Processo de ressocialização das crianças deve respeitar o tempo delas

As irmãs Sarah (ao fundo) e Sofia Beck, aos poucos e com todo o cuidado, voltam a se relacionar com outras crianças - (crédito: Carlos Vieira/CB/D.A.Press)

Brincadeiras no pilotis, nas áreas comuns dos bairros, no intervalo das aulas, na casa de colegas — momento de soltar a imaginação, cooperar e até negociar. Quando crianças estão rodeadas por outras crianças, elas apuram a visão que têm do mundo e se desenvolvem de maneira mais saudável. E com perspectivas positivas em relação à imunização contra a covid-19, a interação social pessoal, prejudicada durante quase dois anos, parece estar cada vez mais próxima de acontecer de forma livre.


Para as irmãs Sarah Beck Raphaelli, 13 anos, e Sofia Beck Raphaelli, 9, as atividades do dia a dia voltam, aos poucos, a preencher a agenda. Felizmente, elas já conseguem encontrar duas ou três amigas para passar o tempo e brincar. A escola, com o ensino híbrido, também vem dando mais possibilidades para socializar. Para o Dia das Crianças, no próximo dia 12, as irmãs ajudarão a organizar um evento para os pequenos, em uma creche em Planaltina.


A mãe das meninas, Raquel Beck, conta que elas tiveram uma conduta supermadura nos últimos meses, conscientes dos cuidados que o momento exige. Para suprir a interação social, limitada de maneira sem precedentes durante a pandemia, conectaram-se on-line, por grupos. “Por ligação, elas conversam, montam fantasias com os amigos, brincam de boneca por vídeo”, conta.


Embora o período de confinamento tenha sido tranquilo, o retorno à vida social ainda está passando por alguns ajustes. A mais velha, Sarah, adorou o esquema das aulas on-line, mas aumentou, consideravelmente, o tempo de uso dos eletrônicos em casa. “Por um lado, vem gostando de estudar sozinha, ficar na dela, sem ser interrompida. Por outro, está mais isolada”, diz a mãe.


A primogênita, que ama estar rodeada por livros, também está mais afastada das amigas, não sendo muito proativa quando o assunto é ligar para elas ou marcar algum programa. Nessas horas, a mãe intervém e tenta motivá-la a fazer contato.


A pequena Sofia tem se mostrado mais ansiosa. Na quarentena, ela sentiu falta da convivência com os outros, montando brincadeiras a todo momento em casa para se ocupar. “Também tem ficado desinteressada com as atividades da escola. Tudo tira a atenção dela”, diz Raquel. Quando está estudando em casa, Sofia tem resistência ao método de ensino dos pais, que é diferente do dos professores. Com isso, acaba ficando mais reativa.


O mundo além de casa

As duas filhas de Raquel Beck, Sarah e Sofia, têm reagido de maneiras diferentes aos tempos difíceis impostos pela pandemia
As duas filhas de Raquel Beck, Sarah e Sofia, têm reagido de maneiras diferentes aos tempos difíceis impostos pela pandemia(foto: Carlos Vieira/CB/D.A.Press)

 


A exemplo das irmãs Sarah e Sophia, a readaptação ao contexto social é encarada de formas diferentes pelas crianças. Algumas terão mais resistência; outras, menos. A psicóloga Alessandra Araújo vem observando uma crescente nos casos de ansiedade entre o público infantil na clínica em que atua, a Via Vitae. Um dos motivos é a própria pandemia, as mensagens erradas sobre o vírus e os exageros. “Algumas crianças passaram a ter um medo iminente porque os pais potencializaram a doença. Justamente, nesses casos em que houve uma amplificação, foram observados processos ansiosos na criança”, explica.


Amanda destaca a faixa dos 5 a 6 anos, que, segundo ela, sofreu mais com o distanciamento dos últimos meses. É nessa etapa que a criança começa a construir a própria personalidade: “Quer experimentar e aprender ao máximo. Tudo que é novo encanta. Tanto é que, nessa fase, as crianças entram na escola. Depois de aprender a conviver com o outro, elas precisaram restringir o ciclo por um tempo e, agora, precisam reaprender a ter esse contato”, justifica.


A recomendação, agora, é encorajar os pequenos, sem abrir mão da educação que o assunto pede. Os responsáveis devem continuar orientando sobre os riscos da contaminação, garantindo a ciência que as crianças, sim, são capazes de assimilar. Mas sem traumatizar.


O medo de conviver, de tocar nos colegas e de dividir o lanche não pode parar a volta à rotina. De acordo com Alessandra, é preciso acolher o temor da criança. “Os responsáveis não devem se convencer de que o melhor lugar para os pequenos é dentro de casa. É fundamental sair, conviver com os outros e ver o quão legal é estar lá fora”, orienta.


Síndrome da Cabana

É essa ideia que rege a chamada síndrome da cabana, um fenômeno natural relacionado a mudanças bruscas de comportamento. A condição pode ser descrita como o sair da zona de conforto e, de maneira abrupta, se (re)inserir a um contexto, por vezes, incerto. Parece familiar, não é?


A psicóloga Maria Rita Zoéga Soares, que faz intervenção com crianças e adultos, explica que essa saída da cabana é importante para garantir o bem-estar e retomar a autoconfiança, não importa a idade. E, para os menores, as regras de convivência acontecem, necessariamente, mediante a convivência com o outro e é pré-requisito para desenvolver melhor até situações de perda e de resolução de problemas.


A boa notícia é que os músculos sociais das crianças não estão tão enferrujados. A adaptação e a aprendizagem delas são rápidas. E Maria Rita reforça: “Principalmente neste momento, vendo que outras crianças sentem algo parecido com o que ela sente, fica mais fácil compartilhar inseguranças e alegrias e entender o porquê desses sentimentos. Também é interessante porque a criança pode ser um modelo de enfrentamento de medo para as demais”.


Mas, para ter sucesso, a psicóloga aconselha que pais e responsáveis diminuam o nível de exigência: “A criança pode apresentar um padrão diferente do que era antes da pandemia. É preciso diminuir a pressão e aceitar o tempo de cada uma”.


É nesse espaço de escuta que os pequenos ficam à vontade para expressar medos e receios, segundo a psicóloga. E, de forma lúdica, brincando ou desenhando, comunica o que se passa, para, então, os maiores intervirem.


Aliás, o tratamento profissional de quadros ansiosos costuma ser breve entre os pacientes infantis. “Ensinamos sobre a angústia, observamos mudanças, avaliamos. Mas o processo não costuma perpassar muitos meses dentro do consultório”, complementa Alessandra.


Aprendendo sobre distância

Por ser enfermeira, Luciani Côrtes soube orientar as filhas, Anna e Manuela, sobre os cuidados com o novo coronavírus: diversão em família e atividades lúdicas
Por ser enfermeira, Luciani Côrtes soube orientar as filhas, Anna e Manuela, sobre os cuidados com o novo coronavírus: diversão em família e atividades lúdicas(foto: Arquivo pessoal)

 


As irmãs Anna, 7 anos, e Manuela Barcelo Côrtes, 5, tiveram que aprender a se policiar para evitar o toque físico a todo momento. “Brinco que elas gostam de ficar grudadas com as pessoas. Querem sempre ficar próximas e abraçar”, diz a mãe, Luciani de Souza Barcelo Côrtes, de 35. Mas a orientação passada por Luciani, que é enfermeira, deixa as coisas mais fáceis. Elas vêm tomando consciência dos cuidados e conseguindo aplicá-los direitinho no cotidiano.


A família buscou tratar a questão do novo coronavírus como algo que elas teriam de aprender a conviver: um problema persistente, não finito. Para Luciani, isso ajudou a diminuir a ansiedade das meninas sobre quando a pandemia acabaria.


Em 2020, os passeios ficaram restritos à fazenda da família, o que fortaleceu o contato com os avós e bisavós. Este ano, Anna e Manuela, finalmente, voltaram para o colégio. Com as atividades escolares, veio o contato social mais próximo do mundo real. “Antes, existiu uma troca familiar, mas é inegável que o convívio social, ainda assim, diminuiu muito”, conta. De modo geral, elas vêm se adaptando superbem ao novo momento.


Outro ponto interessante é que Luciani, por causa da profissão, ficou mais afastada das filhas no último ano. Com isso, as meninas tiveram que aprender sobre distância também em casa.


Resgatando a socialização

Yasmin Nunes celebrou os 2 anos de Yuri em casa: por ter quase a mesma idade da pandemia, o pequeno teve pouca interação social
Yasmin Nunes celebrou os 2 anos de Yuri em casa: por ter quase a mesma idade da pandemia, o pequeno teve pouca interação social(foto: Arquivo pessoal)

 


A psicóloga Maria Beatriz Linhares, especialista em desenvolvimento infantil e docente da Universidade de São Paulo (USP), corrobora que o processo de socialização das crianças não pôde ser totalmente interrompido, mas seguiu com muitas limitações. Ela exemplifica com o caso dos bebês que nasceram nos últimos dois anos e não tiveram acesso à principal parte de suas socializações, que envolve observar o rosto das pessoas e copiar suas expressões. Com o uso de máscaras em ambientes públicos, essa área do desenvolvimento ficou prejudicada, mas continuou acontecendo, uma vez que as crianças veem os rostos dos responsáveis e outros entes com quem dividem o núcleo familiar.


“Agora, cabe aos pais resgatarem esse processo de socialização de maneira lúdica. Mostrar fotos, envolver as crianças em atividades de música e esportes, por exemplo. Esse processo social mais saudável de interação e brincadeira é muito importante e, no momento atual, existe uma vantagem em relação ao ano passado.”, explica a psicóloga.


Com a vacinação avançando, as pessoas já enxergam novamente a possibilidade de encontrar parentes mais distantes, e as crianças voltam a ter chance de interagir com um núcleo maior e mais variado, o que é fundamental para a evolução das habilidades sociais. Segundo pesquisa da Hibou, empresa de pesquisa e monitoramento de mercado e consumo, mais da metade dos brasileiros, 61%, estão otimistas e acreditam que o Dia das Crianças deste ano será melhor que o de 2020, com a perspectiva de realizar encontros presenciais. Enquanto isso, 38% supõem que a data será igual ao ano passado.


É o que acredita Yasmin Nunes, 20 anos, estudante de psicologia e mãe de Yuri, que completou 2 anos em 2021. Ela diz que os presentes já estão sendo escolhidos, mas o dia, provavelmente, não terá grandes festas: “A gente vai dar os presentes e analisar o que ele quer para o dia. Às vezes, ele inventa uma brincadeira nova dentro de casa e não quer sair, mas tem dias que ele quer ir ao parquinho, então, a gente pode ir ao Parque da Cidade, porque ele gosta muito dali e é bem espaçoso. Não precisa ter tanto contato direto com outras crianças”.


Em busca do tempo perdido

Yasmin lemba que, por causa da pandemia, Yuri nunca teve experiências em ambiente escolar, então foi preciso buscar alternativas para desenvolver as habilidades sociais do pequeno da melhor maneira possível. “A gente tenta levá-lo bastante a parquinhos repetidos, onde ele pode conhecer alguém, como o parquinho aqui do prédio, que tem os amiguinhos que moram perto. Mas a maior parte deles já vai pra creche, então, tem um desenvolvimento social melhor do que ele”, diz. Por isso, costumam encontrar alguns obstáculos na hora de se cumprimentar, dividir os brinquedos e se comunicar.


A mãe de Yuri ainda observa os efeitos da falta de amizades com quem o pequeno possa interagir diariamente, frequentar as casas uns dos outros e fazer festinhas de aniversário, atividades corriqueiras em um período pré-pandemia. Segundo Yasmin, a família procurou investir no desenvolvimento de outras áreas, ensinando o alfabeto e os números, por exemplo, para mantê-lo ocupado e compensar a questão social. Por isso, ela tem esperança de que, ao matriculá-lo em uma creche no próximo ano Yuri consiga resgatar o tempo perdido.


O que os pais podem fazer

Demonstrar pontos fortes e conquistas da criança, sem fazer comparações negativas em relação às demais.
Oportunizar a convivência com crianças em período de desenvolvimento semelhante. Assim, a brincadeira acontece com alguém da mesma faixa etária.
Administrar o tempo em frente às telas de computadores, tablets, celulares e jogos eletrônicos.
Envolver os pequenos em atividades que criem memórias afetivas positivas. Contar histórias, buscar fotos antigas, ensinar novas brincadeiras, ter momentos de contato com a natureza.


Fontes: Maria Rita Zoéga Soares, psicóloga clínica e especialista em psicologia da saúde, e Maria Beatriz Linhares, psicóloga da saúde da criança especializada em parentalidade


Otimismo para as celebrações

A empresa especializada em pesquisa e monitoramento de mercado e consumo Hibou realizou, em 2021, uma pesquisa sobre as expectativas para o Dia das Crianças. Os dados se mostraram positivos:
87% dos entrevistados afirmam que esperam ser vacinados com as duas doses até a ocasião. E apenas 10% dizem que ainda não terão tomado a segunda dose até 12 de outubro.
Mais da metade dos brasileiros, 61%, acreditam que o Dia das Crianças deste ano vai ser melhor que o do ano passado; 38% supõem que será igual ao de 2020.
48% creem que já existirá uma maior flexibilidade, e as pessoas farão compras nas ruas; 32% preveem que as lojas e parques estarão abertos para comemorar a data. Mas, em tempos incertos, 12% declaram não ter ideia do que vai acontecer.
Se, em 2020, 34% dos brasileiros ficaram em casa e comemoraram com a família por videoconferência, em 2021, apenas 6% deverão celebrar virtualmente. Ainda para este ano, os planos envolvem se divertir junto às crianças em casa, ir ao encontro dos pequenos na casa deles, passear no shopping ou parque, receber a família em casa, viajar ou ir a um restaurante em família. 37% dos entrevistados ainda estão indecisos e outros 5% declararam não comemorar a data.


Compartilhar

Facebook
Twitter
WhatsApp
LinkedIn

Últimas Notícias