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Solidão da mulher negra: especialistas explicam significado e origem do termo

Foto: Reprodução/TV Globo

Nas últimas semanas um tema surgiu com força nas redes sociais e gerou debate entre os internautas: a solidão da mulher negra. O burburinho começou após o episódio envolvendo os participantes do BBB22, Natália, Lucas e Eslovênia. Natália, mulher negra, e Lucas, um homem branco, estavam de chamego na piscina e, no mesmo dia, durante a festa do líder, Lucas beijou Eslovênia, mulher branca. Natália se sentiu trocada e trouxe à tona a solidão que as mulheres fora do padrão vivem.


Famosas como as ex-BBBs Gleici Damasceno e Thelminha, e a educadora Anielle Franco, comentaram sobre o ocorrido. “A solidão da mulher negra é uma realidade e assistir aciona gatilhos”, escreveu Gleici. “Me vi nas lágrimas da Natália. Todas nós, mulheres negras, já sentimos o que ela sentiu”, revelou Anielle. Anônimos também opinaram: “Quem já viveu isso na pele? O cara dizer que não se sente pronto, que não quer se envolver com ninguém e de repente aparece com alguém. Então você entende que ninguém, era você!”, escreveu uma internauta no Twitter.



A solidão da mulher negra pode ser, para muitos, um termo novo, mas se trata de mais uma forma de racismo que perpetua pela sociedade desde os tempos da escravidão. “A mulher negra era vista com um aspecto sensual e sexual, a personificação da sensualidade. Os senhores de fazenda se encantavam para o sexo e o prazer, mas, na hora de assumir para a sociedade e para formar família, era a mulher branca quem eles escolhiam”, explicou Morena Cascão, psicóloga clinica especialista no universo feminino.


“É uma questão histórica, mas não individual. É sempre um passado que é coletivo. Estamos falando de um legado da escravidão e das formas de se relacionar desde o período colonial. Não de uma história única, mas de uma história coletiva. A afetividade é sempre negada para pessoas negras”, pontuou Joyce Avelar, formada em psicologia pelo CEUB e integrante da ANPSINEP – Articulação Nacional de Psicólogas/os Negras/os e Pesquisadoras/es.


Essa herança implantou no imaginário social a imagem da mulher ideal para amar e formar família, que raramente é a imagem da mulher negra. Com isso, formas de racismo são expressadas desde a infância, quando a criança negra não é escolhida para fazer par na quadrilha da escolha, quando ela não é eleita a mais bonita da turma, quando a dama de honra dos casamentos são sempre as meninas brancas ou quando seus traços são motivos de bullying. Esses comportamentos são reproduzidos até a vida adulta, e a mulher negra passa a se sentir solitária não só no âmbito do amor romântico, mas nas amizades, na vida profissional, entre outros.


” “Socialmente temos uma estrutura dizendo que a mulher negra não foi feita para ser amada, que as relações não foram feitas para ela. Em alguma medida, isso está no imaginário da mulher negra, ela acredita que o amor não foi feito para ela””Joyce Avelar, psicóloga


 


Thelma Assis, a Thelminha, vencedora do BBB20 e médica, já viveu na pele essas rejeições. Ela contou sobre infância e o quanto a solidão se fez presente ao longo do crescimento. “Na adolescência, eu ficava tentando me mudar e me achava horrorosa, porque só as mulheres brancas do colégio que eram bonitas. E bateu um gatilho muito grande em mim, porque eu sofri muito isso estudando medicina. Tem muita gente querendo tirar casquinha da mulher preta, mas na hora de assumir relacionamento, assume não”, relatou.


Lugar de cuidadora

Ao resgatar o papel da mulher negra na história do Brasil, um outro fator também contribui para o isolamento desses corpos. Desde a escravatura, a “mulata”, como era chamada, desempenhou uma figura de cuidadora. “A mulher negra, desde o período colonial, é colocada socialmente no lugar do cuidado, cuidadora do outro. É colocada no lugar do trabalho, vista, normalmente, como sua força de trabalho braçal e do ponto de vista sexual, na posição sempre de objeto do outro. O processo de miscigenação no Brasil acontece a partir do estupro da mulher negra”, regatou a psicóloga Joyce Avelar.


“São posições em que ela não é objeto de amor, ela cuida do outro, mas não é cuidada. O amor de modo geral é negado para mulheres negras. Quando se pensa no amor romântico, isso se torna ainda mais distante, pois o amor romântico é pensado para mulheres brancas. Só pensar nos filmes, quem são as mocinhas, as princesas, e perceber quem aparece na posição de cuidado e em quem recebe o cuidado e o amor”, disse Joyce.


Essa posição de cuidadora, muitas vezes como doméstica por ser vista como uma mulher que tem grande força braçal, acaba isolando essas pessoas também das oportunidades de trabalho. A psicóloga Morena Cascão explica que, além de todas as outras desigualdades sociais, por ser colocada desde muito cedo nesta posição, geralmente, a mulher negra acaba tendo dificuldades no acesso à educação, fazendo com que elas alcancem menos posições de destaque no mercado de trabalho. “Tudo isso faz com que elas tenham menor interação no aspecto social. Elas ficam restritas a pequenos grupos e gera uma sensação solitária, sensação de exclusão”, expôs Morena.


Assim, a mulher negra vai sendo colocada sempre em um lugar secundário, que não merece atenção. “O resgate histórico é fundamental para entender como as afetividades são construídas. Temos uma ideia de amor como algo genuíno, que não passa social e puramente afetivo, mas não, o amor é construído. Assim como a ideia do corpo que pode ser amado, é algo construído. Quando a gente pensa no amor afetivo a gente sempre constrói uma ideia de pessoa que queremos, e a mulher negra normalmente não está nessa idealização”, comentou Joyce


Em alguma medida, isso afeta não só o pensamento do outro, mas também afeta o imaginário da própria mulher negra. De acordo com a psicóloga Joyce, a mulher acredita que o amor não foi feito para ela, e ela “passa a investir em outros campos, como o do trabalho, que é o campo que foi atribuído a ela. A mulher que não precisa de amor, ela dá amor, ela é forte, aguenta tudo, mas não precisa de amor”.


Abalo da autoestima e trauma

Esses seguidos episódios de rejeição e isolamento têm diversas consequências psicológicas para a mulher negra. A neuropsicóloga Juliana Gebrim, explica que a rejeição ocorre no cérebro na mesma área da dor física e causa a mesma sensação de dor física. “Existe uma teoria chamada de ‘Teoria do coração partido’. Nela, a pessoa sente como se o peito tivesse sido partido mesmo”, descreveu.


Quando essas exclusões ocorrem de uma forma muito frequente, a pessoa pode desenvolver um trauma. “O trauma é uma inundação de sensações. Ele faz com que uma mínima sensação remeta a um trauma anterior e gere uma reação, algumas vezes, desproporcional. A pessoa começa a olhar o mundo com uma lupa de aumento”, alertou Juliana. Depressão, ansiedade e Estresse Pós Traumático (TEPT) também podem ocorrer . “Tem que procurar um psicólogo”, recomendou Gebrim.


A autoestima também acaba sendo abalada. “Ela não se sente bela como as outras por não se enquadrar no padrão. Se a autoestima está comprometida, afeta o autocuidado e a mulher se apresenta de forma mais simples”, pontuou Morena Cascão. “Isso faz com que ela não receba elogios, não seja vista, e fica fragilizada”, concluiu a especialista.



E o que fazer para minimizar?

Para a psicóloga Morena Cascão, uma das formas de combater a solidão da mulher negra é, justamente, o debate. “O universo negro feminino precisa ser visto com mais atenção, detalhamento, carinho”, opinou. “As próprias mulheres negras precisam falar sobre isso e reconhecer a dor como genuína. Devem buscar ajuda na rede de apoio, grupos de apoio, em espaços religiosos, grupos de mulheres para se fortalecer. Não precisa ser forte sozinha”, aconselhou a psicóloga.


Para que a situação melhore, também é preciso ter uma mudança cultural e humana. “Tem que existir uma mudança de postura da sociedade. As pessoas precisam se libertar de preconceitos e regras sociais”, disse Morena. “Além disso, as desigualdades precisam ser combatidas, por exemplo, no meio corporativo, abrindo mais oportunidades igualitárias para mulheres negras. Psicólogos e profissionais da área da saúde também precisam reconhecer e estudar esses fatores e os impactos causados no emocional da mulher”, refletiu.


“Não é simples. Não é fácil. Não vai ser um processo rápido. Esse tema ainda está sendo discutido, é uma questão de muitos séculos. Tem caminho longo, mas o primeiro passo precisa ser dado. Se não der o primeiro, nunca vem o próximo. Talvez a nossa geração não consiga usufruir disso, mas as próximas sim”, concluiu Morena Cascão.


Duas perguntas para

Joyce Avelar

Joyce Avelar (foto: Arquivo Pessoal)

Joyce Avelar – Psicóloga clínica, mestranda em Psicologia Clínica e Cultura na Universidade de Brasília (UnB), coordenadora da Comissão de Raça e Povos Tradicionais do CRP 01/DF e da Associação Nacional de Psicólogas(os) e Pesquisadoras(os) Negras(os) (ANPSINEP/DF)

De que forma a solidão vivida pela mulher negra afeta a saúde mental?

Isso enrijece a pessoa de fato a acredita que não existem outras possibilidades afetivas.


O campo das relações, o campo amoroso, afetivo e sexual, pode ser um lugar de muita frustração. Tende a ser frustrante. Para a mulher negra, isso é amplificado. A repetição da imagem da mulher, o que vai sendo ensinado é que isso não é para ela e ela só precisa trabalhar. Com isso, a mulher pode parar de investir no amor romântico.


Na sua visão de especialista, o que é necessário fazer para atenuar esse cenário? É possível erradicar essa solidão?

Discutindo o racismo. A gente não avança se não pensar nas relações raciais, se a gente não pensa que tem uma história colonial e escravagista sendo repetida. Discutir relações raciais no campo do afeto e o modo como a gente pensa as pessoas. Discutir a afetividade da mulher negra, desconstruir a imagem da mulher negra como trabalhadora, cuidadora, objeto sexual do outro. Posição constante de objeto. Pensando nossos afetos, a quem a gente direciona nossos afetos. A quem a gente sensibiliza quando vê chorando. Acima de tudo, humanizar as mulheres negras e possibilitar que se ocupe outras posições, que não somente as posições estigmatizadas.


Fonte: Correio Braziliense


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