O Ministério Público Federal investiga supostas irregularidades nos preços pagos pelo Ministério da Saúde em contratos para a compra de máscaras durante a pandemia. Entre as máscaras do tipo cirúrgico, principal modelo escolhido, a variação chegou a 116%. Um segundo modelo comprado, a KN95, custou até 783% a mais.
Todas as compras foram feitas com dispensa de licitação, em março e abril de 2020, já no contexto de pandemia e sob legislação especial vigente desde fevereiro, com permissão para dispensa de concorrência na aquisição de insumos diante da emergência na saúde pública.
Os seis contratos para compra de máscaras, assinados na gestão de Luiz Henrique Mandetta e defendidos nas gestões de Nelson Teich e Eduardo Pazuello, que as distribuíram, somaram R$ 765 milhões. Na pandemia, o governo de Jair Bolsonaro já tem um quarto ministro da Saúde, Marcelo Queiroga.
Em nota, o ministério afirmou que não houve questionamentos do MPF sobre os preços contratados e que foram comprados produtos distintos. As aquisições seguiram critérios como comprovação de aptidão para fornecimento e registro do produto pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), segundo a nota.
O procedimento do MPF em Brasília é o segundo que investiga atos do Ministério da Saúde relacionados à distribuição de máscaras na pandemia.
A Folha revelou no dia 17 que a pasta distribuiu máscaras impróprias a profissionais que estão na linha de frente de combate à Covid-19, conforme avaliação da Anvisa em documento elaborado em 13 de janeiro. A distribuição do material é investigada em inquérito civil instaurado em 3 de fevereiro.
Uma parte dessas máscaras foi interditada pela Anvisa, após a autoridade sanitária dos Estados Unidos (FDA, na sigla em inglês) suspender autorizações emergenciais diante da falta de eficiência mínima na filtragem de partículas. Outra parte foi escanteada pelos estados em razão da advertência “non-medical” nas embalagens. A máscara é do tipo KN95, fabricada na China.
Uma fatia desse material, com inscrição “non-medical” na embalagem, foi fornecida pela Global Base Development HK Limited, uma empresa de Hong Kong representada no Brasil pela 356 Distribuidora, Importadora e Exportadora. O dono da distribuidora, Freddy Rabbat, atua no mercado de relógio de luxos suíços.
O contrato foi o sexto assinado para a compra de máscaras pela pasta. Previu 200 milhões de máscaras do tipo cirúrgica descartável tripla, com três dobras, tira elástica, clipe nasal e “filtração de partículas mínimas de 95%”, e 40 milhões de KN95.
A primeira custou US$ 0,33, conforme o contrato assinado em 8 de abril. Pela cotação do dólar naquele dia, saiu por R$ 1,69. A segunda custou US$ 1,65, ou R$ 8,48. Todo o contrato saiu por R$ 679 milhões.
O MPF investiga as variações de valores nos contratos assinados pelo Ministério da Saúde. Todos eles tratam basicamente do mesmo tipo de máscara cirúrgica, mais a KN95.
A partir da análise das especificações contidas nos contratos, especialistas ouvidos pela Folha dizem que nenhuma dessas máscaras pode ser considerada um EPI (equipamento de proteção individual), destinado a profissionais de saúde.
O primeiro contrato foi assinado em 10 de março de 2020, para a compra de 500 mil máscaras cirúrgicas. A empresa BRT Medical forneceu o produto a um custo unitário de R$ 0,96.
No mesmo dia, o Ministério da Saúde assinou um contrato com a Farma Suply, para 1,5 milhão de máscaras semelhantes. O preço pago por produto foi de R$ 1,60. Oito dias depois, a empresa assinou mais um contrato com o ministério, para o fornecimento de 8 milhões de máscaras cirúrgicas. O preço cobrado, dessa vez, foi R$ 1,97 por peça.
Uma terceira empresa, a Descarpack Descartáveis, foi contratada para fornecer 13 milhões de máscaras. Nesse contrato, assinado em 12 de março, o custo individual saltou para R$ 2. No dia 27 do mesmo mês, a Aura Pharma fechou um contrato para entrega de 20 milhões de máscaras, a um custo individual de R$ 2,08.
Depois, em abril, foi a vez da empresa de Hong Kong, representada por uma distribuidora brasileira, fechar o contrato mais vultoso para a entrega de máscaras cirúrgicas e KN95.
“Máscaras cirúrgicas não são consideradas EPIs. KN95 não é similar à N95 dos EUA. N95 e PFF2 são as indicadas para quem tem contato direto com pacientes de Covid-19”, afirma Antônio Vladimir Vieira, químico, professor de especialização em saúde e segurança na USP (Universidade de São Paulo) e responsável por certificação de máscaras na Fundacentro por 32 anos.
“Por essas descrições [presentes nos contratos], nenhuma dessas máscaras pode ser considerada EPI. A KN95 tem limitações ao se prender na orelha, e falta de certificação. E as máscaras cirúrgicas são mais simples”, diz Vitor Mori, doutor em engenharia biomédica e integrante do Observatório Covid-19 Brasil.
O secretário-executivo do Ministério da Saúde na gestão Pazuello, coronel Élcio Franco, já foi oficiado quatro vezes pelo MPF para explicar as variações de preços nos contratos das máscaras.
O MPF tenta pelo menos desde outubro conseguir uma cópia integral dos processos de compras. Um novo ofício foi enviado à pasta na última segunda-feira (22).
Entre as explicações dadas até agora, o ministério afirmou que os preços oscilaram diante da “gigantesca demanda mundial” e do aumento das dificuldades nas negociações com fornecedores.
Um despacho de área técnica da pasta chegou a afirmar que o preço da KN95 não ficou abaixo da média praticada no mercado nos primeiros cinco meses de 2020. Pelos documentos entregues ao MPF, porém, não fica claro se o valor ficou dentro ou acima da média. É este tipo de informação que os procuradores da República tentam obter para avançar nas investigações.
Em nota, assinada pelos advogados Eduardo Diamantino e Fabio Tofic, a 356 Distribuidora afirmou que a Global Base foi selecionada conforme as exigências do edital e por apresentar menor preço e maior disponibilidade.
“O modelo KN95 é um produto de qualidade superior e completamente diferente das conhecidas máscaras descartáveis triplas. É equivalente a outros respiradores como N95. Os produtos similares à KN95 custam em média de cinco a sete vezes o preço de uma máscara tripla”, disse.
As máscaras têm certificação aceita internacionalmente, tiveram resultado de eficácia na retenção de 95% de partículas e jamais foram proibidas por qualquer ato normativo, conforme a nota. “Na China, onde o produto é fabricado, o termo ‘non-medical’ se refere a inadequação apenas para uso cirúrgico.”
A Descarpack Descartáveis afirmou, em nota, que o governo chinês optou por restringir a produção local de máscaras apenas para consumo interno, o que dificultou o acesso. Dólar alto, necessidade de frete aéreo e exigência de pagamento antecipado encareceram o material, segundo a empresa.
Os R$ 2 cobrados por peça se aproximam do custo de aquisição, R$ 1,75, disse. O produto fornecido atende aos requisitos do edital e tem registro na Anvisa, com testes periódicos sobre eficiência, cita a nota.
Também em nota, a Aura Pharma disse que a contratação foi feita no início da pandemia e que o Brasil não tinha capacidade produtiva, matéria-prima ou indústria preparada para a demanda. “Aproximadamente 95% dos EPIs são importados da China. O valor da máscara cirúrgica teve um aumento de mais de 2.000% da noite para o dia.”
Houve ainda alta dos custos de logística e risco de retenção de carga, conforme a empresa. Sobre a qualidade, a Aura Pharma disse que o próprio governo chinês inspecionou os produtos e divulgou empresas autorizadas por eles. “Nossas máscaras atendiam, em sua totalidade, às especificações do edital. Antes da importação, submetemos amostras ao ministério, que foram aprovadas.”
Os contatos fornecidos pela Farma Suply em seu site não funcionam. A reportagem deixou uma mensagem em rede social do proprietário, sem resposta.