Em julho deste ano, quando Michaela Kennedy-Cuomo – filha do então governador de Nova York, nos Estados Unidos, Andrew Cuomo – declarou-se “demissexual”, muitos desdenharam dela.
Poucos reconheceram a demissexualidade, a falta de atração sexual por outras pessoas sem forte conexão emocional, como algo “real”.
Mas, embora a demissexualidade não seja amplamente conhecida, trata-se de uma orientação sexual como qualquer outra, que se aplica a pessoas de todas as partes do mundo.
Ela se enquadra no espectro da assexualidade e é diferente de simplesmente esperar que se forme uma ligação profunda antes de ter sexo com alguém.
Na verdade, ela se assemelha mais à experiência de ser assexual até que se forme esse tipo de conexão, quando a atração sexual se estenderá apenas para aquela pessoa.
Já para os alossexuais (as pessoas que não se encontram no espectro assexual), esperar até que se forme uma conexão profunda para ter sexo é mais uma questão de preferência e menos de necessidade para que se desenvolva o desejo sexual.
O anúncio de Kennedy-Cuomo teve efeitos positivos, segundo Kayla Kaszyca, demissexual cocriadora do podcast Sounds Fake But Okay (“Parece mentira, mas tudo bem”, em tradução livre), no qual ela e sua colega assexual e arromântica Sarah Costello discutem o amor, relacionamentos e sexualidade no espectro assexual.
Em alguns casos, Kaszyca afirma que a declaração de Kennedy-Cuomo levantou a questão da demissexualidade, incentivando “mais diálogo sobre o assunto”.
Por outro lado, a ampliação das discussões também trouxe consigo detratores e espalhou desinformação.
“Acho que a palavra [demissexualidade] definitivamente está mais presente e conhecida, mas a definição adequada ainda poderá não estar clara para muitas pessoas”, afirma Kaszyca, que tem 24 anos de idade.
Algumas pessoas, por exemplo, ainda negam a demissexualidade, insistindo que é “normal” não sentir atração sexual por alguém até que se forme uma conexão emocional mais profunda com essa pessoa.
Por isso, Kaszyca afirma que “é preciso começar a desfazer o mito”.
As pessoas que se identificam como demissexuais, como Kaszyca e outros que compartilham conteúdos relacionados à sua orientação, estão trabalhando ativamente para esclarecer essa definição.
É uma tarefa muito delicada discutir algo que não tinha um nome até pouco tempo atrás e cuja definição muitas vezes confunde as pessoas.
Mas, durante os últimos anos, as discussões sobre demissexualidade proliferaram-se nos grupos de Facebook, postagens no Instagram e entre as organizações dedicadas ao espectro assexual em todo o mundo.
‘Eu demorei muito para aceitar’
As pessoas frequentemente rastreiam a origem do termo demissexual até 2006, em uma postagem no fórum Visibilidade Assexual & Rede de Educação (Aven, da sigla em inglês).
“Acho que é uma palavra que surgiu principalmente no site Aven e entre ativistas assexuais”, afirma Anthony Bogaert, pesquisador da sexualidade humana e professor da Universidade Brock, em Ontário, no Canadá, que escreveu diversos estudos sobre assexualidade.
Naquela época, as pessoas do site Aven estavam descobrindo como poderia ser diverso o espectro assexual.
Novos termos começaram a surgir à medida que as pessoas que haviam se identificado anteriormente como assexuais observavam circunstâncias específicas nas quais elas poderiam sentir atração sexual.
“Existe uma tradição de permitir que pessoas com diferentes tipos de identificação e muita variabilidade entrem no site Aven”, afirma Bogaert.
E essas pessoas ajudaram a fazer avançar as discussões sobre assexualidade, identificando diversos aspectos do espectro assexual.
Ao fazê-lo, elas forneceram informações que não estavam disponíveis em outros lugares na internet.
Mas a assexualidade era – e ainda é – mais amplamente discutida que a demissexualidade. Isso ocorre, em parte, porque a primeira é conceitualizada mais facilmente pelas pessoas que não são assexuais.
As pessoas assexuais “experimentam pouca ou nenhuma atração sexual”, segundo Kaszyca. “É um rótulo fácil de ser usado”.
Mas acrescentar a isso um adendo como “…exceto quando desenvolvem profunda conexão emocional” às vezes pode deixar os alossexuais coçando a cabeça.
Elle Rose, uma jovem com 28 anos de Indiana, nos Estados Unidos, começou a identificar-se como demissexual depois de descrever sua sexualidade para uma amiga, alguns anos atrás.
“Ela olhou para mim e disse: ‘Elle, você está descrevendo a demissexualidade'”, conta Rose. “Eu ainda demorei muito para aceitar.”
Temendo as complicações para sua vida amorosa se fosse abertamente demissexual, Rose frequentemente se descrevia como “pansexual”, omitindo a identidade demissexual.
‘As pessoas finalmente podem se ver representadas’
Rose atribui as posturas de negação da demissexualidade nos Estados Unidos, em parte, à “cultura puritana”, na qual as mulheres, por um lado, são altamente sexualizadas nos meios de comunicação, mas também se espera que elas se “resguardem” para a pessoa certa (ou para o casamento, particularmente em ambientes religiosos).
Conceitualmente, essa ideia se alinha claramente à abstinência sexual até que se forme uma ligação profunda com um parceiro.
Mas ainda é, em último caso, uma preferência, com a qual os demissexuais não se identificam. Essa falta de compreensão, muitas vezes, gera solidão.
Cairo Kennedy, uma jovem com 33 anos de idade de Saskatchewan, no Canadá, cresceu “sem experimentar atração sexual da mesma forma que as minhas colegas e você se sente ‘meio que com defeito'”, conta ela.
“Isso se tornou um grande segredo e fonte de vergonha.”
Quando ela descobriu, apenas alguns anos atrás, que havia um nome para sua orientação sexual, se sentiu “bem, mas na época não havia informação” – ou pelo menos ninguém falava sobre a demissexualidade do ponto de vista de uma pessoa com experiência pessoal.
Havia postagens suficientes no Aven para que ela lesse e pensasse “veja, esta sou eu”, mas não tantas para que ela dissesse “veja, existem muitas pessoas como nós”.
Kennedy decidiu preencher essa lacuna, lançando um blog sobre o “estilo de vida demissexual”.
Por meio do blog, muitos outros demissexuais entraram em contato com ela – desde adolescentes até pessoas com mais de 50 anos de idade, que vivem principalmente nos Estados Unidos e na Europa.
“Fiquei muito surpresa em saber quantas pessoas pareciam se identificar (como demissexuais)”, conta ela.
“Acho que o termo é mais popular devido às redes sociais”, afirma Janet Brito, terapeuta especializada em sexualidade humana residente no Havaí.
Ela ouviu pela primeira vez o termo demissexualidade em 2014, durante os estudos para seu pós-doutorado, na Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos, “muito embora ele descreva [uma orientação sexual] conhecida há muito tempo”.
Embora Brito reconheça que a demissexualidade está presente em todas as faixas etárias, seus clientes abertamente demissexuais costumam ter pouco mais de 20 anos de idade.
“Eles são mais expostos às redes sociais, [onde] é mais aceitável falar sobre esse espectro”, segundo ela.
Essa exposição cria validação. “As redes sociais abrem as portas para muitas outras vozes que não teriam se exposto no passado”, acrescenta Brito. “[As pessoas] finalmente podem se ver representadas.”
Com 30 anos de idade, Klaus Roberts, que mora nos arredores de Helsinque, na Finlândia, agradece à internet por ajudá-lo a dar um nome à sua orientação cerca de cinco anos atrás.
“A Finlândia está um pouco atrasada em muitos desses assuntos porque somos um país relativamente pequeno”, segundo ele.
Roberts havia se identificado como assexual, mas conhecer pessoas em comunidades LGBTQIAP+ online internacionais ajudou-o a compreender que demissexual o descrevia melhor.
“As pessoas que sabem alguma coisa sobre esses termos têm mais facilidade para me compreender quando falo dessa forma.”
‘Compreender melhor a natureza da sexualidade’
Quando as escolas convencionais deixam de fornecer informações sobre a diversidade de orientações sexuais, essas vozes online tornam-se fundamentais para a educação.
Kaszyca e sua colega Sarah Costello começaram seu podcast quando eram estudantes na Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, e apenas os seus amigos ouviam para apoiá-las.
Hoje, seu alcance se expandiu para outros países de língua inglesa e para a Europa. Kaszyca estima que Sounds Fake But Okay agora atinge 7 mil ouvintes por semana.
Ela acrescenta que seus ouvintes não são somente as pessoas do espectro assexual – seus pais, parceiros e amigos também ouvem o podcast para aprender.
“O nosso episódio mais ouvido chama-se ‘Assexualidade 101′”, segundo Kaszyca. “As pessoas contam que o enviaram para seus amigos ou parentes depois que ouviram, para ajudar a educá-los e… facilitar o processo de educação.”
Essa educação também ajuda os demissexuais a navegar por outras partes da sociedade, como os encontros.
Kaszyca afirma, por exemplo, que os aplicativos facilitaram os encontros para os demissexuais porque você pode incluir sua orientação no seu perfil.
Isso evita conversas que, de outra forma, seriam densas para um primeiro encontro.
“Espera-se que o primeiro encontro seja casual”, afirma ela, “e aí você diz: ‘então, vamos ter uma conversa profunda sobre a minha identidade e vou provavelmente precisar ensinar a você o que é a demissexualidade, já que ela é tão pouco conhecida.”
De forma geral, falar e aprender sobre a “variabilidade existente na comunidade assexual mais ampla”, segundo Bogaert, é fundamental para evitar a alienação das minorias sexuais.
Mas também é fundamental porque “nos permite compreender melhor a natureza da sexualidade” como um todo.
Fonte: Correio Braziliense