Nossa Senhora Aparecida: Por que mãe de Jesus entrou para a história com mais de mil nomes

Foto: Reprodução

São muitos nomes, muitas “nossas senhoras”. Mas elas todas se referem a uma mesma pessoa, uma mesma santa católica?


A resposta é sim. O que significa que Nossa Senhora Aparecida, cuja data se comemora em 12 de outubro é uma representação diferente da mesma santa que também pode ser chamada de Nossa Senhora de Fátima, Nossa Senhora de Guadalupe, Nossa Senhora de Lourdes e tantas outras.


Trata-se de Maria, uma jovem judia nascida em Nazaré há pouco mais de 2 mil anos, quando essas terras ao sul de Israel eram parte do Império Romano. Para o cristianismo, ela tem papel fundamental: tornou-se a mãe de Jesus Cristo.


Chamada de virgem por dois dos evangelistas, Mateus e Lucas, acredita-se que ela tinha cerca de 15 anos quando ficou grávida — pela doutrina cristã, por obra do Espírito Santo, ou seja, sem ter tido relações sexuais com homem algum. Na época, Maria já estava prometida em casamento a José, um carpinteiro da mesma cidade, mais velho, já na casa dos 30 anos.


Fato é que desta gravidez nasceria Jesus, o pilar fundador do cristianismo. Mas por que a tradição católica não rende a essa mulher apenas o título de Santa Maria, e são tantas as representações dela pelo mundo?


“Os nomes dedicados a Nossa Senhora dependem muito da forma como ela apareceu. Normalmente são dados pelo nome do lugar onde ela apareceu ou pelas condições em que se deram o aparecimento”, esclarece o padre Arnaldo Rodrigues, assessor da Arquidiocese do Rio de Janeiro.


Milhares de fieis na cidade de Aparecida em 2013, para acompanhar visita do papa Francisco


Marcelo Camargo/ABr
Cerca de 200 mil pessoas acompanharam visita do papa Francisco à cidade de Aparecida em 2013

Conforme explica a cientista da religião Wilma Steagall De Tommaso, coordenadora do grupo de pesquisa Arte Sacra Contemporânea – Religião e História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e membro do Conselho da Academia Marial de Aparecida, essas nomenclaturas acabam variando a “cada povo, cada região, cada cultura”, por conta de “títulos que correspondem aos eventos decorrentes de inúmeras situações”.


Ela lembra que muitos desses títulos são os chamados dogmáticos. É de onde vem, por exemplo, a nomenclatura de Nossa Senhora da Imaculada Conceição — bula assinada pelo papa Pio IX “declara Maria imune da mancha do pecado original”, ressalta a pesquisadora — ou mesmo a ideia de chamá-la de Virgem Maria, já que “o Concílio de Latrão, em 649, preconiza como verdade a virgindade perpétua”, da mãe de Cristo.


“Há ainda as denominações decorrentes dos lugares onde houve uma manifestação que deu origem à devoção local, muitas vezes ampliada a outros povos e locais, como Aparecida, Guadalupe, Lourdes, Fátima, Loreto, Montserrat, etc.”, complementa ela.


“Nomes diferentes são atribuídos à Virgem Maria pois estão ligados ao lugar onde ela apareceu”, acrescenta a vaticanista Mirticeli Medeiros, pesquisadora de história do catolicismo na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. “Não existe algo que determine que ela precise, necessariamente, ‘ser batizada’ com o nome do território da visão, mas como inicialmente as aparições são uma manifestação de religiosidade popular, antes mesmo de passar por toda a análise canônica de praxe, é o povo que acaba difundindo, num primeiro momento, esses títulos.”


“Os tantos títulos que lhe dão todos têm uma razão. É Nossa Senhora de Fátima, porque apareceu lá. É Nossa Senhora do Bom-Parto porque auxilia espiritualmente as parturientes. É Nossa Senhora do Bom-Conselho porque tem sempre uma orientação a dar aos seus filhos”, afirma o pesquisador José Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e professor da Universidade Estadual Vale do Aracaú, do Ceará. “E todos esses títulos são de uma só mãe, porque é mãe de toda a humanidade e em todos os lugares, os povos a chamam e representam conforme seus costumes, suas tradições. É claro que para uma veneração pública é necessária a aprovação da Igreja.”


Imagem da madona carregando Jesus em estilo de pintura coreana


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A basílica da Anunciação, em Israel, tem imagens de Maria enviadas por diferentes países do mundo; aqui é como ela seria representada na Coreia do Sul

Pedido de mãe é uma ordem

A devoção a Nossa Senhora, contudo, remonta ao princípio do cristianismo. Por princípio, a ideia é que ela funcione como um canal direto ao próprio Cristo — dentro da premissa que pedido de mãe ninguém nega.


Uma passagem importante do próprio evangelho reforça essa ideia. Trata-se da narração do milagre das bodas de Caná, que aparece exclusivamente no texto de João, no qual Jesus faria aquele que é considerado seu primeiro milagre.


Na festa de casamento, onde ele estava junto a sua mãe como convidado, os anfitriões notam que havia acabado a bebida. Maria chama Jesus de lado e explica o drama. Ele, então, transforma água em vinho e garante a continuação da celebração.


“Seria um escândalo para o casal se acabasse a bebida antes de a festa terminar. Quando Maria pede a Jesus que tome uma providência, fica importante o papel dela como intercessora”, analisa padre Rodrigues.


A devoção mariana também se baseia em outro momento dos textos bíblicos. Quando Jesus está agonizando na cruz, segundo o relato, ele teria dito algumas palavras para sua mãe e também para seu apóstolo João. Ali, teria utilizado o seguidor como representante toda a humanidade, considerando Maria a mãe dele — e, por extensão, a mãe de todos.


“Nesta ação, João representa toda a humanidade. Maria se tornou a mãe nossa. A nova Eva, uma Eva livre do pecado, como a Igreja nos ensina. Assim, Maria Santíssima cuida da humanidade como mãe e mãe zelosa”, analisa o hagiólogo Lira.


Velas com imagem de Nossa Senhora de Guadalupe


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No México, Nossa Senhora é representada com traços indígenas

Antiguidade

Segundo estudos do padre Valdivino Guimarães, mariologista e ex-prefeito de Igreja do Santuário Nacional de Aparecida, os registros mais antigos dessa crença no poder da mãe de Cristo remontam ao século 2. “Indícios arqueológicos demonstram a veneração dos primeiros cristãos. Nas catacumbas de Priscila, se vê pinturas marianas do segundo século, em local onde os primeiros cristãos se reuniam”, afirma ele.


“Nas catacumbas, encontramos o afresco considerado, até agora, a mais antiga imagem da Virgem Maria com o Menino Jesus”, comenta De Tommaso. “Esse afresco deixa evidente que os primeiros cristãos entendiam que a vinda de Jesus fora prenunciada nos livros sagrados do povo hebreu. E Maria, a mulher que disse o sim e que tece em seu ventre o corpo do Salvador. Há um ícone muito antigo conhecido como Maria, a tecelã.”


A mais remota das aparições remontam ao ano 40 e seria um episódio de bilocação, na verdade, pois Maria ainda era viva. Segundo a tradição cristã, ela teria aparecido ao apóstolo Tiago na atual cidade de Zaragoza, hoje Espanha, onde ele estava pregando. Fato é que há registros da construção de uma pequena capela ali, desde os primórdios do cristianismo.


Nossa Senhora representada com traços europeus


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A basílica da Anunciação tem imagens de Maria enviadas por diversos países; na Escócia ela é representada como branca

Outro relato sempre citado por pesquisadores é o de Nossa Senhora das Neves, uma aparição de agosto de 352, em Roma. Foi por conta desse episódio que foi erguida a Basílica de Santa Maria Maior.


“Maria é venerada desde os primórdios do cristianismo. Em muitos escritos, e inclusive na própria iconografia primitiva, ela recebe um lugar de destaque. A mais antiga antífona mariana que se tem notícia é do século 2, que é chamada, em latim, de Sub tuum presidium, ou Sob tua proteção. O Concílio de Éfeso, em 431 d.C, analisa e aprova a tese teológica de que Maria também era mãe de Deus, entre outras atribuições que ocorreram mais à frente”, pontua Medeiros.


“O tema de Maria está presente em todos os períodos da história do cristianismo. Há uma tradição que aponta que a primeira aparição de Maria teria acontecido na Espanha, em 40 d.C, cujo vidente teria sido São Tiago, apóstolo de Jesus, considerado o evangelizador do território”, prossegue a especialista. “O título adotado foi o de Nossa Senhora do Pilar, já que, segundo o relato, Maria teria mostrado ao apóstolo uma coluna, pedindo que ele construísse um santuário naquele lugar.”


Ao longo dos séculos, contudo, esses relatos passariam a ser constantes. De acordo com padre Rodrigues, estima-se que hoje sejam cerca de 1,1 mil nomes pelos quais a santa é conhecida.


“Bom, falando do ponto de vista histórico, as aparições acontecem em períodos muito particulares”, diz Medeiros. “Não cabe a nós, enquanto historiadores, julgarmos se elas são verídicas ou não, mas o fato está que muitas acontecem em meio a um determinado contexto político-social. É o caso de Fátima, cuja mensagem é muito interessante, e condiz com a postura da que a Igreja vai adotar, frente ao comunismo, nos anos posteriores. Temos o caso de Aparecida, por exemplo, cuja imagem é achada em meio ao debate em torno da abolição da escravatura. Temos o caso de Guadalupe, onde a virgem Maria, com traços indígenas, é um símbolo da luta contra a desigualdade. E por aí vai.”


Mas nem sempre a Igreja aprova essas manifestações. “Nem todas as aparições que ocorrem hoje foram oficialmente reconhecidas pelo catolicismo. Há um protocolo a ser seguido. Sem contar que algumas são reconhecidas totalmente e diante de outras, ainda em fase de análise, foi permitida somente a liberdade de culto”, lembra ela. “O que a suposta Virgem Maria diz, no caso, precisa condizer totalmente com os princípios da Igreja Católica e até a idoneidade moral e psicológica dos videntes é analisada.”


Estátua de Nossa Senhora segundo o menino Jesus


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A devoção à Maria é muito antiga no catolicismo

A padroeira do Brasil

Autora do livro 21 Nossas Senhoras que inspiram o Brasil, a jornalista Bell Kranz conta que a devoção mariana foi trazida ao Brasil já pelas esquadras de Pedro Álvares Cabral — em um dos barcos foi trazida uma imagem da santa. “[A tradição] chegou essencialmente pelos portugueses, pelos colonizadores”, explica. “O Tomé de Sousa [primeiro governador-geral do Brasil] chegou à Bahia já com uma imagem da santa na bagagem… Nossa Senhora da Conceição! E logo erigiu uma capelinha em Salvador, que hoje é a grande catedral Conceição da Praia [Basílica Nossa Senhora da Conceição da Praia].”


“Eu diria que o Brasil foi escolhido por Nossa Senhora, não é fanatismo dizer isso”, comenta Lira. Para ele, há uma “predileção especial de Nossa Senhora para com esta terra”.


“Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora das Dores, Nossa Senhora das Candeias (a mesma da Candelária e da Purificação), Nossa Senhora Aparecida (que é a mesma Conceição), penso que são as mais importantes para o Brasil pela veneração que o povo lhes atribui”, acrescenta o hagiólogo.


“É claro que cada Estado brasileiro tem sua devoção. Por exemplo, na Bahia há uma forte devoção à Nossa Senhora da Boa-Morte. Em Minas Gerais, Nossa Senhora da Piedade que é a mesma Nossa Senhora das Dores e por aí vai. No Pará, em Belém, temos a linda manifestação à Nossa Senhora de Nazaré que anualmente leva milhões ao Círio de Nazaré. Aqui no Ceará é interessantíssima a devoção a Nossa Senhora das Dores, em Juazeiro do Norte, por exemplo. E qual a razão? Não dá para explicar concretamente. É algo meio que filial mesmo. Amor de filho à sua mãe e uma mãe que é mãe de todas as mães, pais e filhos.”


Kranz atenta para o fato de que, dada a religiosidade católica inerente à própria construção da nação brasileira, “desde a colonização, Nossa Senhora está presente em todos os momentos de nossa história”.


E a ligação brasileira com a santa é umbilical. Isto porque, como bem lembra a jornalista, em 1646 o então rei português dom João 4º”consagrou todo o reino, incluindo aí as colônias, a Nossa Senhora”. “Aí, 217 anos depois do descobrimento do Brasil, ela apareceu lá para os pescadores [Nossa Senhora Aparecida]”, acrescenta Kranz.


Nossa Senhora

Maria se tornou “Nossa Senhora”, assim chamada, somente no fim do período medieval. Mas, historicamente, a Igreja já a reconhecia como “Mãe de Deus” muito antes — mais precisamente a partir do século 5, depois do Concílio de Éfeso, em 431. “[É quando] Maria recebe o título de Thotòkos, a Mãe de Deus, dogma que define explicitamente a maternidade divina de Maria. Daí em diante, ela passa a ocupar, por exemplo, o posto principal, o conteúdo da imagem do presépio se amplia e praticamente esse ícone resume a história da salvação”, esclarece De Tommaso.


De acordo com o mariologista Guimarães, Maria “ganha destaque sociológico, cultural e religioso” no período medieval. É quando ela adquire “caráter de poder”, tornando-se “aquela que destrói o mal”. Assume características fortes, “ganha rosto de rainha”. Assim, passa a ser invocada como “guerreira”, “a mulher que combate o mal e, com poder militar, destrói as heresias”.


“Maria passa da dimensão cultural para a política”, compara ele. “No período feudal, diante da opressão, Maria se torna a padroeira para os que nela buscam auxílio, e em troca de proteção, o fiel a louva com oração e atos de caridade.”


A santa passa a ser invocada “como a mãe que protege diante da ira de Deus, por algum pecado cometido, não só de forma individual mas também comunitária”.


“Com o surgimento das ordens mendicantes, Maria se aproxima das pessoas, ela é tirada do trono de realeza, onde fora colocada pela teologia monástica, e se faz irmã, pobre e vizinha das pessoas”, diz Guimarães.


Ao fim do período medieval, Maria já era um ícone consolidado dentro do catolicismo, tema constante das pregações e protagonista de tradições como medalhinhas, procissões, novenas e outras manifestações.


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