O distanciamento de dois metros não garante, nem em ambientes abertos, a proteção contra partículas aéreas infectadas pelo Sars-CoV-2, segundo um estudo publicado na revista Physics of Fluids. De acordo com os pesquisadores, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, essa medida é arbitrária e não impede a transmissão na ausência de máscaras, sugerindo que liberar o uso do equipamento de segurança ao ar livre pode não ser uma boa ideia.
Usando modelagem de computador, os engenheiros acompanharam o comportamento das gotículas quando as pessoas tossem. Eles descobriram que cada uma o faz de maneira diferente, sendo impossível estabelecer um padrão. A distância “segura”, disseram os cientistas, poderia ser qualquer lugar entre um metro ou mais de três metros. No artigo, os autores destacam que, sozinho, o distanciamento social não é uma medida eficaz de mitigação, sendo necessário dar continuidade ao uso de máscaras, mesmo em ambientes externos, apostar na vacinação e na ventilação natural.
Apesar do foco inicial na lavagem das mãos e na limpeza de superfícies nos primeiros meses da pandemia, há quase dois anos já se sabe que a covid-19 se espalha pela transmissão aérea. As pessoas infectadas podem disseminar o vírus por meio da tosse, da fala ou mesmo da respiração, quando expelem gotículas maiores que acabam se assentando ou aerossóis menores, que podem flutuar no ar.
“Lembro-me de ouvir muito sobre como a covid-19 estava se espalhando pelas maçanetas no início de 2020, e pensei comigo mesmo: se fosse esse o caso, o vírus deveria deixar uma pessoa infectada e pousar na superfície. Ou, então, se dispersar no ar, através de processos mecânicos”, disse, em nota, o líder da pesquisa, Epaminondas Mastorakos. O professor do Departamento de Engenharia de Cambridge é especialista em mecânica dos fluidos: a maneira como eles (incluindo a respiração exalada) se comportam em diferentes ambientes. Ao longo da pandemia, Mastorakos e seus colegas da instituição desenvolveram vários modelos de como a covid-19 se espalha.
“Uma parte da forma como essa doença se espalha é a virologia: a quantidade de vírus que você tem em seu corpo, quantas partículas virais você expulsa quando fala ou tosse”, explicou Shrey Trivedi, também do Departamento de Engenharia, ao site da Universidade de Cambridge. “Mas outra parte é a mecânica dos fluidos: o que acontece com as gotas depois de serem expelidas, é aí que entramos. Como especialistas em mecânica dos fluidos, somos como a ponte da virologia do emissor para a virologia do receptor e podemos ajudar na avaliação de risco.”
Transmissão
No estudo, os pesquisadores de Cambridge fizeram uma série de simulações computacionais para verificar até onde é possível transmitir o vírus. Para isso, usaram modelos computacionais complexos, resolvendo as equações baseadas no escoamento de gotículas, assim como descrições detalhadas do movimento e da evaporação das partículas emitidas.
Os cientistas descobriram que as gotas se espalham além de dois metros. Quando uma pessoa tosse e não está usando máscara, a maioria das partículas maiores cairá nas superfícies próximas. No entanto, as menores, suspensas no ar, podem se espalhar rápido e facilmente bem além dessa distância, alegam. O alcance e a velocidade de disseminação dos aerossóis dependerá da qualidade da ventilação, no caso de locais fechados.
Além das variáveis relacionadas ao uso da máscara e à ventilação, também há um alto grau de variabilidade nas tosses individuais. “Cada vez que tossimos, podemos emitir uma quantidade diferente de líquido. Então, se uma pessoa está infectada com covid-19, ela pode estar emitindo muitas partículas de vírus ou muito poucas, e por causa da turbulência eles se espalham de forma diferente a cada tosse”, explicou Trivedi. “Mesmo que eu expulse a mesma quantidade de gotas toda vez que tossir, porque o fluxo é turbulento, há flutuações”, ressaltou Mastorakos. “Se estou tossindo, as flutuações na velocidade, temperatura e umidade significam que a quantidade que alguém consegue (emitir) na marca de dois metros pode ser muito diferente a cada vez.”
Os pesquisadores dizem que, embora a regra dos dois metros seja uma mensagem eficaz e fácil de lembrar para o público, não é um sinal de segurança. Vacinação, ventilação e máscaras — embora não sejam 100% eficazes — são vitais para conter o vírus, destacam. “Estamos todos desesperados para ver o fim desta pandemia, mas recomendamos fortemente que as pessoas continuem usando máscaras, especialmente em espaços internos, como escritórios, salas de aula e lojas”, disse Mastorakos. “Não há nenhuma boa razão para se expor a esse risco, desde que o vírus esteja conosco.”
O virologista Julian Tang, pesquisador da Universidade de Leicester (Reino Unido) que não participou do estudo, insiste que as máscaras são importantes inclusive ao ar livre, quando há concentração de pessoas. “Por exemplo, se você estiver em uma fila para pegar o ônibus, mesmo com mais de 2m de distância, usar uma máscara reduzirá ainda mais a transmissão de qualquer vírus transportado pelo ar. Pense assim, se você está parado e alguém está fumando: mesmo se você estiver a mais de dois metros de distância, pode sentir o cheiro”, compara.
Segundo o virologista, com o vírus em aerossol acontece algo semelhante. “As pessoas expiram de meio litro a um litro de ar, 12 a 16 vezes por minuto (essa é a taxa da respiração normal). Então, cada respiração pode bombear mais vírus no ar se você estiver infectado. O vírus pode sobreviver por mais tempo nos dias mais frios e escuros de inverno — portanto, é capaz de viajar na direção do vento para que outras pessoas respirem — mais além dos 2m”, diz, lembrando que a aproximação do inverno no Hemisfério Norte pode levar a um aumento substancial de casos. “Portanto, com base no que sabemos sobre a física e a fisiologia da transmissão do vírus aerossol, usar uma máscara ao ar livre em filas ou locais com concentração de pessoas ajudará a reduzir a transmissão.”
Medida antiga
Um estudo publicado em agosto do ano passado por pesquisadores da Universidade de Oxford e do Instituto Tecnológico de Massachusetts também colocou em dúvida a regra dos dois metros e explicou de onde surgiu essa medida. Os autores explicam que o estudo de como as gotículas são emitidas durante a fala ou quando se tosse ou espirra começou no século 19, com os cientistas coletando amostras em placas de vidro.
Em 1897, o bacteriologista alemão George Flügge propôs uma distância segura de 1-2 metros, com base no trajeto percorrido pelas gotículas visíveis. Na década de 1940, a documentação das emissões foi aprimorada, com imagens estáticas de espirro, tosse ou fala. Um estudo, em 1948, sobre disseminação de estreptococos hemolíticos descobriu que 65% dos 48 participantes produziram apenas gotas grandes, menos de 10% das quais viajaram até 1,7m.
No entanto, nos casos em que a distância foi maior que isso, encontrou-se amostra de estreptococos a 3m do local onde as gotas foram expelidas. Assim, consolidou-se a regra de distanciamento de 1-2m, explicaram os autores do artigo.
Porém, ela foi elaborada pensando-se em gotas grandes e em uma época na qual modelagens computacionais ainda eram ficção científica. “O tamanho de uma gota determina a distância que ela percorrerá da pessoa infectada. De acordo com estudos, as grandes caem no ar mais rapidamente do que evaporam e pousam em um intervalo de 1-2 metros. Mas pequenas gotículas (mais tarde chamadas de aerossóis ou gotículas no ar), normalmente invisíveis a olho nu, evaporam mais rapidamente do que caem. Sem fluxo de ar, não podem se mover para longe, permanecendo nas proximidades do exalador. Com o fluxo de ar, eles podem se espalhar por distâncias maiores”, destacou o artigo, publicado na revista The British Medical Journal.
Fonte: Correio Braziliense