É possível continuar admirando o trabalho desses profissionais, ainda que não concordemos com o que eles fizeram em suas vidas particulares?
Essa questão me veio quando li, na última semana, que mais um time de futebol decidiu contratar o goleiro Bruno para seu elenco: o Araguacema, equipe da primeira divisão do Campeonato Tocantinense.
A cada novo contrato assinado por Bruno com um time de futebol, a repercussão é a mesma: protestos e indignação.
O jogador foi condenado, ficou preso e ganhou da Justiça o direito de sair para trabalhar. Por que não pode, então, dar sequência à sua vida profissional?
Obviamente que pode. E até deve! Mas há algumas questões a se considerar quando falamos de futebol —especialmente num país como o Brasil, que idolatra o esporte e tem nele quantidades imensas de circulação de dinheiro.
Guardadas as particularidades de cada universo, é bastante equivalente a falar de Hollywood e da indústria cultural nos Estados Unidos.
O cineasta Roman Polanski foi condenado pelo estupro de uma adolescente menor de idade.
Woody Allen encara há anos acusações da filha adotiva de abuso sexual. Johnny Depp se envolveu em caso de violência doméstica.
O ator Kevin Spacey foi denunciado diversas vezes por assédio. O cantor Chris Brown agrediu Rihanna.
O que todos têm em comum? São nomes fortes do mercado em que atuam, poderosos, ricos, admirados por muita gente.
Igualmente poderosos e celebrados são os ídolos do esporte —com o agravamento de estarem inseridos em um universo essencialmente machista e infelizmente bastante habituado a casos de assédio, abuso e violência doméstica (se bem que Hollywood já mostrou que não fica muito atrás).
Bruno Fernandes foi goleiro do Flamengo entre 2006 e 2010, venceu três Campeonatos Cariocas e um Brasileiro.
Creio que não seja preciso explicar aqui o que significa fazer parte de um elenco vencedor do Flamengo, um dos times mais populares e queridos do Brasil, com uma torcida imensa.
O jogador foi condenado a 20 anos e nove meses de prisão pelos crimes de homicídio triplamente qualificado, sequestro e ocultação de cadáver de Eliza Samúdio, a mãe de um de seus filhos.
Eliza foi sequestrada, torturada, morta e, ao que indica a principal linha de investigação do caso, esquartejada. Um crime hediondo e chocante.
Em 2019, o goleiro conseguiu direito ao regime semi-aberto. E, desde então, vem tentando se reinserir no universo do futebol.
O que tem causado discussões acirradas entre clubes, torcedores e, especialmente, TORCEDORAS.
Quanto mais cresce a presença feminina no universo esportivo, maior a pressão sobre os clubes para que casos de violência não sejam esquecidos.
O recado é claro: para além da Justiça, que precisa agir com rigor, é importante que os times se posicionem.
A mensagem passada até então era de isenção. Nenhum clube ou dirigente se importava com o que seu atleta fazia fora de campo desde que correspondesse às expectativas dentro dele.
Não mais. A percepção de que esses homens, por meio do esporte, tornam-se ídolos e, portanto, exemplos, é clara.
Muitos, inclusive, se apoiam nisso para buscar a impunidade. E permitir de forma silenciosa que mulheres sejam alvos recorrentes de violência é inadmissível.
Segundo pesquisa realizada pela consultoria Pluri em 2019, 68,9% das mulheres brasileiras possuem um time de preferência.
Só no Flamengo, o percentual de mulheres no total de torcedores é de 48,4. Ou seja, quase metade de todos os flamenguistas do país é mulher.
A possibilidade de Bruno poder voltar a ser ídolo é algo que precisa ser pensado com seriedade.
E, mais do que isso, é importante também que o futebol entenda seu papel social neste país chamado Brasil.
A violência contra a mulher não pode mais ser tolerada ou naturalizada. Os números de feminicídio só crescem.
Entre março e dezembro do ano passado, mais de mil mulheres morreram no Brasil simplesmente por serem mulheres —o que significa três mortes por dia.
Para muita gente é difícil decidir não ver mais os filmes de Polanski, ou mesmo não ouvir mais nenhuma música de Chris Brown. Há quem acredite que é possível, sim, separar o artista da obra.
Só é preciso entender que, ao consumir o trabalho de alguém, ao ver um filme, ao ouvir uma música, ao ir a um show —ou ao contratar um jogador condenado por matar e torturar— você está dando condições para que essa pessoa continue acumulando idolatria, dinheiro e poder. Você está permitindo que ela vire exemplo e está, sim, virando as costas para a violência contra a mulher.