O Brasil registrou uma grande subida nos números de suspeitas e casos de trabalho análogo à escravidão no ano passado. Mas especialistas queixam-se da falta de recursos e temem que a situação seja muito pior. O número de denúncias registradas no Ministério Público do Trabalho subiu 70% em relação a 2020, chegando a 1.415, o maior dos últimos seis anos. Pelo Disque 100, o aumento foi ainda maior: as denúncias mais do que duplicaram, de 915 em 2020 para 1.906 no ano passado.
A subida ocorre no mesmo ano em que o Brasil registrou o maior número de resgates de pessoas em situações análogas à escravidão desde 2013. Foram 1.937 pessoas resgatadas. Em 2020, tinham sido 936. “Nós temos muito mais trabalhadores em situações análogas à escravidão do que os 1.900. O que não temos são condições de fazer as fiscalizações, se tivéssemos mais auditores, mais orçamento e mais apoio teríamos muito mais trabalhadores resgatados”, afirma o vice-presidente do Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais do Trabalho (Sinait) e coordenador da superintendência Regional do Trabalho em Pernambuco, Carlos Silva. “Nós tivemos um aumento das denúncias exatamente por conta da pandemia”, completa.
O professor de sociologia da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador do tema Sérgio Sauer atribui os números à situação econômica vivida pelo país, que atinge especialmente os mais pobres e vulneráveis. “Eles aceitam qualquer trabalho e, ao chegarem no local ou com o passar do tempo, vai se tornando clara a situação de exploração”, explica. Em 2021, o Brasil bateu o recorde de 14,7% de desempregados, que atingiu 14,8 milhões de pessoas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O país terminou o ano com a quarta maior taxa de desemprego entre as principais economias do mundo, de acordo com ranking da agência de classificação de risco Austin Rating.
O professor de economia da UnB Evilásio da Silva Salvador também cita outros fatores que podem ter contribuído para este aumento, como a flexibilização na legislação trabalhista e o aumento da fome. “Muito provavelmente há uma subestimação das informações. O censo está atrasado há dois anos, então, não temos muitas estatísticas”, enumera.
No ano passado, chegou-se a um número recorde de 447 locais inspecionados por suspeita de trabalho análogo à escravidão. Houve operações em todos os estados. O governo gastou R$ 2,8 milhões na fiscalização, segundo dados enviados ao Correio pelo Ministério do Trabalho, por meio da Lei de Acesso à Informação. Só em 2013 tinha havido um investimento parecido.
Especialistas e profissionais que atuam na fiscalização dizem, no entanto, que os números têm de ser vistos no seu contexto. Segundo Carlos Silva, do sindicato dos auditores fiscais, o resultado das fiscalizações foi possível devido a um empenho das equipes, realocação de auditores e uma organização dos trabalhos por parte da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (Detrae/ SIT). “No ano passado, a Detrae organizou uma operação nacional, em alusão à semana nacional de combate ao trabalho escravo, em que todas as superintendências tiveram que fazer uma operação”, afirma. “Em janeiro, vários auditores de outras áreas foram fazer fiscalizações”, acrescenta.
O auditor fiscal Magno Riga também atribui o alto número a uma maior demanda, especialmente desde o segundo semestre de 2021 — não apenas denúncias, mas também informações vindas dos órgãos parceiros, como polícias, Ibama, ICMBio. “Nos ‘viramos nos 30’ para atender à demanda crescente”, afirma.
Segundo Carlos Silva, a área do trabalho análogo à escravidão não tem um orçamento próprio desde 2013 e isso sempre põe em risco a continuidade das ações. “O orçamento para fiscalizações não é protegido. Nós temos um montante que se mistura com toda a inspeção do trabalho. Todos os anos, quando tem contingenciamento, o orçamento da fiscalização é cortado. É sempre uma decisão política”, explica.
De acordo com dados levantados pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Fundo Público, Orçamento, Hegemonia e Políticas Sociais da UnB, a pedido do Correio, o orçamento para inspeções trabalhistas só correspondeu a 0,03% dos gastos federais com trabalho em 2021. As verbas efetivamente aplicadas na fiscalização do trabalho escravo são baixas e compostas, em sua maioria, por gastos com seguro desemprego dos resgatados, segundo o professor Evilásio da Silva, líder do núcleo e especialista em orçamento público. Ele destaca que a melhora observada em 2021 nos gastos, provavelmente, seja um reflexo da retomada econômica do país, com as viagens voltando a ocorrer, por exemplo. Além disso, o professor acredita que a recriação do Ministério do Trabalho, no ano passado, deveria ter tido um impacto maior no orçamento. “A inspeção do trabalho está enfraquecida. Mais do que dados econômicos, o orçamento reflete uma política governamental, as prioridades da gestão”, explica.
Em dezembro, a Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) demonstrou preocupação com os recursos para a fiscalização trabalhista para 2022. Em nota pública, a comissão reforçou “a necessidade de assegurar recursos orçamentários, sobretudo se for considerado que os recursos destinados a esta rubrica vêm registrando queda considerável nos últimos anos”. As projeções não são boas. Quase um terço do orçamento do Ministério do Trabalho e Previdência aprovado pelo Congresso foi vetado pelo presidente Jair Bolsonaro. Apesar disso, pelo texto da Lei Orçamentária Anual (LOA), a previsão de gastos para 2022 com inspeções trabalhistas é maior do que em 2021. Porém, o orçamento é 34% do que foi em 2017 e metade do que foi aprovado em 2019. O Ministério do Trabalho foi questionado sobre os valores previstos, especificamente, para o combate ao trabalho escravo, mas não retornou os telefonemas.
A vice-presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), a juíza do trabalho Luciana Conforti, alerta, ainda, para o fato de o governo federal ter alterado uma norma que aumentava os recursos para os grupos móveis que fazem as operações de resgate, com verbas que resultaram das fiscalizações. Em 2021, um ato do Poder Executivo recusou os recursos que vinham da aplicação de multas do Ministério Público do Trabalho, dos Termos de Ajustamento de Conduta”, destaca. No fim do ano passado, o deputado Rogério Correia (PT-MG) entrou com requerimento para que seja convocada uma audiência pública sobre esta alteração.
De acordo com Carlos Silva, a falta de orçamento é sentida no dia a dia das operações. “Muitas vezes, vamos fazer a operação e não temos carros ou não estão em boas condições, não temos telefones com sinais de satélite”, relata.
A Defensoria Pública da União também se queixa da falta de condições para a sua participação nas fiscalizações. “Nosso orçamento está tendo cortes. Não conseguimos acompanhar todas as ações porque não temos efetivo. Falta também apoio do governo ao trabalho”, afirma o coordenador do grupo de trabalho de assistência aos trabalhadores resgatados na defensoria pública, William Charley. Hoje, o Brasil tem cinco grupos móveis, responsáveis por fazer as operações de fiscalização e resgate. O país já chegou a ter 10.
“O Brasil serve de exemplo, já fomos elogiados pela OIT e pela ONU, mas nos últimos anos tivemos alguns retrocessos na política. É expressivo termos tido tantos resgates diante da falta de apoio. Temos um empenho das equipes de fiscalização e do Ministério Público. Um esforço das pessoas envolvidas e não do governo”, afirma Raissa Roussenq, professora de direito na UnB e autora de um livro sobre a escravidão moderna.
A mediatização dos casos de resgates também poderá estar tendo efeito nas denúncias. “A pessoa vê de casa e talvez esteja com um parente passando por isso. Então ajuda demais na conscientização”, completa Lívia Miraglia, coordenadora da Clínica de Trabalho Escravo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
A juíza Luciana Conforti destaca que uma das questões mais críticas para a manutenção das ações é a falta de auditores-fiscais do trabalho. Desde 2013 não há concurso público para o cargo. No momento, há uma defasagem de mais de 1.600 vagas, segundo a subsecretaria de Inspeção do Trabalho. Hoje há 2.026 auditores para um universo de 86 milhões de trabalhadores no país. “Fica cada vez mais difícil organizar operações com a presença de auditores”, destaca o procurador Italvar Medina, vice-coordenador nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho.
No fim do ano passado, a necessidade do concurso para auditores fiscais foi pauta de reunião da Conatrae e assunto de nota pública. Para Italvar, a grande defasagem de auditores faz com que o Brasil esteja descumprindo acordos internacionais de manter os meios para o combate ao trabalho escravo, como a Convenção 105 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Em nota, o Ministério do Trabalho e Previdência informou que está em trâmite um pedido para realização de concurso público para o provimento dos cargos de auditor-fiscal do trabalho e que “não houve qualquer corte de recursos financeiros ou humanos destinados para as operações fiscais de combate às condições de trabalho análogas às de escravo e que diversas estratégias foram incrementadas para auxiliar as ações fiscais.”
Polêmica
Durante o governo Bolsonaro pelo menos mil normas trabalhistas foram alteradas. O governo explicou que as mudanças tiveram como intuito “desburocratizar e simplificar normas trabalhistas, preservando os direitos dos trabalhadores”, segundo o Ministério do Trabalho. O professor Sérgio Saure não concorda: “Essas mudanças nas leis trabalhistas tiraram poder do Ministério Público do Trabalho”, afirma: “A gente tem uma situação de crise econômica com leis trabalhistas mais flexíveis. Isso tudo vai gerando um ambiente mais propício para práticas ilegais”, acrescenta.
O presidente Jair Bolsonaro já deu diversas declarações ao longo do mandato criticando a maneira como é classificado o trabalho escravo no Brasil. Em dezembro, em um evento da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Bolsonaro criticou uma ação no Ceará. Para o presidente, as multas são desproporcionais. “Multou por quê? Porque não tenho banheiro químico. Eu estou a 45ºC e obviamente não tenho banheiro químico. O cara vai deixar de colher a folha ali, andar 500m, fazer um xixi e voltar? Meteram a caneta no cara. Também uma mesinha feita de forma rústica, com madeira da região, para servir o almoço. Não estava adequada aquela mesa. Também a questão do dormitório, o pessoal dormia em uma barraca. Multa em cima dele”, disse na ocasião. No próprio Plano de Governo, previa-se o fim da expropriação de terras de ruralistas autuados por trabalho escravo.
A Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) foi questionada sobre a posição do governo e do presidente Bolsonaro, mas informou que quem responde pelas ações de combate ao trabalho escravo é o Ministério do Trabalho. A pasta também não deu retorno.
No Congresso Nacional, tramitam pelo menos três projetos de lei que querem alterar o que se entende hoje por trabalho escravo para somente situações com ocorrências em que se identifica o cerceamento à liberdade do trabalhador, excluindo casos em que eles são submetidos a situações degradantes. O mais famoso deles foi proposto pelo ex-deputado federal Moreira Mendes (PSD-RO). A ex-ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento Kátia Abreu (PP-TO) e a atual ministra da pasta, Tereza Cristina, também já declararam ser a favor da mudança . Em 2017, o conceito chegou a ser mudado por uma portaria, que foi revogada logo depois após receber críticas de vários setores. Os defensores da mudança argumentam que hoje a definição é muito genérica, e por isso podem ocorrer injustiças com empregadores.
Na justiça
>> Em 2016, o Brasil foi condenado na Corte Internacional de Direitos Humanos pelo caso Fazenda Brasil Verde. Localizada em Sapucaia, no sul do Pará, a fazenda mantinha 128 pessoas em situação de trabalho escravo. Pela condenação, o Brasil teve que reabrir a investigação e o caso ainda corre na Justiça.
>> Entre 2008 e 2019, 20.174 trabalhadores foram resgatados, mas somente se atribuía responsabilidade penal a 112 pessoas. A taxa de condenação é de 4,2%, segundo estudo feito pela Clínica do Trabalho Escravo da UFMG. “É um crime que ainda compensa. As ações demoram muito tempo”, destaca Lívia Miraglia.
O caminho para a solução
Este ano, a Universidade Federal da Bahia junto ao Ministério Público do Trabalho está dando o pontapé inicial de um projeto que tem como intuito se tornar uma política pública. Se trata do Vida Pós Resgate. A ideia é usar os recursos ganhos nos processos trabalhistas por danos morais coletivos e reverter em fazendas agroecológicas. “Dessa forma, eles têm oportunidade de se emancipar”, destaca Vitor Filgueira, coordenador da iniciativa. Os dois primeiros projetos pilotos já estão em fase inicial. Um na região cacaueira, em Una, no sul da Bahia, com cerca de 10 famílias, e outro em Aracatu, que atenderá cerca de 50 pessoas, que trabalharão com piscicultura.
Em Aracatu, o assentamento deve beneficiar parte de um grupo de 64 pessoas que foram resgatadas em julho do ano passado de uma colheita de café em uma fazenda em Pedregulho, em São Paulo. O intuito do projeto é evitar que as pessoas voltem para a situação de exploração. De acordo com pesquisa feita pela Clínica do Trabalho Escravo, a taxa de reincidência no trabalho escravo chega a 38%.
Nesse mesmo sentido, Magno Riga aponta que para solucionar a questão é necessário o andamento da reforma agrária. “Há uma desigualdade no campo muito grande. Os grandes produtores empregam alta tecnologia, mas ainda fazem uso de uma mão de obra precária”, ressalta. Essa também é a opinião do procurador. “É preciso garantir o acesso à terra para os trabalhadores no meio rural para que eles possam garantir sua subsistência”, afirma.
De acordo com a professora Raissa, para mudar a situação é necessário entender o que leva as pessoas à situação de exploração. “Por que ainda temos trabalho escravo? 80% dos resgatados são pessoas negras e nós somos uma sociedade de base escravista. Temos que ver quais fatores fazem com que o trabalho escravo seja naturalizado”, diz.
Para o defensor público William Charley, é preciso que a situação econômica do país tenha uma melhora. “É uma situação externa a nós, o ambiente econômico do país precisa melhorar. Ter mais oportunidades de emprego. Fazer o concurso para auditor e aumentar o orçamento dos órgãos ligados à fiscalização”, enumera.
Um outro projeto, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), atua no ensino, pesquisa e extensão sobre o tema. A Clínica do Trabalho Escravo desenvolve pesquisas sobre o assunto, oferece uma disciplina para os estudantes de direito, oferece assistência aos resgatados de situações análogas a escravidão e ainda vai até as escolas promover conscientização sobre o tema. “A parte que tenho mais orgulho é o atendimento às vítimas. Temos três advogados voluntários, cada um com quatro estagiários. A gente faz o atendimento e, quando é o caso, a gente ingressa com ações, se não for o caso, a gente encaminha para o órgão competente. Já atendemos mais de 150 pessoas e atualmente temos 73 ações trabalhistas em tramitação”, explica Lívia.
*Esta reportagem foi produzida com o apoio de uma bolsa da Thomson Reuters Foundation, do curso ‘Como Cobrir Tráfico Humano e Escravidão Moderna’
Fonte: Correio Braziliense