Ser mulher é um desafio no mundo todo. Na história, o preconceito de gênero é colocado como a mais antiga forma de opressão. Para as mulheres negras, a luta acaba sendo em dobro. Estão condicionadas aos menores salários e a postos de trabalho precarizados.
Mas o engajamento política delas, com o tempo, tem envolvido a sociedade em discussões transformadoras. E Brasília tem se tornado referência no debate sobre raça.
Falamos com quatro ativistas negras que vivem na capital e, aqui, têm não só despertado o debate, mas influenciado vidas. Na prática, essas mulheres formulam políticas sociais, projetos, negócios e materiais educativos para fazer do Brasil e do mundo um lugar mais igualitário.
Reconhecimento internacional
Clara Marinho, 37 anos, foi nomeada pela ONU (Organização das Nações Unidas) uma das 100 pessoas afrodescendentes mais influentes do mundo com menos de 40 anos em 2021. A lista tem outros nomes brasileiros, como Gil do Vigor e Taís Araújo. O evento de reconhecimento e premiação foi no mês passado, em Nova York, em cerimônia do MIPAD (Most Influential People of African Descent). Especialista em orçamento público relacionado a gênero e raça, Clara quer conduzir as questões da população negra usando uma linguagem descomplicada.
A jornada dela no serviço público é marcada pela participação em medidas como a aprovação das cotas raciais em cargos públicos e a PEC das domésticas. Em paralelo à atuação como servidora no Ministério da Economia, promove também o debate por meio de conteúdo na web, produzindo textos e podcasts.
Pode-se dizer que essa história começa em 2002, quando Clara entrou para a Universidade Federal da Bahia (UFBA), seu estado de origem. Lá, formou-se em http://ecosdanoticia.net/wp-content/uploads/2023/02/carros-e1528290640439-1.jpgistração. Em 2009, mudou-se para Brasília para trabalhar no Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial (Cepir), onde era responsável pela articulação entre estados e municípios na promoção da igualdade racial. Sem trajetória anterior de militância, o letramento racial crítico que tem hoje começou e cresceu com os quatro anos de trabalho na secretaria. A história, de lá para cá, tem sido de muito trabalho e muitas conquistas.
“Entrei na universidade em um período pré-ações afirmativas. Discutíamos, à época, se as cotas não iriam baixar o desempenho universitário, por exemplo”, avalia. Se, em um primeiro momento, a universidade não foi um grande espaço de politização para pautas raciais e de gênero, com as quais ela trabalha hoje, a vida conduziu para que isso viesse depois. “Sempre gostei de políticas sociais, então fui buscando trabalhar na área. Com o tempo, veio um incômodo intelectual. Passei a ansiar por um espaço de diálogo mais amplo.”
Foi nesse contexto, querendo dividir a inquietação que sentia com outras pessoas, que Clara passa a desenvolver projetos no Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, em parceria com o Fundo Baobá. Feito por e para mulheres negras, ele busca avançar de forma coletiva em prol da equidade racial. Ela teve contato com mulheres quilombolas, mulheres que trabalham na área criminal, professoras universitárias e outras tantas que estão à frente do movimento negro há tempos.
“Tive contato com pessoas da Jamaica, do continente africano, da China, também colegas da América do Sul, como do Peru, que têm dificuldade de reconhecer a contribuição negra na história do país. Acabou sendo uma rede potente de formação e articulação”, conta. As Nações Unidas, então, reconheceram a diferença que estava sendo feita. E foi dessa natureza coletiva que veio a nomeação da ONU.
Desde cedo
Muito grata, a servidora entende o reconhecimento como convite para atuar ainda mais diretamente nos direitos das pessoas negras. E, como cidadã, tem se aprofundado nas questões de raça e gênero e orçamento público.
Mãe de dois, Clara trabalha a consciência racial dos pequenos com eles: “Meus filhos têm absoluto entendimento que a família baiana, pela minha parte, é negra, e que eles próprios têm a pele mais escura. Explico tudo para que saibam desde cedo que são negros, para que se reconheçam como tal e entendam que têm amor para receber e para dar. Afinal, uma das características do racismo é a desumanização, como se a pessoa negra não fosse merecedora de carinho.”
Inclusive, por acreditar que o sonhar e o afeto devem estar presentes nas vidas das crianças, Clara tem se dedicado a escrever materiais infantis para tratar da questão racial de maneira lúdica.
A arte há de ser política
Jaqueline Fernandes, 41, é jornalista, gestora e produtora cultural. Para ela, as marcas que deixa na cena cultural hoje remetem à fase dos 13 aos 17 anos, quando já participava ativamente de rodas de discussões e eventos culturais em Planaltina, movidos pela contestação e já levantando pautas políticas. Nessa fase, no início dos anos 1990, o Movimento Anarcopunk vibrava forte no Distrito Federal e foi dali que ela construiu um primeiro olhar sobre a estrutura da sociedade.
“Organizava shows de amigos do rock e do punk rock. Tínhamos uma carência, como ainda temos, de equipamentos culturais, principalmente nas periferias. Então, nos arrumávamos nos poucos espaços à disposição. Peguei gosto e segui com essa veia voltada para a cultura de classe”, conta Jaqueline.
Atualmente, Jaque está bem mais voltada para a cultura hip hop, com a qual se identificou depois dos 17. O movimento a aproximou de uma pauta mais identitária: “Eu ainda não havia encontrado esse pertencimento racial. E pude encontrar no hip hop, a partir de grupos e da cena rap que tinha em Planaltina”, lembra.
Aficionada pela área de produção, mais tarde ela une o jornalismo — graduação que escolheu seguir — com divulgação e eventos. Foi a primeira pessoa da família com um diploma, conquistado aos 25 anos. “Hoje, felizmente, temos alguns formados”, celebra. Foi ainda na universidade que começou a estudar sobre América Latina. E, à medida que avança na vivência no curso de comunicação e na cultura hip hop, passa a atuar em projetos culturais, tanto na cobertura como na produção.
Latinidades
Depois, acabou se juntando a outras duas mulheres negras, também produtoras, para criar a Griô Produções: “Quando olhávamos para o DF, a gente não via a representatividade negra nos palcos nem nas contratações, atrás deles. Sabíamos dessa potência, então passamos a atuar para qualificar o trabalho de artistas negros”. Assim, eles chegariam às grandes plataformas. O grupo começou a fazer filmagens e releases profissionais, agenciar os artistas e vender shows fora de Brasília, a maioria dentro da cena hip hop.
“Até que somente qualificá-los não era suficiente. Justamente por estarmos lidando com racismo, que afasta a presença negra dos palcos e contratações, quisemos criar algo próprio, ir além”, explica. Nasce, então, em 2008, o Festival Latinidades, voltado para a geração de renda e a divulgação de trabalhos de artistas e para promover o Dia da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha, comemorado em 25 de junho, data pouco reconhecida no Brasil.
Hoje, o grupo é dirigido por 12 mulheres no DF (e outras tanto espalhadas pelo Brasil) e estão organizando a 15ª edição do festival, que vai acontecer em 2022. As últimas duas edições foram feitas de forma on-line. Jaqueline tem grandes expectativas para o retorno do festival a Brasília, também porque, em 2019, ele foi realizado em São Paulo.
O Festival Latinidades virou referência. É um espaço de formação estratégica, tem feira de negócios e espaço literário. Foi criada até uma editora com livros sobre os temas apresentados no festival. Jaqueline diz que o grupo busca um olhar mais sistêmico de como a arte e a cultura são espaço estratégico de formação e desenvolvimento social. “Conseguimos desenvolver políticas afirmativas na área da cultura e fomentar negócios de mulheres negras na economia criativa”, completa.
A produtora ainda teve experiência do outro lado do negócio. Em 2015, assumiu a Subsecretaria de Cidadania e Diversidade Cultural e pôde ver como a máquina funciona por dentro: “Eu me dei conta de como ainda é distante a política pública na base. Temos pessoas cansadas, que nunca tiveram o apoio do Estado. E alguns poucos insistindo para fazer um trabalho menos hegemônico”.
Por isso, a proposta de Jaque foi dar atenção aos recortes de gênero, raça e pessoas com deficiência, por meio da elaboração de políticas e programas culturais. “Focar em grupos historicamente excluídos. Ajudei a pensar portarias e leis para cultura LGBT, indígenas, também para acessibilidade, e culturas tradicionais, como a junina. É premiar os excluídos”, pondera. Assim, ela saiu do interesse de só produzir e foi parte para os estudos na área. Atualmente, presta consultoria para empresas, com curadoria para editais na área da cultura.
Construindo sonhos
Kelly Quirino, 40, nascida em São Paulo, também vem se mobilizando em prol de lideranças femininas e estudos raciais. Para ela, a base sempre foi a educação. “Quando pequena, sabia que, se fosse a melhor aluna que eu poderia ser, teria mais oportunidades”, conta.
Filha de uma mãe doméstica, hoje aposentada, e um pai alfaiate, ela passou pela universidade com esforço, trabalhando de dia e estudando durante a tarde e a noite. Embora tenha lidado com dificuldades, Kelly reconhece que ter tido acesso a uma escola pública de qualidade,a transporte, a posto de saúde, acesso a água e saneamento, além das referências e apoio na família, foram fundamentais para acessar o ambiente universitário, e dali avançar rumo a pautas que precisavam ser tratadas com urgência. “Infelizmente, reconheço também que muitos ficaram para trás. É como se eu fosse exceção”, diz.
É no ambiente da universidade, que ela frequenta até hoje como professora do curso de comunicação, que Kelly passou a apurar a visão sobre racismo e começou a militar, no período em que se discutiam as cotas raciais. Com 22 anos, ficou mais nítido o porquê de alguns incômodos da infância. A leitura racial que não teve quando mais nova, ganhou forma: “Comecei a analisar que, quando estava na escola, cheguei a desenvolver conversação com negros, mas via poucos deles seguindo com os estudos. Na adolescência, sentia que os homens se aproximavam interessados em sexo, mas nunca em namorar — o que hoje vejo até com certo alívio, porque muitas meninas engravidaram na adolescência e eu poderia ter seguido por esse caminho”.
Formação
Formada, Kelly entra para o Banco do Brasil, em 2007, onde construiu uma carreira sólida. Na instituição até hoje, ela trabalha com comunicação organizacional, com produção de conteúdo para os canais internos, organização de eventos e audiovisual. Traz para o ambiente as causas que advoga, como a representatividade negra.
Em 2015, conseguiu uma bolsa de um ano para estudar em Nova Orleans, nos Estados Unidos. Com o doutorado finalizado em 2017, surge a oportunidade de cursar liderança feminina. “As pessoas arrecadaram, por meio de doações, mais de R$ 20 mil para que eu pudesse fazer o curso”, conta. Kelly passa a ser reconhecida como alguém influente nos estudos raciais no DF e em âmbito nacional.
Professora em duas universidades e assessora na área de comunicação do Banco do Brasil, transitar por espaços diversos ajuda Kelly a disseminar causas sociais. “Temos um grupo de afinidade de funcionários pretos no banco, também pude estabelecer algumas políticas de diversidade dentro da instituição”, conta. A jornalista é também mentora de meninas mais novas. Como professora universitária, participa de bancas de apresentação de trabalhos, norteando as pautas que mais tem afinidade. “Chance de criar oportunidade para os outros”, define.
Enfrentamento pela educação
Autora do livro Educação das Relações Étnico-Raciais Análise da Formação de Docentes, Dalila Fernandes de Negreiros, 36, pesquisa a questão racial desde 2008. Natural de São Paulo, mudou-se para Brasília ainda criança, com 4 anos, acompanhando a mãe, que era servidora pública. E, aqui, iniciou uma trajetória ativa na luta pelos direitos das pessoas negras.
Na Universidade de Brasília (UnB), formou-se em geografia. “Eu entrei na UnB em 2005, exatamente no início do período das ações afirmativas. Havia uma organização do movimento negro muito atuante na universidade chamada EnegreSer — Coletivo Negro do DF e Entorno. E a minha formação política aconteceu dentro do EnegreSer”, conta. O período na UnB foi essencial no debate que ela passou a disseminar em Brasília e no Brasil.
As conquistas dividiam palco, ainda assim, com o racismo institucional: “Na universidade, eram poucos os professores negros, e os currículos dos departamentos desconsideravam intelectuais negros e o debate racial”, pontua. Nesse sentido, ela reforça que não é raro encontrar, até hoje, livros de geografia com análises e expressões racistas, ou que ignoram pessoas negras e o continente Africano.
Em 2009, políticos entraram com uma representação no STF (Supremo Tribunal Federal) contra as cotas. Foi quando Dalila e um grupo de pessoas formaram o Nosso Coletivo Negro – NCN-DF. Eles participaram na ação junto com o Movimento Negro Unificado para representar os estudantes negros no STF. “Depois de 10 anos, continuo fazendo parte do grupo, que defende políticas de igualdade racial para a população negra”, diz. Fazem atividades de formação de professores, denúncias e propõem políticas públicas.
“Também publicamos um jornal sobre a questão racial, chamado Nosso Jornal. Vamos lançar a próxima edição no dia 20 de novembro”, conta. Atualmente, Dalila faz doutorado em African and African Diaspora Studies, na University of Wisconsin-Milwaukee, Nos Estados Unidos.
Fonte: Correio Braziliense