Na reescrita dos capítulos da história da humanidade, o Homo sapiens sapiens não foi o personagem principal em 2021. Em vez disso, abundaram descobertas e estudos sobre a espécie que, por ser tão próxima do homem moderno a ponto de ter convivido e reproduzido com ele, desperta curiosidade e fascínio. O Homo sapiens neanderthalensis, ou neandertal, teve a existência curta e desapareceu da Europa, onde vivia, por volta de 40 a 59 mil anos atrás (leia mais nesta página). Tido como primitivo no passado, tem sido, cada vez mais, reabilitado por pesquisas que colocam em dúvida a suposta inferioridade cognitiva e comportamental do nosso primo mais próximo.
Nos últimos 20 anos, a imagem do homem desengonçado e incapaz de emitir mais que sons guturais foi por terra à medida que sofisticadas tecnologias baseadas em DNA permitiram sequenciar o genoma do neandertal, com revelações impressionantes. Talvez a maior delas, feita pela equipe do especialista em genética evolucionária Svante Paabo, da Suécia, foi a de que o homem moderno e seu primo não apenas conviveram, como tiveram descendência. Ao mesmo tempo, descobertas arqueológicas analisadas também à luz de técnicas mais modernas mostram que, culturalmente, o Homo sapiens neanderthalensis era tão capaz como o parente.
“Habilidades cognitivas notáveis”. Foi como definiram a espécie pesquisadores da Universidade de Göttingen, na Alemanha, e do Escritório Estadual da Baixa Saxônia. Trabalhando com a sociedade Fóssil Unicornu, os cientistas têm realizado novas escavações na Caverna do Unicórnio, nas Montanhas Harz, desde 2019. Agora, pela primeira vez, eles descobriram camadas bem preservadas de artefatos culturais do período neandertal nas ruínas da formação. Entre os restos de uma caçada preservados, um osso do pé imperceptível acabou se mostrando uma descoberta extraordinária, revela Dirk Leder, que liderou a escavação.
“Rapidamente, percebemos que não eram marcas feitas durante o abate do animal, mas eram claramente decorativas”, disse Leder, do Escritório Estadual de Herança da Baixa Saxônia. Os entalhes puderam, então, ser analisados com microscopia 3D no Departamento de Biologia da Madeira e Produtos de Madeira na Universidade de Göttingen.
Para fazer uma comparação científica, a equipe realizou experimentos com ossos do pé de um gado de hoje. Eles mostraram que, para esculpir o padrão exibido pela peça arqueológica na superfície do material, o osso provavelmente tinha que ser fervido primeiro. Depois, amolecido com ferramentas de pedra, em um trabalho que levaria cerca de uma hora e meia.
O pequeno osso descoberto foi identificado como vindo de um veado gigante (Megaloceros giganteus). “Provavelmente, não se trata de coincidência que o neandertal escolheu o osso de um animal impressionante, com enormes chifres, para esculpir”, diz a professora Antje Schwalb, da Universidade Técnica de Braunschweig, que participou do projeto.
Padrões e símbolos
Usando tecnologia de radiocarbono, a equipe do laboratório Leibniz na Universidade de Kiel datou o osso esculpido em mais de 51 mil anos. Esta é a primeira vez que se calculou diretamente a idade de um objeto que deve ter sido esculpido por neandertais. Até agora, alguns objetos ornamentais da época dos últimos sobreviventes na França eram conhecidos.
No entanto, essas peças, com cerca de 40 mil anos, são consideradas por muitos como cópias de pingentes feitos por humanos modernos, porque, nessa época, eles já haviam se espalhado para partes da Europa. Objetos decorativos e pequenas esculturas de marfim sobreviveram em cavernas de humanos modernos na Alva da Suábia, em Baden-Württemberg, e foram encontrados mais ou menos na mesma época.
“O fato de que a nova descoberta da Caverna do Unicórnio data de muito tempo atrás mostra que, milhares de anos antes da chegada dos humanos modernos na Europa, os neandertais já eram capazes de produzir independentemente padrões em ossos e, provavelmente, também de se comunicar usando símbolos milhares de anos antes da chegada dos humanos modernos na Europa”, conta o líder do projeto, Thomas Terberger, do Departamento de Pré-História e História da Universidade de Göttingen e do Escritório Estadual de Herança da Baixa Saxônia. “Isso significa que os talentos criativos dos neandertais devem ter se desenvolvido independentemente. O osso da Caverna do Unicórnio representa o objeto decorado mais antigo da Baixa Saxônia e uma das descobertas mais importantes do período neandertal na Europa Central.”
Mais tempo de existência
Também foi em uma caverna — o tipo de habitação da época — que pesquisadores espanhóis descobriram, há pouco tempo, que os neandertais viveram mais tempo do que se imaginava. Até agora, acreditava-se que eles chegaram à Cova del Gegant, na Catalunha, há 94 mil anos, e foram extintos há 50 mil. Esse é um dos locais mais importantes do mundo para o estudo da espécie, com vestígios únicos que permitem investigar a transição do Paleolítico Médio para o Alto, quando as primeiras populações do homem anatomicamente moderno apareceram, e as de seu primo mais próximo foram extintas. O estudo catalão puxa para 59 mil anos a data desse desaparecimento, estendendo a presença da espécie humana em quase 10 mil anos.
O estudo, publicado na revista Quaternary Science Reviews, explica o papel da caverna na rota do litoral mediterrâneo, que, durante os períodos mais frios do Paleolítico, se tornou um corredor natural para animais e seres humanos evitarem as montanhas dos Pireneus. Os pesquisadores encontraram, na Cova del Gegant, cinco restos mortais de quatro indivíduos neandertais diferentes.
“Com esse novo estudo de datação, determinamos que a caverna foi ocupada pelos neandertais durante um período de tempo mais longo do que pensávamos. Além disso, sabemos que os restos mortais foram depositados em dois momentos específicos e espaços diferentes da caverna: entre 72 mil e 67 mil anos atrás, os restos de uma criança foram depositados no fundo da caverna e, então, entre 60 mil e 52 mil anos atrás, os de mais dois indivíduos foram colocados na galeria perto do mar”, nota um dos arqueólogos que conduzem a pesquisa, Joan Daura, do Seminário de Estudos e Pesquisas Pré-históricas (SERP) da Universidade de Barcelona, liderado por Josep Maria Fullola.
Outro marco do estudo é que ele mostra que humanos modernos também ocuparam a Cova del Gegant. Embora os restos de ossos desses indivíduos não tenham sido encontrados, suas atividades, como incêndios, foram documentadas. A nova datação estabeleceu três períodos para esse importante local: a ocupação dos neandertais, entre 94 mil e 59 mil anos; de 43 mil a 39 mil anos, com alguma evidência da atividade humana moderna; e um último período, de 34 mil para 32 mil anos, correspondendo a uma ocupação da caverna por Homo sapiens sapiens.
Corredor natural
Para obter essa cronologia, os pesquisadores usaram métodos de datação com urânio e por luminescência, com novas técnicas que permitem uma maior precisão e confiabilidade. “As novas datações mostram que a caverna foi repetidamente ocupada por neandertais e humanos modernos”, observa Daura. “Pode ter servido como um corredor natural para humanos e animais durante as épocas mais frias do litoral mediterrâneo. Durante os períodos de frio, surgiu uma plataforma costeira que servia para esses movimentos, e a Cova del Gegant era um ponto desta rota”, destaca.
Hoje, a caverna está parcialmente inundada em consequência das oscilações do nível do mar. Porém, durante as fases mais frias do Paleolítico, o nível do Mediterrâneo estava entre 80m e 120m abaixo do atual. “Agora, o local está ameaçado pelo aquecimento global e principalmente pela elevação do nível do mar”, lamenta o pesquisador. (PO)
Fonte: Correio Braziliense