Há pouco menos de um ano, a imprensa internacional reagiu à série de abstenções do governo Bolsonaro em uma resolução contra a discriminação de mulheres da ONU comparando o Brasil ao Afeganistão — que tinha adotado a mesma postura na votação. À época, o país asiático ainda não havia retornado ao poder do Talibã, a facção islâmica sunita que chocou o mundo no fim dos anos 1990 com um regime violento especialmente no quesito gênero. Mas o que até então era uma figura de linguagem aparece agora com contornos reais, que foram observados por uma pesquisa do Instituto Locomotiva publicada há uma semana: nela, 24% dos brasileiros disseram que o Estado deveria ser religioso (cristão). Para quase três em cada dez (28%), o acesso ao porte de armas deveria ser mais amplo, enquanto 17% ainda afirmaram que as mulheres são “melhores” quando estão realizando tarefas domésticas. Ao fim do estudo, então, 7% dos entrevistados haviam concordado com essas três afirmações simultaneamente — que o instituto chamou, renovando a comparação, de “talibãs brasileiros”. Em números absolutos, é um microcosmo obscuro de 6,4 milhões de pessoas.
“Na escala do conservadorismo, podemos até dizer que eles são os fascistas”, sentencia o cientista político Christian Lynch, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). “São pessoas que, para restaurar um passado que acreditam ser o certo, topam qualquer coisa: até pegar em armas”, completa. Episódios que escancaram essa postura ultraconservadora pululam habitualmente pelo País: nesta semana, foi a vez de um policial militar da reserva de Santa Catarina, cujo vídeo xingando a ex-esposa e o filho com ofensas racistas viralizou nas redes sociais. Nas imagens, ele diz que “não suporta negros” e, em certo momento, ameaça bater na mulher com um chinelo, chamando-a de “demônio” e “macaca”.
No fim de agosto, outro vídeo que rodou pelos aplicativos de mensagens mostra um contexto que poderia, facilmente, ter acontecido em Cabul, capital afegã: durante um ato de mulheres contra feminicídios, no centro de Natal (RN), um vigilante fora do horário de trabalho desceu de uma moto com seu revólver em punho e apontou para as manifestantes até que elas abrissem caminho. Então, ele montou novamente no veículo e desapareceu. “Para essas pessoas, a arma aparece como um instrumento que impede qualquer outro discurso que não seja o delas”, diz Lynch. Embora não se enquadrem totalmente no rótulo de talibãs brasileiros, alguns desses tipos conservadores, que conseguem juntar rifles e Bíblia em um mesmo discurso e atacam minorias, são conhecidos. É o caso do apresentador Sikêra Júnior, da Rede TV!, que defendeu por várias vezes a liberação de armas e que enfrenta, desde junho, um processo judicial por ter xingado os LGBTQIA+ de “raça desgraçada”. Ele se desculpou pela declaração um dia depois, em meio à debandada dos patrocinadores do programa.
Outros até ocupam cargos públicos, como é o caso do prefeito de Criciúma (SC), Clésio Salvaro, que após demitir um professor da rede municipal por ter transmitido o clipe da música “Etérea”, do cantor paulistano Criolo (que fala sobre homossexualidade), aos alunos, disse que tomou a decisão por “não concordar com viadagem em sala de aula”. Na pesquisa do Locomotiva, vale dizer, 70% dos chamados “talibãs brasileiros” disseram justamente que o País não deveria permitir o casamento de pessoas do mesmo sexo. Para Michele Prado, autora do livro “Tempestade Ideológica” (Lux, 2021), sobre a ascensão da direita no Brasil, episódios como esses apontam para um extremismo anti-secular. “São pessoas que também rejeitam uma ordem social em que Estado e Igreja estão separados”, diz.
Os dados do Locomotiva ainda desenham um perfil comum do que chamou de talibãs de verde e amarelo: são homens acima dos 60 anos, com diploma universitário que vivem principalmente nas regiões Norte e Centro-Oeste. A metade deles se afirma religiosa e de direita — o que faz sentido quando se observa outras opiniões comuns compartilhadas por essas pessoas: a maioria (67%) acha que a Bíblia define o que é certo e o que é errado e que as polícias devem ter uma postura violenta no combate à criminalidade (54%). “A religião joga um peso grande nessas opiniões, de fato”, concorda Prado. “E por isso é um fenômeno que se assemelha ao Talibã”.