavam nestes registros – o que demonstra uma lógica de transferência de recursos genéticos naturais e outros conhecimentos de países em desenvolvimento como o Brasil para países do Norte Global.
A maior parte das onze patentes vinculadas à rã referenciam termos científicos de secreção da espécie da Phyllomedusa bicolor. Com propriedades analgésicas e antibióticas, a secreção é conhecida e utilizada por mais de quinze povos indígenas do sudoeste da Amazônia, segundo aponta revisão de estudos etnográficos presente no artigo.
Todas as patentes foram obtidas após a Convenção da Diversidade Biológica, tratado da Organização das Nações Unidas firmado em 1992. Cinco delas foram após Protocolo de Nagoya, estabelecido em 2010, como forma de regulamentar e garantir participação justa e equitativa dos benefícios derivados de recursos genéticos da fauna e flora mundiais. Isto pode sinalizar lacunas desses instrumentos de regulação na proteção dos recursos genéticos naturais.
Segundo aponta Marcos Vinício Feres, o autor do estudo, esse é o primeiro artigo de um projeto em andamento que pretende examinar o sistema de direitos de propriedade intelectual e seu aparato burocrático em todo o mundo. “Queremos analisar a possível estrutura de apropriação do conhecimento tradicional por meio do sistema de patentes”, explica o pesquisador. Entender os meandros burocráticos de transferência de conhecimento do Sul para o Norte Global tem importância estratégica para o Brasil, que tem uma grande biodiversidade em fauna e flora. Ao trazer luz para esse tema, pesquisas podem ajudar a proteger bens e saberes do território brasileiro.
Os próximos passos do grupo de pesquisa de Feres envolvem entender, a partir da perspectiva do direito, como se configura o sistema de patente e de uso de recursos da biodiversidade brasileira em outras regiões do Brasil além da Amazônia. “Temos regiões de Mata Atlântica e de Cerrado que possuem grande conhecimento tradicional associado e podem gerar oportunidades de lucro para o Norte Global”, completa o pesquisador.