Imagine estar vivendo um dos piores momentos da vida. Problemas de autoestima, solidão, o medo e a incerteza ao viver em uma pandemia global e muito mais. Para se distrair e tentar desconectar da realidade, você decide acessar uma rede social, como o Instagram, e se depara com pessoas que se dizem alegres o tempo todo, e outras que chegam a ofertar “fórmulas” prontas para encontrar a felicidade.
Essa foi a realidade que muitas pessoas enfrentaram durante a pandemia. O Brasil adoeceu nos últimos dois anos, e não apenas do vírus Sars-CoV-2, mas mentalmente. De acordo com pesquisa da Universidade de São Paulo (USP), 59% dos casos de depressão no mundo durante a pandemia e 63% dos de ansiedade ocorreram no Brasil, líder absoluto no planeta.
Paralelamente, os brasileiros estão passando cada vez mais tempo nas redes sociais. Segundo estudo divulgado pela plataforma Cupom Válido, o país só fica atrás das Filipinas e da Colômbia no ranking de nações que mais ficam em sites como Facebook, Instagram e Twitter. Mas muitas vezes o que o usuário encontra nas plataformas pode deixá-lo ainda mais deprimido.
Foi o caso da cientista política Gabriela de Oliveira, de 29 anos. Na última década, ela enfrentou momentos terríveis, incluindo um episódio de violência sexual. Desde então, viveu altos e baixos: conseguiu sair de um relacionamento abusivo, conheceu um novo amor, engravidou e acabou se casando. A gestação foi repleta de dores e complicações, o que resultou em diversas internações, muitas delas junta ao filho.
Recentemente, engravidou pela segunda vez, mas acabou perdendo o bebê. “Os últimos três anos foram dificílimos. Perdi muitas pessoas, lutei contra a depressão, me afundei nessa pandemia de todas as maneiras que as pessoas possam imaginar”, relatou a jovem.
No processo em busca da cura para todas as dores físicas e emocionais que tem sentido por conta dos traumas que viveu, Gabriela se deparou com uma realidade diferente da dela, carregada de um esforço exagerado para parecer perfeita: influenciadores digitais, coachs e até usuários “comuns” das redes sociais que pregam a felicidade a todo custo. “O que eu mais vejo no Instagram são fórmulas prontas de gente que acha que conhece a métrica correta para todas as realidades”, afirmou.
“’Seja foda em 10 passos’, ‘aprenda a ressignificar’, ‘aprenda a ter inteligência emocional’, ‘deixe de ser uma pessoa que reclama’, ‘você precisa ser maduro e evoluído, porque eu sou maduro e evoluído’. É insuportável a maneira como julgam saber o que se passa na vida das pessoas e a maneira como se julgam no direito de dizer como as pessoas devem se sentir”, diz Gabriela. Estas afirmações e fórmulas para encontrar a felicidade a qualquer custo acabam gerando um efeito rebote e podem causar depressão, ansiedade, distorção da autoimagem, entre outros transtornos.
Parecer feliz é um problema?
Não é errado buscar a felicidade ou parecer bem nas redes sociais. O problema constatado por especialistas é a necessidade que alguns usuários enxergam em expor uma “felicidade” a qualquer custo, ou até mesmo exigir que outras pessoas estejam bem o tempo todo. Apesar de ainda não existir produção teórica robusta sobre a chamada “positividade tóxica”, as primeiras publicações sugerem que ela pode ser descrita como “rejeição, negação ou deslocamento de qualquer reconhecimento de estresse, negatividade e possíveis características incapacitantes do trauma”, explicou a pesquisadora e mestre em psicologia Carla Furtado.
“A expressão tem sido usada para abordar uma espécie de pressão pela adoção de um discurso positivo ininterrupto, aliado a uma vida editada para as redes sociais. São sorrisos pasteurizados em fotos sob filtros, vozes cuidadosamente moduladas e falas que se assemelham a pregações”, pontuou Carla.
Esse incentivo constante e a tendência excessiva de ver apenas o lado bom de algo e não compreender a emoção que acompanha a experiência, pode gerar distúrbios mentais.
Em conversa com o Correio, a psicanalista e professora na pós-graduação de Psicanálise do Ceub, Ciomara Schneider, correlacionou o tempo de uso com os sinais comportamentais que indicam a positividade tóxica. “Passar muito tempo nas redes sociais, buscar com muita frequência a opinião dos influenciadores, desvalorizar o seu próprio estilo de vida, não reconhecer a si mesmo como alguém capaz de tomar decisões com autonomia”, são alguns dos “sintomas” de alerta.
Entretanto, existe uma ressalva. As redes sociais têm a capacidade de potencializar esses transtornos, mas não de forma isolada. Outros fatores da vida devem ser observados quando começam a surgir sintomas de algum distúrbio mental. Assim como Gabriela estava passando por momentos nebulosos e o Instagram tornou-se um local de adoecimento, pode acontecer com outras pessoas. “O adoecimento mental depende de diversos fatores conjuntos, fator genético, ambiental, um trauma, o trabalho ou relacionamento que não está bom. A busca pela felicidade pode gerar um mal estar e problemas, mas não necessariamente desencadear uma doença”, explicou a psiquiatra Renata Figueiredo, presidente da Associação Psiquiátrica de Brasília (APBr).
Mesmo assim, esse mal estar causado pelas redes sociais é inegável e Gabriela sentiu na pele essa relação. “Nunca vi tanta hipocrisia, falsidade e superficialidade num só lugar”, assegurou Gabriela. Ao ser contactada para participar desta reportagem, a jovem se prontificou sem pensar duas vezes, a razão? Ela quer atingir outras pessoas que sentem o mesmo. “Eu quero que muitas pessoas sejam atingidas pelo meu relato, para se sentirem abraçadas ou para refletir”, desejou.
“Cada um sabe a dor e a delícia de ser quem é. Uma coisa que aprendi depois de ser atravessada por dores insuportáveis em tantos momentos da minha vida, é que se eu não puder acolher as dores alheias, se eu não puder compreender, se eu não puder ao menos respeitar, eu me calo”, ponderou.
Disformia Corporal
Outro distúrbio que está crescendo no ranking dos que mais afetam os jovens pelo mundo é o Transtorno de Disformia Corporal (TDC). O TDC nada mais é que a percepção alterada de si mesmo diante do espelho, ou seja, quando o que a pessoa enxerga não condiz com a realidade. Nesses casos, é comum pessoas se verem com sobrepeso, quando na realidade são magras, ou enxergarem defeitos que ninguém mais percebe, como um nariz grande ou pequeno demais, o que gera gastos exagerados com produtos de beleza e cirurgias plásticas. Além disso, números apontam que cerca de 90% dos afetados pelo TDC sofrem de depressão; 48% abusam de bebidas alcoólicas e 32% sofrem de anorexia ou bulimia.
O índice maior de TDC está entre os jovens de 15 a 20 anos, com a mesma proporção de casos em homens e mulheres. Dados revelam que cerca de 2% da população global é acometida pela doença, no Brasil cerca de 4 milhões de pessoas são afetadas. A origem do transtorno é neuroquímica, mas o fator ambiental exerce bastante influência, principalmente na fase da adolescência, onde o cérebro está em formação. Assim, as redes sociais têm papel crucial no desenvolvimento deste distúrbio.
Durante a pandemia, a procura por lipoaspiração teve um boom. Influencers passaram a realizar o procedimento como permuta, que é quando o profissional oferece o serviço em troca de divulgação, de forma indiscriminada e acabaram gerando em “pessoas comuns” o transtorno de imagem e uma corrida cruel pela perfeição. Mais de 10 influenciadoras digitais exibiram nas redes sociais os “gominhos” proporcionados pela Lipo Lad. Sarah Andrade, Virgínia, Flay, Ludmilla, ViihTube, entre outras, apareceram no Instagram com a barriga “travada” depois de se submeterem ao procedimento cirúrgico.
Dados da última pesquisa da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (ISAPS) revelaram que o Brasil é o país que mais realiza cirurgias plásticas no mundo. O silicone é o procedimento mais feito, seguido da lipoaspiração. Um balanço divulgado pela Google em que mostra os termos mais pesquisados na internet apontou que “Quanto custa uma lipo lad” está entre os cinco mais procurados em 2021.
Tudo isso gerou um crescimento em mais de 140% o número de procedimentos estéticos em jovens nos últimos anos e a justificativa é, justamente, as redes sociais que geram insatisfação com o corpo, distúrbio de imagem e busca pelo corpo perfeito. Mas os riscos são inúmeros e indiscutíveis. Estudos consagrados apontam que a taxa de mortalidade para lipoaspiração, o procedimento que mais mata no Brasil, é de 19 mortes para cada 100.000 cirurgias realizadas.
Afinal, o que é a felicidade?
Segundo a fundadora do Instituto Feliciência, Carla Furtado, a felicidade “é uma experiência intrínseca, dispensa o reconhecimento de terceiros”. Ela é um sentimento passageiro, portanto, no final das contas, não é sobre “ser feliz” e sim “ter felicidade”. “A felicidade não é nem um pouco parecida com a ideia de felicidade mostrada em redes sociais e em programas de autoajuda, ao contrário, o conceito de felicidade é abstrato”, revelou a psicanalista Ciomara.
“Filósofos e pensadores de toda a história da humanidade têm tentado defini-la, porém o que sabemos é que ela é passageira, singular e renovável, ou seja, quando a felicidade acaba, podemos encontrá-la de novo, mas se perdermos a nossa liberdade em busca da felicidade definida por um meio externo a nós mesmos, já começamos a perdê-la de novo”, explicou Ciomara.
De acordo com a especialista, é possível se esforçar para ter felicidade e, apesar de poder ser algo duradouro, não é interminável. “Felicidade acontece, podemos até fazer certos esforços para ser feliz, mas ela será sempre assim, dinâmica, passageira e única como experiência de cada pessoa”, disse. Dessa forma, Ciomara aponta a positividade tóxica como algo que destrói um sentimento genuíno.
Mesmo que se vivam muitos momentos felizes, a pergunta que se deve fazer sempre que for expor esse sentimento é “de que forma e para quê desejamos nos mostrar felizes? Se precisamos ‘exibir’ a felicidade, devemos nos questionar intimamente se realmente se trata de felicidade legítima e qual a razão para isso”, avisou Carla.
Sendo assim, a vida é formada pelo equilíbrio entre sentimentos tristes e felizes. A beleza de ser mentalmente saudável é entender que permitir viver e processar os momentos ruins é algo necessário para o crescimento humano. “Precisamos nos reconciliar com a humanidade que nos constitui, humanidade essa que vivencia diariamente diferentes valências emocionais e que vai experimentar ao longo da existência experiências de sofrimento”, relembrou Carla.
Esses momentos de tristeza são “férteis para mudanças necessárias, devem ser acolhidos e não desprezados, ficar triste e introspectivo, pode ajudar a pensar e isso é sempre bom. Claro que existem sinais que nos alertam para quadros que possam se prolongar, gerar depressão ou até mesmo paralisar a vida de uma pessoa, mas isso já é um outro momento da vida que requer ajuda, um tratamento mais específico. Mas só o fato de ficar triste, às vezes ajuda muito a fazer descobertas pessoais”, alertou Ciomara.
Sem falar que, mesmo que uma pessoa esteja feliz, existem outras milhões vivendo dias difíceis. Por isso, uma boa dose de empatia sempre cai bem. “Nunca é demais lembrar que há sofrimento ao nosso redor, há que se ter empatia em meio a luto coletivo, crise econômica e fome atingindo a casa dos milhões de brasileiros. Felicidade é resultado do equilíbrio entre o eu e o nós. É, ainda, sobre autenticidade e congruência”, lembrou Carla.
Se afastar das redes é a única solução?
Para tentar encontrar uma solução aos problemas enfrentados pelos usuários das redes sociais que se sentem afetados pela felicidade tóxica, o Correio ouviu três especialistas. Carla Furtado, mestre em psicologia e pesquisadora, aconselhou o usuário a prestar atenção aos próprios sentimentos e “observar que emoções são deflagradas, à medida que se verifica o feed de uma rede social”.
“Imagine uma reta na qual em um dos extremos há emoções de valência muito negativa, no outro extremo emoções de valência muito positiva e no centro emoções neutras. Em que ponta dessa reta você se percebe enquanto navega nessas redes? Vale a pena permanecer? Há perfis específicos que deflagram mais emoções de valência negativa? Se há, quais são eles? Que tal se apropriar da liberdade de dar unfollow?”, pontuou a especialista. Além disso, ela garante que “é importante avaliar o tempo despendido nas redes sociais, que têm potencial aditivo. Há correlação positiva entre o tempo de uso e os riscos para ansiedade e depressão”.
A psicanalista Ciomara Schneider concorda com Carla. Para ela, o importante é usar as redes sociais com moderação . “Tudo o que é moderado, que não toma o precioso tempo de viver e fazer as ocupações do cotidiano, pode fazer bem. Viver com leveza, aprender a rir de si mesmo, valorizar as coisas mais simples, da sua própria escolha, isso realmente pode ajudar. Sonhar é bom, ainda bem que não é proibido, mas sonhe com aquilo que faz bem, que faz sentido para você. Tenha amigos de verdade por perto, se queixe, ouça a queixa dos outros. Planeje um pouco, mas não se torture com alta eficiência, estude, trabalhe, descanse e ame, na medida do seu possível”, recomendou.
Já a psiquiatra Renata Figueiredo, sugeriu que os usuários deem espaço para as emoções negativas. “Preocupação, ansiedade e chateação com alguma situação do cotidiano fazem parte do funcionamento cerebral humano e são estratégias para nos manter vivos, evitando os potenciais riscos. Somente quando exagerada que pode gerar estresse que, a longo prazo, também faz mal. Ter equilíbrio, escutar os outros com empatia e validar os sentimentos dos outros, inclusive dos que têm opiniões contrárias”, disse a presidente da APBr. “Quando não estiver bem, tentar entender o motivo, validar seus próprios sentimentos, ponderar e modificar o que for preciso”, finalizou.
Por fim, Gabriela, que usou o Instagram para publicar a mesma história que contou para a reportagem do Correio, disse que a melhor alternativa para ela foi se ausentar das redes. “Depois que eu publiquei meu relato, desabafei e atingi algumas pessoas, decidi tirar férias novamente do lugar tenebroso que é o Instagram, que só tem me despertado repulsa”, concluiu.
Fonte: Correio Braziliense