O que faz com que um dialeto adquira o status de patrimônio linguístico? Essa era uma das questões do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em 2018, do caderno de Linguagens, na qual falava sobre o Pajubá, dialeto comumente usado pelo público LGBTQI+. No caso, a resposta, que não necessitava ter um conhecimento prévio na lingua, era que a palavra precisava ser consolidada por um objeto formal de registro, como um dicionário. A questão foi suficiente para irritar o então presidente eleito Jair Bolsonaro que fez questão de fazer uma live, principal meio usado por ele para propagar ódio, falando que era um “absurdo” uma pergunta do exame incentivar os jovens a conhecer mais o dialeto “daquelas pessoas”. “Vão falar que eu estou implicando, mas pelo amor de Deus, aquela linguagem particular daquelas pessoas, o que nós temos a ver com isso, meu Deus do céu, vamos ver o significado daquelas palavras, é um absurdo. Fiquem tranquilos, não vai haver questão dessa forma o ano que vem (2019). Vamos tomar conhecimento da prova antes”, disse Bolsonaro.
E ele não estava mentindo. Três anos depois, na semana da realização do Exame, ao que tudo indica, o presidente, o ministro da educação, Milton Ribeiro, o presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), Danilo Dupas Ribeiro, e até mesmo um policial federal, entre outras pessoas, não só tiveram acesso a prova, como realizaram uma intervenção inédita e autoritária, retirando 24 questões do exame após uma “leitura crítica”. 13 questões teriam voltado ao conteúdo do exame, porém 11 delas foram vetadas por conterem temas “sensíveis”. Na segunda-feira, 15, durante a Expo 2020, em Dubai, o presidente afirmou a jornalistas que as questões do Enem a partir deste ano “começam a ter a cara do governo”. “Ninguém precisa ficar preocupado. Aquelas questões absurdas do passado, que caíam no tema de redação, que não tinha nada a ver com nada, não terão mais. Realmente, algo voltado para o aprendizado”, disse. A provocação acontece dias depois de 37 servidores — 27 deles coordenadores do Enem — pedirem exoneração da pasta e acusarem o atual presidente do Inep, Danilo Dupas, de assédio moral — ele é o quinto responsável pelo órgão apenas no governo Bolsonaro.
Os servidores afirmaram que além do assédio moral sofrido dentro da pasta, eles padeceram a pressões psicológicas e a uma vigilância velada na formulação do Enem 2021 para que evitassem escolher questões polêmicas que eventualmente incomodariam o governo Bolsonaro. As mais de duas dezenas de perguntas retiradas, por exemplo, teriam partido do diretor de Avaliação de Educação Básica do Inep, Anderson Oliveira, e tratavam de conhecimentos do contexto sociopolítico e socioeconômico do Brasil. Foi exigido também a retirada do termo ditadura militar de todas as questões envolvendo o tema, no lugar foi posto regime militar. A exclusão das questões necessitou que os servidores preparassem uma segunda versão da prova, mas sem descalibrá-la – foi mantida a mesma quantidade de questões consideradas fáceis, médias e difíceis. “Há uma interferência técnica de altíssimo nível, uma tentativa de enfraquecer o Inep. Acredito que os servidores foram muito corajosos de vir a público e falar o que se passa dentro do órgão. Dizer que eles se movimentaram por uma questão salarial é absurda. São servidores de carreira, eles não manchariam o nome deles por salário”, afirma a ex-presidente do Inep na gestão Michel Temer, Maria Inês Fini.
A professora afirma que essa não é a primeira vez que o governo tenta censurar a prova e colocar questões ideológicas que são de seu gosto no Enem. Logo que tomou posse, Bolsonaro nomeou Marcus Vinicius Rodrigues para presidir o Inep. Na semana que assumiu o órgão, ele teria levado três professores até o “ambiente seguro” — sala criada para manter o sigilo absoluto da montagem e criação das provas com detector de metais, câmeras, sem pontos cegos e senhas na porta — para avaliar as questões do Banco Nacional de Itens, formado por milhares de questões redigidas por professores escolhidos por edital, e ver se estavam de acordo com o que o governo achava que seria essencial estar ou não na prova. “Nós temos revelações preocupantes. De um lado temos um controle ideológico e uma censura explícita a questões relacionadas à prova, por outro, com essas demissões, perdemos os gestores de risco do exame, o que ameaça a execução da prova. É decepcionante e triste o que estão fazendo com o Enem por um misto de incompetência e ideologias. É surreal essa intromissão. Espero que o próximo governo possa reconstruir esse exame”, afirma o ex-Ministro da Educação Renato Janine Ribeiro.
Após a infeliz citação do presidente Bolsonaro sobre as questões terem a cara do governo, o ministro Milton Ribeiro tentou colocar panos quentes e negou qualquer interferência no exame, mesmo após dizer que teria acesso prévio às questões. “O Enem tem a cara do governo, no sentido de competência, honestidade, seriedade”, afirmou. Já o presidente do Inep, em participação na audiência pública no Senado para explicar a exoneração dos 37 servidores, afirmou que ele e o ministro não tiveram acesso ao conteúdo da prova, mas disse que “é comum” ocorrer uma troca entre as questões durante a montagem dos testes. Seja como for, a vontade censora do governo já se manifestou flagrantemente. A prova mais importante da educação brasileira, cuja primeira etapa acontece domingo, 21, está sob suspeita.
Fonte: Isto É