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Após mais de 30 anos da Lei do Racismo, ser condenado ainda é raridade

Uma delegada de polícia negra vai em um shopping fazer compras em uma loja de roupas e é barrada na entrada, uma cantora é agredida fisicamente e verbalmente enquanto trabalha por ser negra. Esses são só alguns dos exemplos recentes de crimes raciais cometidos no Brasil. Sete em cada 10 pessoas negras declararam já ter sofrido preconceito em lojas, shoppings, restaurantes ou supermercados, segundo uma pesquisa do Instituto Locomotiva. Já um levantamento feito pelo Instituto Paraná Pesquisas, encomendado pela revista Veja, mostrou que 61% dos brasileiros consideram o Brasil um país racista. Porém, apesar de ser crime, desde 1989, a impunidade para o racismo ainda é grande no país. São raras as condenações por este crime na nossa Justiça. Em 2020, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) apresentou somente três denúncias em relação ao crime.


De acordo com especialistas consultados pelo Correio, imputar a alguém o crime de racismo é difícil devido ao próprio racismo estrutural presente no Judiciário. A maior parte dos crimes raciais acabam sendo registrados como injúria racial, que tem uma pena mais leve e é prescritível. “Há uma aceitação da discriminação e do racismo na estrutura da própria Justiça. A primeira barreira é na investigação, que fica a cargo da polícia, nesse momento já tem uma dificuldade para que seja colocado o crime como racismo. Depois, o inquérito é encaminhado para o Ministério Público e é um segundo momento que a gente vê que há uma dificuldade”, destaca a professora Elisa Cruz, da FGV Direito Rio. Isso se reflete no número de ocorrências. Dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação mostram que no DF, por exemplo, de todos os 3.460 Boletins de Ocorrência registrados desde 2000 pela Polícia Civil relacionados a questões raciais, somente 21 foram por racismo. “A opinião mais aceita é que nesses dois momentos existe uma preferência para o crime de injúria racial”, completa Elisa.


Fernando Nascimento dos Santos, advogado criminalista e doutorando em direitos humanos e cidadania pela Universidade de Brasília (UnB), explica que vários estudos demonstram que, apesar de termos leis criminalizando o racismo e o Brasil seja reconhecidamente um país racista, ainda existe um mito de que há uma democracia racial no país. “Há um racismo institucional impregnado no sistema de justiça, que, dentre outros fatores, dificultam, e muito, o combate efetivo, pois o problema não é de lei, apenas, mas de como a lei é manejada. No Brasil, o que temos visto, é a manipulação dessas leis que criminalizam o racismo quase sempre para favorecer os agressores. Uma espécie de imunidade, que só é possível entender se reconhecermos a lógica e a cultura racista que estruturam a sociedade Brasileira”, destaca.


De acordo com a professora Elisa, a classificação correta no início do processo define todo o rumo da investigação. “Essa tipificação vai orientar o processo. O réu vai se defender daquilo que é acusado. No caso da injúria, ele só tem que provar que não ofendeu a pessoa na honra e na moral. No crime de racismo, a gente não precisa provar que a pessoa foi ofendida e, sim, que aquele comportamento é discriminatório”, explica.


Fora isso, ainda tem os casos não são registrados nem como crimes raciais. No caso do João Alberto Silveira Freitas, morto por seguranças em uma loja do Carrefour em Porto Alegre às vésperas do dia da Consciência Negra do ano passado, não houve o indiciamento de ninguém por racismo. A delegada responsável pelo caso chegou a dizer que o caso não se enquadraria em racismo, apesar de não negar que se trata de um caso de racismo estrutural. O Carrefour fechou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) no valor de R$ 115 milhões.


24 /11/2020. Credito:  Reprodução/Redes sociais. João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, foi espancado e morto por dois homens brancos em Porto Alegre.Na foto,  Adriana Alves Dutra.

24 /11/2020. Credito: Reprodução/Redes sociais. João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, foi espancado e morto por dois homens brancos em Porto Alegre. Na foto, Adriana Alves Dutra.(foto: Reprodução/Redes sociais.)

 


Essa realidade é ressaltada pela própria formação do Judiciário. Apesar de 56% da população brasileira se identificar como pretos ou pardos, somente 19% dos magistrados são negros e 29% dos servidores da Justiça se autodeclaram negros, de acordo com o Censo do Poder Judiciário. “Não é possível acreditar que a sociedade vai deixar de ser racista se historicamente os espaços de poder e privilégios são reservados aos brancos, os quais, curiosamente, são também aqueles que decidem o destino dos negros. Isso acontece no Judiciário, por exemplo. Quem, em sã consciência, acredita que é possível melhorar o desempenho do julgamento das demandas reivindicatórias da população negra em Judiciário historicamente dominado por homens brancos?”, questiona Fernando.


Problema vai além da classificação

Uma pesquisa publicada em 2020 com a análise de casos de crimes raciais no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (UFMG) encontrou falhas na forma como essas questões são tratadas no Judiciário. De acordo com a pesquisadora Ariana de Carvalho, do Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos da UFMG, responsável pelo estudo, apesar de o escopo ser pequeno foi possível reparar a repetição de erros na condução dos processos. “Em uma das sentenças absolutórias, identifiquei que o magistrado deu espaço para a exposição de grande quantidade de depoimentos da defesa, por outro lado, houve o que chamamos de “silenciamento” discursivo dos depoimentos das testemunhas de acusação, o que, a nosso ver, exprime uma motivação deficitária com tendências à parcialidade. Em outra sentença absolutória, pelo discurso de motivação, observou-se que o magistrado passou maior parte do tempo discutindo os atos reprováveis do marido da vítima, isso, de certo modo, “apagou” a acusação e lançou a vítima em segundo plano, o foco de discussão foi modificado”, exemplifica.


Racismo, um crime subjetivo?

“Filhote de macaco”, “macaco, preto, safado e filho da ***”, “Você também não é bonito, tem a cor feia, é preto”, essas ofensas difíceis de serem lidas foram retiradas de processos de injúria racial abertos pela Justiça do DF em 2020. A maior parte deles ainda está em andamento. Ao todo, o Brasil tem mais de 134 mil processos em tramitação sobre crimes raciais. Só 1,3% deles são de racismo, de acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Seis deles estão na última instância de recursos, no Superior Tribunal de Justiça (STJ).


De acordo com Beethoven Andrade, presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB/DF, há ainda uma grande dificuldade na compreensão de todo mundo do que é racismo e do que é injúria racial. “A lei não define o crime de racismo, porque é amplo, fica aberto, permitindo ao Judiciário interpretar a legislação. Quando acontece um ato de racismo, a Justiça vai tentar encontrar a vítima. Caso não consiga identificar, vai ser tratado como racismo”, destaca.


Para Elisa, o fato da Justiça entender o crime racial como subjetivo é outro fator que dificulta a devida classificação dele. “Nessa estrutura racista, o racismo é entendido como algo subjetivo. As pessoas confundem. Essa é a prova de que o racismo é estrutural”, afirma. “O racismo estrutural nos permite imaginar que é algo do nosso cotidiano. Chamar alguém de macaco é uma “brincadeira” ou falar que “preto é burro”. Há muitas decisões que entendem como um mal-entendido, porque é o que a defesa vai alegar. A questão maior é que temos um sistema que naturalizou a violência”, completa Beethoven.
Ariana lembra que os dois crimes são extremamente graves e por isso ela acha que não deveria haver uma separação. “Questiono tal distinção, visto que, tanto em um quanto em outro caso, as representações sociais e imaginários sociodiscursivos, que estão por trás sustentando os dois crimes, são da mesma natureza, desse modo, não seria a injúria mais branda que o racismo.”


No caminho da mudança

Esta sensação de impunidade que quem sofre o racismo sente, porém, pode estar com os dias contados. Uma decisão histórica do Supremo Tribunal Federal (STF), mês passado, equiparou a injúria racial ao racismo. Isso quer dizer, que a partir de agora os tribunais poderão entender que não há mais prescrição, ou seja, pode ser julgado a qualquer tempo, independentemente da data em que o crime foi cometido. Além disso, o crime também passa a ser inafiançável. “Os dois são crimes diferentes, mas têm o mesmo objetivo. Quando o STF faz essa equiparação, muda as limitações que a lei coloca, principalmente o fato de que a injúria tinha um prazo, agora deixa de existir. O tempo antes para punir alguém que cometeu injúria era de um a três anos, podendo chegar a no máximo oito anos, o que é um tempo curto para a Justiça”, explica Elisa.


Nesta quinta-feira (18/11), um outro passo em relação a essa equiparação foi dado. O plenário do Senado aprovou um projeto de lei que tipifica a injúria racial como crime de racismo. O PL, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), também aumenta a pena para o crime. Agora, ele será analisado pela Câmara dos Deputados.


Ao que é de direito

Neste ano, uma outra decisão inédita para a Justiça brasileira também pode trazer mudanças para casos futuros. Pela primeira vez, uma pessoa foi condenada por racismo e injúria racial. Em 2017, o estudante de direito da Fundação Getulio Vargas (FGV) Gustavo Metropolo tirou uma foto do colega e expôs no WhatsApp com a legenda: “Achei esse escravo aqui no fumódromo. Quem for o dono avisa”. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) entendeu que houve a pratica de preconceito e discriminação racial ao exteriorizar ideias racistas e também ofensa a honra do colega. Metropolo nega que tenha sido o autor da foto. O estudante foi condenado a 2 anos e 4 meses de prisão, em regime aberto. A pena foi substituída por prestação de serviços à comunidade e pagamento de cinco salários mínimos à vítima. Em segunda instância, a condenação foi mantida. Agora, a defesa recorreu ao STF e ao STJ, que ainda não analisaram os recursos. De acordo com Beethoven, a decisão certamente deve repercutir em outros casos. “É uma decisão inédita que deve ser replicada. Ela trás a verdade. A ofensa pela cor decorre do racismo. Independente da injúria, eu estou cometendo racismo”, afirma.


Este ano, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) apresentou perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) um caso de racismo de 1998 ocorrido no Brasil que segue sem punição. Na ocasião, duas mulheres negras se candidataram para uma vaga anunciada em um jornal, ao chegarem na seleção foram informadas que a vaga já tinha sido preenchida. Logo em seguida, uma mulher branca compareceu e foi contratada de imediato. O acusado foi absolvido em 1999, o recurso demorou quase quatro anos para ser julgado. Em 2004, o acusado foi condenado, porém, a justiça declarou a extinção da sentença por prescrição. O Ministério Público ainda alega que o crime de racismo é imprescritível. O mandado de prisão ainda chegou a ser expedido, mas a justiça determinou que o réu cumprisse a pena em regime aberto. Quando o relatório foi elaborado ainda tinha recursos do condenado para serem analisados.


Em 2006, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) condenou o Brasil em um caso de discriminação racial, em uma decisão inédita. De acordo com o organismo, o país violou artigos de convenções internacionais ao arquivar um caso de racismo sem que ele fosse julgado. O caso foi de uma empregada doméstica que viu um anúncio no jornal que dizia “preferência branca” para a candidata.


Um relatório elaborado este ano pela OEA classificou o Brasil como “racista”. Em uma análise de 200 páginas sobre os Direitos Humanos no país, o organismo ressaltou a estrutura racista predominante e disse que o Estado brasileiro é omisso em relação à questão.


Caminhos para a mudança

Para além do papel da Justiça, os especialistas alertam que o caminho para que isso seja diferente passa por muito mais questões. “A mudança precisa vir da indignação e de quem trabalha na justiça. É preciso uma melhor capacitação do Ministério Público e das polícias”, ressalta Elisa. De acordo com Fernando, o importante é que a denúncia seja feita. Ele ressalta o trabalho feito pelo Ministério Público, por meio do Núcleo de Enfrentamento à Discriminação (NAD), criado em 2009, no combate a crimes raciais e a importância dos movimentos sociais no combate ao racismo. “Apesar da deficiência do sistema de justiça no combate ao racismo, que muitas vezes até desmotiva as vítimas, é extremamente importante não ficar calado”, afirma.


Ele ainda lembra que um importante passo tem sido dado, que é a não aceitação de falas e comportamentos racistas como naturais. “Cada vez mais as pessoas estão conseguindo perceber que foram vítimas de uma ofensa de cunho racista, que a piada não era apenas uma brincadeira, mas sim uma ofensa racial, e por aí vai. Isso tende a aumentar as denúncias. Mas o Estado ainda precisa se estruturar melhor para o acolhimento dessas pessoas, em núcleos especializados nas delegacias, nas polícias e nos ministérios públicos.”


O presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB/DF, Beethoven Nascimento de Andrade, ressalta que não basta punir. Para efetivamente acabar com o racismo é preciso educar. “Muitas vezes as pessoas acham que não é um crime, outras conhecem mas acham que não vai dar em nada. Por isso, é preciso educar. Trazer à tona o que é racismo. O meio mais efetivo de combater é a implementação da Lei nº 10.639 que estabelece que as escolas devem tratar na sua grade curricular o negro na formação da nossa história”, diz. “Nós precisamos recontar a nossa história”, crava.


Fonte: Correio Braziliense


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