“Não vamos chorar o leite derramado”, afirmou Jair Bolsonaro nesta quarta (7). É surpreendente a naturalidade com a qual ele chama uma montanha com 341.097 cadáveres de “leite derramado”.
Apenas nas últimas 24 horas “derramaram-se” mais 3.829. Ou melhor, ele ajudou a derramar.
Mas não é a primeira vez que o presidente atinge em cheio, com suas declarações, quem está de luto em decorrência da covid-19. “Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?” é outro exemplo, dado no dia 4 de março, em São Simão (GO),
Segundo ele, medo da covid é coisa de “maricas” por que “todos nós vamos morrer um dia”. Sim, vamos. Mas ele não precisa apressar esse dia D e essa hora H.
Bolsonaro poderia ter ido pelo caminho racional de enfrentamento à pandemia, como o resto do mundo civilizado. Preferiu abraçar o obscurantismo, satisfazendo a sua base mais fiel, que mantém sua popularidade longe da faixa de impeachment.
Adotar o caminho sensato obrigaria Jair a sentar-se para articular o enfrentamento da doença com governadores e prefeitos que são seus adversários políticos. Sua natureza bélica nunca permitiria isso. Ele ama a guerra.
O próprio resumiu isso muito bem quando foi questionado sobre a defesa que fazia da “pílula do câncer”, um remédio sem eficácia para o tratamento da doença – sim, a cloroquina e o vermífugo não foram seus primeiros lances de charlatanismo.
“Sou capitão do Exército, a minha especialidade é matar, não é curar ninguém. Mas apresentei junto com mais alguns colegas e aprovamos”, afirmou em junho de 2017.
O presidente gastou seu português nesta quarta para repetir, mais uma vez, que “não vai ter lockdown”. Nem precisaria dizer. Com o auxílio emergencial de fome que está pagando, entre R$ 150 a R$ 375, as pessoas não vão conseguir ficar em casa para evitar o vírus.
Apesar das insinuações de que usaria o que chama de “meu exército” contra o isolamento social, a sabotagem do lockdown está vindo como decorrência de seu governo ter criado fome através do atraso no pagamento do benefício e do seu tamanho pífio.
O presidente negou à população o direito à vida a partir do momento em que passou a defender o contágio amplo e rápido de toda a sociedade como forma de criar imunidade contra o vírus. As famílias de 341.097 brasileiros certamente discordam disso.
Mas com declarações como a de hoje, ele nos lembra que também nega o direito à morte com dignidade. Não apenas com a falta de vacinas, de oxigênio, de leitos, de medicamentos para intubação, mas com mortos sendo encarados como danos colaterais que precisam ser ignorados por um bem maior. No caso, sua reeleição.
Após falar do leite derramado, o presidente ainda disse, em Foz do Iguaçu (PR): “Estamos passando ainda por uma pandemia que, em parte, é usada politicamente. Não para derrotar o vírus, mas para tentar derrubar o presidente”.
É impressionante como constrói a narrativa para tudo girar em torno do seu umbigo, como fosse alvo de uma conspiração, quando, na verdade, boa parte dos pedidos por seu impedimento foram apresentados para evitar que outras milhares de pessoas não se tornem “leite derramado” em vão.