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Em carta ao STF, artistas, juristas e acadêmicos pedem proteção a direitos indígenas

Manifestação ocorre em momento de graves ataques aos povos originários e faz referência a julgamento do STF que definirá futuro das demarcações; assine também a carta

Em carta aberta aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), 301 pessoas, entre as quais artistas, juristas, acadêmicos e membros da sociedade civil como um todo, manifestam sua posição contra a tese do chamado “marco temporal”, que restringe o direito dos povos indígenas à demarcação de suas terras, e pedem que a Corte proteja os direitos constitucionais dos povos indígenas, sob grave ameaça neste momento no Brasil.


Na tarde desta quinta-feira (24), a carta aberta foi entregue simbolicamente aos ministros do STF por lideranças indígenas que participam do acampamento Levante Pela Terra, mobilização que reúne cerca de 850 indígenas de 48 povos de diversas regiões do país e ocorre há mais de duas semanas em Brasília.


A manifestação em apoio aos povos originários foi elaborada por ocasião do julgamento de repercussão geral marcado para o dia 30 de junho, próxima sexta-feira, que definirá o futuro das demarcações de terras indígenas no país.


Neste processo, a Corte vai analisar a ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklanõ, onde também vivem indígenas Guarani e Kaingang.


O status de “repercussão geral” dado em 2019 pelo STF ao processo significa que a decisão sobre ele servirá de diretriz para o governo federal e todas as instâncias do Judiciário no que diz respeito à demarcação de terras indígenas, além de servir para balizar propostas legislativas que tratem dos direitos territoriais dos povos originários.


Entre os temas em discussão neste caso está a tese do “marco temporal”, uma interpretação defendida por ruralistas e setores interessados na exploração das terras indígenas, de acordo com a qual os povos originários só teriam direito à terra se estivessem sobre sua posse no dia 5 de outubro de 1988.


O marco temporal foi incluído, também, no parecer do Projeto de Lei (PL) 490/2007, aprovado ontem (23) na Comissão de Constituição e Justiça (CCJC) da Câmara dos Deputados, apesar da intensa mobilização dos povos indígenas contra a medida, que desfigura seus direitos constitucionais e inviabiliza, na prática, as demarcações de terras indígenas.


“O tratamento que a Justiça Brasileira tem dispensado às comunidades indígenas, aplicando a chamada ‘tese do marco temporal’ para anular demarcações de terras, é sem dúvida um dos exemplos mais cristalinos de injustiça que se pode oferecer a alunos de um curso de teoria da justiça. Não há ângulo sob o qual se olhe e se encontre alguma sombra de justiça e legalidade”, afirma a carta.


“Este Supremo Tribunal tem em suas mãos a oportunidade de corrigir esse erro histórico e, finalmente, garantir a justiça que a Constituição determinou que se fizesse aos povos originários”, prossegue o documento.


A carta pública segue aberta a novas assinaturas de pessoas e instituições até o dia 29 de junho. Clique aqui para assinar a carta em defesa dos direitos constitucionais dos povos indígenas.


Leia a carta na íntegra:


CARTA ABERTA AOS MINISTROS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – STF


Assunto: Recurso Extraordinário (RE) nº. 1.017.365


Excelentíssimos Ministros do Supremo Tribunal Federal


Dirigimo-nos respeitosamente a Vossas Excelências na condição de cidadãs e cidadãos não-indígenas deste território em que se constituiu o Estado Brasileiro e envergonhados com a forma com que, há séculos, tratamos os povos originários e os assuntos que são de seu interesse e direito.


Os indígenas foram tratados pela lei brasileira como indivíduos relativamente incapazes até a Constituição de 1988. É verdade que esse tratamento poderia se justificar como uma proteção do Estado-guardião contra práticas enganosas e fraudulentas a sujeitos sem a plena compreensão dos parâmetros sociais da sociedade dominante. Entretanto, a história de expulsão, transferência forçada e tomada de suas terras pelo Estado ou por particulares sob aquiescência ou conivência do Estado evidenciam os efeitos deletérios de uma tutela estatal desviada de sua finalidade protetiva.


Segundo o último Censo do IBGE (2010), 42,3% dos indígenas brasileiros vivem fora de terras indígenas e quase metade deles vivem nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste do país. Essas regiões foram as primeiras e as mais afetadas pelas práticas de expulsão e ocupação não-indígena das terras dos povos originários. Embora boa parte da sociedade brasileira, por simples desinformação, pense que a tomada e a ocupação das terras dos indígenas tenha ocorrido nos primeiros anos da chegada dos europeus a este território, isso não é verdade.


Foi sobretudo com as políticas de expansão para o Oeste iniciadas sob Getúlio Vargas e aprofundadas na Ditadura Militar, com grandes obras de infraestrutura e abertura de frentes agropecuárias, que os indígenas sentiram com mais vigor e violência o significado do avanço da “civilização” sobre suas terras e seus recursos. São deste período, os massacres dos índios Panará, dos Waimiri-Atroari e dos Krenak, para mencionar apenas alguns. É também deste período, a formação das reservas do SPI, hoje superlotadas e caóticas, para onde foram removidos, sem esclarecimento ou prévio consentimento, os Terena e os Guarani e Kaiowá, do Mato Grosso do Sul. Da mesma forma, os Guarani Mbyá foram expulsos de suas terras com a ocupação recente do oeste do Paraná e a construção da usina hidrelétrica de Itaipu.


Para boa parte dos povos indígenas brasileiros, a perda dos territórios tradicionais consolidou-se na metade do século XX. Considerados incapazes e tutelados, o Estado Brasileiro jamais negociou ou lhes deu possibilidade concreta de se opor às remoções. Ao contrário dos povos nativos norte-americanos com quem a Coroa Britânica e depois o governo dos EUA firmaram tratados e contra quem, desde os primórdios da Suprema Corte dos EUA, os nativos litigam, no Brasil só muito recentemente os tribunais concederam aos povos indígenas o direito de serem ouvidos quando o assunto é direito à terra.


E nisto este Supremo Tribunal tem desempenhado papel histórico. A decisão de 2020 tomada na ADPF no. 709 no sentido de que a “Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB possui legitimidade ativa para propor ação direta perante o Supremo Tribunal Federal” é um marco para o reconhecimento da capacidade processual dos indígenas, nos termos do art. 232, da Constituição de 1988. A decisão pioneira de 2016, de lavra do Eminente Ministro Fachin, na ACO 1100, que admitiu a participação, como litisconsorte passivo necessário da comunidade indígena dos povos Xokleng e Guarani em processo que discute anulação de ato demarcatório da Terra Indígena Ibirama-Lãklãno, é outra medida que corrige o erro histórico da ausência de participação dos maiores interessados no desfecho do caso. Trata-se de uma mudança de entendimento importante, mas muitíssimo recente na jurisprudência brasileira.


No entanto, a perda dos territórios jamais foi esquecida ou aceita pelos indígenas. A conquista a duras penas dos direitos elencados nos artigos 231 e 232 da Constituição foi a oportunidade para as comunidades indígenas finalmente reivindicarem junto ao Estado o reconhecimento e a demarcação das terras de onde haviam sido, há não muito tempo, expulsos e desapropriados. Como consequência, a partir dos anos 90 do século XX, inicia-se no Brasil um amplo processo de demarcação de terras. Conforme a FUNAI, há 435 terras indígenas definitivamente regularizadas no país, sendo que mais de 98% da área demarcada está na Amazônia.


A realidade é muito diversa no resto do país. Embora muitos processos de demarcação tenham sido iniciados, há em torno de 231 processos demarcatórios paralisados e 536 pedidos indígenas de constituição de grupos de trabalho para identificação de outras terras tradicionais. A paralisação de grande parte dos processos de demarcação na FUNAI decorre de ações judiciais propostas por ocupantes não-indígenas (fazendeiros ou poder público estadual), visando à anulação dos atos http://ecosdanoticia.net/wp-content/uploads/2023/02/carros-e1528290640439-1.jpgistrativos que declaravam a tradicionalidade da terra indígena por eles atualmente ocupadas para fins comerciais ou não.


Tomando como base o argumento do “marco temporal da ocupação” invocado por este Tribunal, no julgamento da Petição 3.388, para reforçar a legitimidade da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, Juízes Federais e Tribunais Regionais Federais têm, a contrario sensu e indiscriminadamente, anulado os atos de demarcação de terras indígenas. Fundamentam suas decisões na ausência de direito à demarcação no caso de os índios não estarem na posse da terra na data da promulgação da Constituição de 1988. Esta Suprema Corte criou uma exceção à regra: “a reocupação não ter ocorrido por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios”. Porém, em dois processos em que anulou demarcações de terras no Estado do Mato Grosso do Sul, a Segunda Turma desta Corte exigiu prova de que o “conflito possessório iniciado no passado tenha persistido até́ o marco temporal de 05 de outubro de 1988, materializado por circunstâncias de fato e controvérsia possessória judicializada”.


Excelências, como exigir prova de resistência ao esbulho renitente a pessoas e comunidades vulneráveis, muitas vezes transferidas à revelia para outros espaços, a quem o Estado tutelava e não reconhecia capacidade civil? Exigir provas de sujeitos que sequer foram citados ou admitidos no respectivo processo judicial? Que sequer, na maioria das vezes, sabia da existência do trâmite de um processo dessa natureza?


Enquanto esses processos se desenrolam lentamente na justiça brasileira, conflitos e violências contra comunidades indígenas se multiplicam país afora. Cansados da indisposição do Estado em garantir-lhes o retorno às suas terras, comunidades indígenas têm ocupado as terras identificadas ou reivindicadas à FUNAI e sofrido intensos ataques armados de milícias rurais, que resultam em mortes, espancamentos, tortura e toda sorte de atos desumanos e humilhantes caracterizados como verdadeiros crimes contra humanidade. Decisões judiciais anulatórias não farão cessar os conflitos, ao contrário os acirrarão. Vulneráveis e sem acesso à terra, essas comunidades serão simplesmente exterminadas, se não pelas armas, pela absoluta ausência de base territorial para que as próximas gerações desfrutem de um espaço para manter sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições.


Por conta desses fatos, é que esta Corte encontra-se nestes dias diante do principal caso indígena de sua história: o RE No 1.017.365/SC, ao qual, acertadamente, reconheceu repercussão geral. Este processo trata justamente da espoliação de terras de comunidades indígenas que, em 1988, não estavam na posse diante do esbulho de não-índios e da impossibilidade de resistir.


O tratamento que a Justiça Brasileira tem dispensado às comunidades indígenas, aplicando a chamada “tese do marco temporal” para anular demarcações de terras, é sem dúvida um dos exemplos mais cristalinos de injustiça que se pode oferecer a alunos de um curso de teoria da justiça. Não há ângulo sob o qual se olhe e se encontre alguma sombra de justiça e legalidade.


Este Supremo Tribunal tem em suas mãos a oportunidade de corrigir esse erro histórico e, finalmente, garantir a justiça que a Constituição determinou que se fizesse aos povos originários.


Em decisão de 2020, no caso McGirt v. Oklahoma, a Suprema Corte dos EUA entendeu que a terra reservada aos indígenas Muscogee Creek, no que hoje é o Estado de Oklahoma, por meio dos Tratados de 1832 e 1866, não foi desconstituída pelo posterior loteamento e transferência de partes da terra para não-índios em 1901, porque o Congresso não emitiu nenhuma lei determinando a extinção da reserva. Com isso, considerável parte leste do Estado de Oklahoma, incluindo a cidade de Tulsa, foi reconhecida pela Suprema Corte como terra indígena. Juiz Gorsuch, nomeado pelo então Presidente Donald Trump e redator do voto condutor, destacou que nenhuma interpretação diferente desta poderia ser admitida e, caso fosse, a Suprema Corte estaria diante da lei dos fortes, não da lei do Estado de Direito: “[T]hat would be the rule of the strong, not the rule of law”.


Esperamos que esta Corte faça prevalecer o Estado de Direito. Como brasileiros não-indígenas e constrangidos com a indignidade do tratamento dispensado aos povos nativos, pugnamos a este Tribunal que não faça triunfar a concepção de justiça de Trasímaco refutada por Sócrates: “a justiça serve ao interesse do mais forte e o que é injusto é útil e vantajoso para ele.” (PLATÃO, A República, 334c).


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