A sala de revisão de incidentes da ShotSpotter é como qualquer outro centro de atendimento de chamadas.
Analistas, com seus fones de ouvido, estão sentados diante de telas de computador, ouvindo atentamente. Mas as pessoas trabalhando aqui têm uma responsabilidade extraordinária.
Elas tomam a decisão final sobre se um algoritmo de computador identificou corretamente um disparo de arma de fogo — e se é o caso de chamar a polícia. Tomar uma decisão errada traz graves consequências.
A ShotSpotter foi objeto de muita cobertura negativa na imprensa no último ano. Foram feitas alegações que variaram desde sua tecnologia não ser precisa a acusações de que a ShotStopper está alimentando discriminação dentro da polícia.
Diante dessas histórias negativas, a empresa deu à BBC News acesso a seu centro nacional de revisão de incidentes.
A ShotStopper está tentando resolver um problema legítimo. “O que torna esse sistema tão atraente, nós acreditamos, é o fato de que de 80% a 95% dos disparos de armas de fogo acabam não sendo registrados”, afirma o executivo-chefe, Ralph Clark.
As pessoas não registram tiros por vários motivos — elas podem não estar certas do que ouviram, pensar que alguém vai ligar para o 911 (número da polícia nos EUA) ou simplesmente por falta de confiança na polícia.
Então os fundadores da ShotSpotters tiveram uma ideia. E se eles pudessem passar por cima do processo do 911?
Eles criaram um sistema. Microfones são afixados em estruturas pela vizinhança. Quando um barulho alto é detectado, um computador analisa o som e o classifica como um disparo de arma de fogo ou alguma outra coisa.
Um analista humano então assume o caso para rever a decisão do computador. Na sala de revisão de incidentes, a ex-professora Ginger Ammon deixa que eu sente ao seu lado enquanto ela analisa essas decisões em tempo real.
Toda vez que o algoritmo identifica um potencial tiro, ele faz um som de “ping”. Ammon primeiro escuta a gravação e em seguida estuda as ondas sonoras produzidas pelo barulho, na tela de seu computador.
“Estamos vendo quantos sensores identificaram o ruído e se os sensores fizeram um padrão direcional, porque, em tese, um disparo de arma de fogo só pode viajar numa única direção”, diz ela.
Assim que ela estiver convencida de que um tiro foi mesmo disparado, Ammon aperta um botão que determina o envio de policiais para o local. Tudo acontece em menos de 60 segundos.
“Parece que você está jogando um jogo de computador”, eu digo. “Esse é um comentário que a gente ouve frequentemente”, responde ela.
Sucessos da ShotSpotter
Há exemplos claros de casos em que a ShotSpotter funcionou. Em abril de 2017, o supremacista negro Kori Ali Muhammad lançou-se numa onda assassina em Fresno, no Estado da Califórnia.
Ao tentar matar o maior número possível de homens brancos, ele caminhou por um bairro periférico escolhendo alvos.
A polícia estava recebendo chamadas no número 911, mas elas estavam atrasadas e não traziam informações específicas. Mesmo assim, a ShotSpotter foi capaz de indicar a policiais o caminho que estava sendo tomado por Muhammad.
Depois de três minutos — e três assassinatos —, Muhammad foi detido. A polícia de Fresno acredita que, sem a ShotStopper, ele teria matados mais pessoas. ” “A ShotSpotter nos forneceu o caminho que ele tomou,” diz o tenente Bill Dooley.
A empresa tem sido extremamente bem-sucedida em convencer forças policiais a adotar sua tecnologia.
Seus microfones estão instalados em mais de cem cidades nos EUA — e, por anos, a tecnologia não foi considerada polêmica.
Tudo isso mudou com o assassinato de George Floyd, quando muitos ficaram mais interessados na tecnologia que tantos departamentos de polícia estavam usando.
A ShotSpotter é muito cara para que a polícia a adote numa cidade inteira. Em vez disso, microfones são com frequência colocados em áreas nos centros das cidades — justamente onde há uma maior concentração de cidadãos negros.
Então, se a tecnologia não é tão precisa quanto a empresa alega, ela poderia estar impactando de forma desproporcional essas comunidades. Isso colocou a ShotSpotter ficou na berlinda.
Índice de acertos
A ShotSpotter alega estar certa em 97% dos casos. Isso significa que a polícia pode confiar que, quando chega um alerta da ShorSpotter, é quase certeza de que eles estarão realmente respondendo a um caso de disparo de arma de fogo.
Mas essa alegação é exatamente isso: apenas uma alegação. É difícil ver como a ShotSpotter medir sua própria precisão — pelo menos tendo como parâmetro a informação que a empresa torna pública.
E, caso ela não seja tão precisa como afirma, isso pode ter amplas consequências para a Justiça americana.
O primeiro problema com essa taxa de precisão alegada é que com frequência é difícil determinar, no local do incidente relatado, se um tiro foi realmente disparado.
Quando a inspetoria-geral de Chicago investigou a questão, eles descobriram que em apenas 9% dos alertas da ShotSpotter havia qualquer evidência física de ter realmente ocorrido um disparo de arma de fogo.
“É um número baixo”, diz a vice-inspetora-geral para Segurança Pública, Deborah Witzburgh.
O dado significa que, em 91% das respostas policiais a alertas da ShotSpotter, é difícil dizer de forma definitiva que uma arma foi disparada. Isso não quer dizer que não houve tiro, mas é difícil provar que houve.
O barulho de um tiro é muito semelhante ao de um rojão ou outro tipo de fogo de artifício ou ainda do estouro de um escapamento de carro. Então como a ShotSpotter pode ter tanta confiança de que é quase 100% correta? Essa é uma pergunta que eu levei para Ralph Clark, o executivo da empresa.
“Nós dependemos da confirmação do local passada por agências, para que nos digam quando nós erramos, quando deixamos passar uma detecção ou quando classificamos um barulho de forma errada”, diz ele.
Críticos, porém, afirmam que a metodologia tem uma falha fundamental. Se a polícia não tem certeza se uma arma de fogo foi disparada, eles não vão dizer à empresa que houve um erro.
Em outras palavras, dizem esses críticos, a empresa tem contado os “não sei”, “talvez” e “provavelmente” como “acertamos”.
O advogado de defesa Brendan Max diz que o índice de precisão divulgado pela empresa é “bobagem com objetivo de marketing”.
“Feedback de consumidor é algo usado para decidir se as pessoas gostam mais de Pepsi ou de Coca-Cola”, afirma ele. “Isso não é feito para estabelecer se um método científico funciona.”
Conor Healy, que analisa sistemas de segurança para o grupo de pesquisa sobre vigilância por vídeo IPVM, também é profundamente cético sobre a alegação da empresa de que ela acerta em 97% dos casos.
“Colocar sobre a polícia o ônus de relatar todo falso positivo significa que você espera que eles vão relatar quando nada aconteceu… O que eles provavelmente não farão”, afirma Healy.
“É justo assumir que, se eles [ShotSpotter] têm dados sólidos de teste para sustentar suas alegações, eles têm todo incentivo para divulgar esses dados.”
Crimes em alta
Em Fresno, eu me junto à polícia durante um turno noturno, acompanhando o policial Nate Palomino.
Fresno tem uma das piores taxas de criminalidade com uso de armas de fogo da Califórnia — e, como em muitas outras cidades americanas, ela tem piorado nos últimos dois anos.
Como era de se esperar, um alerta da ShotSpotter é enviado. Entretanto, quando chegamos ao local, nenhuma cápsula de bala é encontrada, e não há nenhuma evidência física de um disparo de arma de fogo.
O policial Palomino me diz que a gravação de áudio parece a de um tiro — e parece bem possível que realmente tenha sido —, mas é difícil provar. Ele diz que essa situação é típica.
O índice de acertos da ShotSpotter deveria ser inquestionável. Os resultados dos serviços da empresa têm sido usados em tribunais nos quatro cantos dos EUA como evidência em argumentos tanto de defesa como de acusação.
A preocupação é que, se ela não acerta com tanta frequência quanto alega, a ShotSpotter está enviando policiais para situações em que eles estão, equivocadamente, esperando encontrar uma cena de uso de arma de fogo.
Alyxander Godwin, que tem feito campanha para eliminar os serviços da ShotSpotter da cidade de Chicago, sintetiza essa preocupação.
“A polícia espera que essas situações sejam hostis”, afirma ela. “Eles esperam que haverá uma arma de fogo, e por causa da área para onde foram enviados, eles esperam ver uma pessoa de pele escura segurando uma arma.”
Mas a ShotSpotter afirma que não existem dados para sustentar essa tese.
“O que você está descrevendo é uma situação em que policiais vão a um local e basicamente atiram em pessoas desarmadas”, diz Clark. “Isso simplesmente não aparece nos dados. É especulação.”
Ele, porém, parece também aceitar que a própria metodologia de definição de índice de acertos tem suas limitações.
“Pode ser uma crítica justa dizer ‘Olha, você não está recebendo todo o feedback que você poderia receber”, diz Clark. “Pode ser uma crítica justa.”
Mas, o advogado de Chicago diz que os relatórios ShotSpotter não deveriam ser aceitos como evidência num tribunal até que a empresa possa sustentar melhor suas alegações de índice de acertos.
“Nos últimos quatro ou cinco meses, eu sei de dezenas de moradores de Chicago que foram presos com base em evidência da ShotSpotter”, diz ele. “Tenho certeza de que isso acontece em cidades por todo o país.”
Ele também afirma que a empresa deveria abrir seus sistemas para melhores análises e revisão.
Por exemplo, quem está revisando a qualidade das análises de forma independente? E com que frequência o algoritmo discorda de um analista humano?
Certamente, com base no que eu vi no tempo que eu passei no centro de revisão de incidentes da ShotSpotter, é comum que analistas discordem da classificação do computador.
“Ele [o computador] está apenas fazendo uma filtragem naquilo que nós vemos”, afirma Ammon. “Mas, sinceramente, eu nem mesmo olho [para a classificação], eu estou ocupada demais olhando para os padrões sensoriais.”
É uma admissão interessante. Às vezes, a tecnologia é percebida como algo que vê tudo, sabe de tudo — o computador detectando um disparo de arma de fogo de forma magistral.
Mas, na prática, os analistas desempenham um papel muito maior do que eu esperava.
Advogados como Brendan Max estão interessados em tentar estabelecer nos tribunais mais informação sobre como a tecnologia funciona.
Salvando vidas
A ShotSpotter foi muito criticada no último ano — nem todas as críticas foram justas. E muito da cobertura acaba ignorando o fato de que as forças policiais fazem frequentemente avaliações muito positivas sobre a eficácia da tecnologia.
A empresa tem interesse em destacar casos em que a ShotSpotter alertou a polícia para incidentes com vítimas de armas de fogo, salvando vidas.
Em várias cidades dos EUA, ativistas estão tentando persuadir seus municípios a encerrar seus contratos com a ShotSpotter. Mas, em outros lugares, a empresa está expandindo.
Em Fresno, o chefe de polícia Paco Balderrama busca aumentar sua cobertura, a um custo de US$ 1 milhão (R$ 5,6 milhões) por ano.
“E se a ShotSpotter salvar apenas uma vida num ano inteiro? Vale gastar US$ 1 milhão? Eu argumentaria que sim”, diz ele.
O debate em torno da ShotSpotter é extremamente complexo — e tem importantes ramificações para o policiamento de comunidades nos EUA.
É pouco provável que essa discussão desapareça até que o índice de acertos da tecnologia da empresa seja verificado independentemente, e os dados revisados por profissionais da área.
Fonte: Terra