Jumanan Zabaneh, 45 anos, estava em seu apartamento, a cerca de 1km da área conhecida com Tayyouneh, próximo ao Palácio da Justiça, no centro de Beirute. Convalescente de uma cirurgia realizada no dia anterior, ela começou a escutar as notícias sobre os confrontos, por volta das 11h (5h em Brasília). “Pude ouvir o som dos tiros, pois moro no sexto andar e também tenho uma boa visão da região central de Beirute. Desci de pijama e de chinelos e corri pelas ruas até chegar à escola das minhas filhas, Tamara, 8 anos, e Leila, 5. Pelo caminho, os tiros aumentavam de intensidade e escutei cinco explosões”, contou ao Correio a gerente de programas da ONU Mulheres em Beirute. Uma manifestação convocada pelos movimentos xiitas Hezbollah e Amal transformou várias áreas da capital em uma zona de guerra, depois que os milicianos entraram em choque com forças do governo. Franco-atiradores disparavam contra a cabeça das pessoas. O confronto deixou seis mortos e cerca de 30 feridos.
O protesto — que exigia o afastamento do juiz Tarek Bitar, responsável pela investigação da explosão no porto de Beirute, em 4 de agosto de 2020 — escalou rapidamente em tensão. Nas redes sociais, um vídeo mostrava um homem tombando na rua, depois de tentar disparar um lança-foguetes, enquanto moradores em pânico registravam as cenas com celulares. Em outra filmagem, vários homens vestidos de preto se protegiam atrás de um muro, enquanto atiravam com fuzis. Nas escolas, crianças traumatizadas aguardavam os pais, amontoadas nos corredores ou encolhidas sob as carteiras, na sala de aula.
Correspondentes da agência France-Presse (AFP) confirmaram que homens armados com braceletes com insígnias do Hezbollah e do Amal revidaram os disparos de franco-atiradores, escondidos no alto dos prédios. Entre os mortos, está uma mulher de 24 anos, atingida por uma bala na cabeça quando estava dentro da própria casa. Depois de encontrar o marido e resgatar os filhos, Jumanan e a família enfrentaram o medo na volta para o apartamento. “Foi muito perigoso. Temíamos ser alvos de uma bala perdida, pois havia muitos tiros na área. Em casa, nos sentamos no corredor. Pela janela, víamos a fumaça que se erguia das explosões das bombas. Fizemos as malas e partimos de Beirute. Tamara ainda tem trauma da explosão no porto (que deixou 214 mortos e 6 mil feridos) e recebe tratamento psicológico”, relatou.
Em nota conjunta, o Hezbollah e o Amal acusaram “grupos (cristãos) das Forças Libanesas de se dispersarem nos telhados dos prédios e de atirarem com a intenção de matar”. Também apelaram aos simpatizantes que não se deixem “se arrastar pela discórdia maliciosa”. O presidente libanês, Michel Aoun, fez um pronunciamento em rede nacional de televisão no qual mencionou a guerra civil de 1975-1990, quando 120 mil pessoas morreram. “As cenas de hoje (ontem) foram dolorosas e inaceitáveis. Isso nos levou de volta aos dias em que dissemos que jamais esqueceríamos e nunca repetiríamos”, declarou. Aliado cristão do Hezbollah, Aon advertiu que “é inaceitável retornar à linguagem das armas”. “Todos concordamos em virar esta página sombria de nossa história”, acrescentou. O governo libanês decretou luto nacional no dia de hoje.
Para tentar controlar a violência, o Exército foi mobilizado e posicionou tanques nas ruas. Os militares avisaram que responderiam contra qualquer um que abrisse fogo. Moradora de Beirute, a historiadora Joelle Boutros disse ao Correio que a situação se acalmou depois da intervenção dos soldados. “Nove homens que participaram dos confrontos foram detidos. Os combates se estenderam por cinco horas. Meus amigos abandonaram suas casas, outros fugiram do trabalho para buscar os filhos na escola”, comentou. Ela admite que convive com o medo de nova guerra civil. “As tensões têm aumentado nas últimas semanas. O xeque Hassan Nasrallah, secretário-geral do Hezbollah, ameaça com a eclosão da guerra, caso o juiz Bitar não seja removido. Mas a guerra no Líbano é uma decisão política. Os partidos no poder decidem quando começá-la e quando encerrá-la”, afirmou.
Os Estados Unidos e a ONU exigiram a redução das tensões. “Nós nos opomos à intimidação e ameaças de violência contra o judiciário de qualquer país, e apoiamos a independência do Judiciário no Líbano”, reagiu o porta-voz do Departamento de Estado americano, Ned Price. Joanna Wronecka, emissária das Nações Unidas no Líbano, exortou “todas as partes a apoiarem a independência da Justiça”.
“Eu e meus colegas ajudamos entre 25 e 30 pessoas”
“Trabalho para a Defesa Civil de Beirute, na condição de voluntário, desde 1990. Amo a minha pátria e meu povo. Procuro ter lealdade aos nossos princípios da defesa civil, além de um bom treinamento e cooperação entre a equipe. O meu país está triste, e sua capital, Beirute, chora muito. Hoje (ontem), eu e meus colegas ajudaram entre 25 e 30 pessoas. A parte mais difícil foi vermos as lágrimas e o medo no rosto de jovens e de idosos. Muitos dos feridos que socorremos apresentavam sangramentos. Nós transportamos as pessoas da zona mais perigosa, sob a chuva de balas, até um local seguro e sem tiroteios. Não me considero um herói. Apenas faço o meu trabalho. Nesta foto, socorremos uma garota que estava em choque, depois de ter sido separada da irmã. Pouco depois, elas se reencontraram e ela deixou área de Tayyoyneh em segurança. Ela estava muito nervosa e não conseguiu pronunciar uma palavra. Mas olhou para nós com gratidão. Sei que vou morrer quando Deus quiser. A vida e a morte não vêm do medo, mas de Deus. As vozes das pessoas são mais altas do que o som das balas.” Youssef Mallah, 44 anos, voluntário da Defesa Civil de Beirute. Na foto acima, é o segundo da esquerda para a direita. Depoimento concedido ao Correio, por meio do WhatsApp.