Inicialmente, as autoridades de saúde da ilha, assim como especialistas da Organização Mundial da Saúde (OMS), acreditaram que se tratava de uma infecção viral, que estava se espalhando pela população cubana.
Mas estavam enganados.
Em entrevista ao jornalista Mike Lanchin do programa de rádio Witness, da BBC, o oftalmologista americano Alfredo Sadun conta como ajudou a resolver o mistério da chamada epidemia cubana de neuropatia óptica.
É maio de 1993, e o oftalmologista americano Alfredo Sadun acaba de ser contatado por um representante da OMS a respeito de uma inexplicável epidemia de cegueira em Cuba.
“Não consigo lembrar as palavras exatas, mas vou parafrasear o que ele disse: ‘A OMS identificou que se trata de a) provavelmente um problema viral e b) que provavelmente afeta o nervo óptico’.”
“Eu era uma espécie de especialista e referência mundial em doenças do nervo óptico, então o pedido era para que eu fosse para Cuba o mais rápido possível”, conta Sadun, que hoje é membro do Doheny Eye Institute, afiliado à Universidade da Califórnia de Los Angeles (UCLA), nos EUA, em entrevista ao programa Witness.
Cerca de 50 mil pessoas haviam perdido a visão na ilha, e a doença parecia estar se espalhando num ritmo assustador.
O representante da OMS queria que Sadun embarcasse para Cuba naquela mesma noite.
Mas o médico, que estava em Miami com a família, negociou mais alguns dias.
“Expliquei que precisava voltar para Los Angeles primeiro, queria ter a oportunidade de dar alguns telefonemas para montar a equipe certa para me acompanhar.”
“(Também) queria passar algum tempo na biblioteca. Isso foi antes do Google, e precisava pesquisar várias possibilidades”, destaca.
E, embora estivesse entusiasmado com a ideia, era algo que precisava discutir com a esposa, dada a natureza da proposta.
“O fato de eu estar me metendo em uma (suposta) epidemia viral que estava cegando as pessoas de repente, era algo que eu precisava explicar a ela.”
Crise econômica
O início dos anos 1990 foi um período um tanto desafiador para os cubanos e seu líder, Fidel Castro.
O colapso da antiga União Soviética, que fornecia à ilha caribenha milhões de dólares em petróleo, alimentos e outros suprimentos vitais, desencadeou uma grave crise econômica na ilha, reforçada pelo endurecimento do embargo imposto pelos Estados Unidos.
O chamado “período especial” foi marcado pela escassez de diversos produtos básicos, como alimentos e combustível, e a adoção de políticas de racionamento.
Mas, naquele momento, a cegueira parecia desconectada da crise interna de desabastecimento — e sua rápida propagação sugeria, de fato, a presença de um vírus.
Preocupadas com uma possível epidemia viral tão perto da sua costa, as autoridades dos EUA concordaram rapidamente em autorizar a ida de Sadun para Cuba, apesar da proibição de viagens de cidadãos americanos ao país e da hostilidade declarada entre as duas nações.
E assim, em meados de maio de 1993, o médico e outros 11 especialistas da área de saúde voaram para Havana.
A primeira reunião deles na capital cubana aconteceu na mesma noite em que desembarcaram — com a sala repleta de cientistas e a presença de Fidel Castro.
“Castro interrompia regularmente. Algumas interrupções pareciam ser bastante sem importância. Alguém dizia: ‘80%’, e ele interrompia e dizia: ‘Não vamos exagerar, foi 78%’.”
“Eu interpretei isso como uma demonstração para todos de que ele estava no controle, que sabia o que estava acontecendo, e que não era apenas uma supervisão geral”, avalia.
E será que o líder cubano estava confortável com a presença de um americano na ilha?
“Quando cheguei, e ele me apresentou a algumas pessoas, me apresentou como Alfredo Sadun da OMS. No dia seguinte, me apresentou como médico e cientista italiano.”
“Ele fez de tudo para evitar me chamar de americano”, relembra.
Cuba já era conhecida por suas conquistas e expertise na área de saúde, mas a maioria das autoridades locais ainda estava convencida de que a epidemia era causada por um vírus.
Sadun, no entanto, estava mais cético.
Ele e sua equipe começaram analisando amostras do líquido cefalorraquidiano retiradas de pacientes que perderam a visão — e não encontraram nenhum vestígio de glóbulos brancos ou proteína, o que seria indício de uma infecção viral.
Além disso, constataram que não houve surtos em orfanatos, asilos ou quartéis militares — segundo ele, infecções virais tendem a se propagar rapidamente nestas instituições devido à falta de distanciamento entre os ocupantes.
Para provar sua teoria de que a cegueira tinha outra causa, e não era viral, Sadun precisava encontrar características comuns entre os pacientes afetados. Ele selecionou então um grupo de cerca de 20 para analisar.
“Precisávamos encontrar conexões familiares: pai e filho, mãe e filha, marido e mulher, porque aí você pode dizer o que essas pessoas têm em comum. Por exemplo, de repente elas usam o mesmo óleo de cozinha”, explica.
E o que ele descobriu é que todos haviam perdido uma quantidade enorme de peso.
“Em nosso grupo, a perda de peso variava de 9 kg a 13 kg. Então isso me deu uma noção das bases nutricionais do problema”, afirma.
A descoberta de que a alimentação provavelmente estava por trás da cegueira foi um grande passo. Mas não explicava tudo.
Por que, por exemplo, alguns membros da mesma família que não moravam juntos ou tampouco comiam juntos também haviam perdido a visão? A resposta foi encontrada quase por acidente.
A explicação
Uma paciente, cujo irmão também havia ficado cego, mas não vivia com ela nem compartilhava refeições com ela, forneceu a peça que faltava para montar o quebra-cabeça.
Ao ser entrevistada pela assistente de Sudan, ela contou que os dois se encontravam para caminhar na floresta.
“E nessas caminhadas, eles se encontravam com alguém que vendia rum de fabricação caseira para eles. E isso, sem dúvida, foi um entendimento revolucionário,” diz ele.
O rum artesanal contém traços de metanol, toxina com a qual um organismo saudável é capaz de lidar. Mas em alguém com deficiência de ácido fólico devido a uma má alimentação, o metanol presente na bebida caseira é metabolizado em ácido fórmico (formato) — que, por sua vez, pode causar danos irreparáveis ao nervo óptico.
“Naquele momento, estávamos todos suficientemente convencidos de que não apenas não era um vírus, como essa dupla combinação de deficiência nutricional, particularmente de ácido fólico, e envenenamento por ácido fórmico, um subproduto do metanol, que ocorre de forma crônica bastante lenta, era motivo suficiente (para causar a cegueira)”, explica.
Naquela mesma semana, Sadun anunciou suas descobertas às autoridades de saúde cubanas. Ele conta que, apesar da recepção fria de alguns, Fidel Castro ouviu com atenção e perguntou o que poderia ser feito.
O médico americano recomendou então a distribuição imediata e em massa de suplementos de ácido fólico e vitamina B.
Em setembro de 1993, a chamada epidemia cubana de neuropatia óptica havia sido controlada. Muitos pacientes apresentaram melhora após algumas semanas de tratamento, mas alguns não se recuperaram.
O trabalho de investigação de Sadun rendeu a ele, em 2002, uma medalha de honra da Academia Nacional de Ciências de Cuba.
Mas ele lembra que é preciso dar crédito aos cubanos, que foram capazes de identificar, antes de tudo, que a parte do globo ocular lesionada era o nervo óptico.