Eram 12h35 de ontem quando a dona de casa Maria Edileide da Silva, 47, serviu o almoço para ela e sua filha de 13 anos em uma apertada cozinha. No prato de ambas, apenas feijão e arroz.
“Carne só compro quando sobra dinheiro. É raro agora”, conta a moradora de uma pequena casa localizada em um beco estreito do Vale do Reginaldo, área da periferia de Maceió.
Ela é uma das “órfãs” do auxílio emergencial pago pelo governo em 2020 —mas que pode ser renovado hoje em votação no Congresso.
Em meio à pandemia, moradores de bairros pobres na capital alagoana relatam que temem mais a fome do que serem contaminados na segunda onda de covid-19.
“Com o dinheiro que recebia [do auxílio], conseguia comer bem todo dia! Mas hoje, com o preço da carne, está difícil. Compro, de vez em quando, R$ 15, R$ 20 de carne com osso. Dá só para passar uns dias”, cita ela, que vive apenas com o valor da pensão do pai de sua filha e está com Bolsa Família bloqueado.
Bolsa Família tem de sustentar
Com o fim do pagamento do auxílio emergencial, pessoas de baixa renda voltaram a viver do valor Bolsa Família —que em fevereiro foi de R$ 186,83 em média, bem abaixo do valor de R$ 600 e R$ 1.200 das primeiras parcelas do benefício emergencial.
Segundo dados do Cadastro Único, do Ministério da Cidadania, o país tinha em dezembro 13.923.660 famílias em situação de extrema pobreza (maior número desde 2014) e 2.764.930 em pobreza. Dessas, apenas 14.264.964 receberam Bolsa Família em fevereiro.
O Ministério da Cidadania não informa, desde 2019, o número da fila de espera para ingresso no programa.
Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em julho, 30,2 milhões de domicílios (ou 44,1% do total) foram beneficiados com o auxílio emergencial e foi a única renda para 4,4 milhões de famílias.
Ajuda para sobreviver
No mesmo beco do Vale do Reginaldo, Maria de Lourdes Morais, 62, mora com o filho de 22 anos e conta que hoje sobrevive com ajuda dos outros quatro filhos. “O gás foi eles que me deram”, diz.
Na comunidade, um botijão custa em torno de R$ 90, um real a mais do que o valor que recebe do Bolsa Família. “Com o auxílio, eu admito que comi bem; como nunca, aliás. Não gastei com coisas para a casa, apenas comprei muita comida para ficar forte e não ter problema com esse vírus. Já pensou se ele me pega sem eu estar alimentada? Melhor saúde que um bem novo”, conta.
Eu adoro essa TV [de tubo] da sala. Não ia gastar R$ 1.000 com uma televisão nova para comer mal, ficar fraca e doente.
Maria de Lourdes Morais, moradora de área pobre em Maceió, gastou dinheiro para se alimentar bem
‘Bife de olho’ no fogão a lenha
Na parte norte de Maceió, a favela Vila Emater 2 também tem um cenário de dificuldade extrema em um momento em que a pandemia dá sinais de crescimento em Alagoas.
“Hoje o almoço é feijão, arroz e bife de olho [ovo]”, brinca José Orlando dos Santos, 60. No barraco em que mora com a mulher, Maria Margarida da Silva, 55, a cozinha é preparada em um fogão a lenha.
Mas o preço do ovo está subindo demais. Comprava a bandeja [com 30] por R$ 10 no ano passado. Agora está R$ 16. Daqui a pouco nem ovo mais.
José Orlando dos Santos, que cozinha a lenha
Ele conta que, na primeira onda da doença, conseguiu se isolar com o auxílio emergencial recebido. Evitou ir até o Mercado da Produção, no centro da cidade, onde atua com carreteiro.
“Agora, estou tendo de ir todo dia com meu carro de mão, mas quase nunca consigo nada, ninguém contrata. Hoje mesmo não rendeu nem um real. O mercado está vazio, as pessoas estão com medo dessa doença. Eu também tenho [medo], mas não tenho opção, preciso tentar ganhar mais algo [que os R$ 89 do Bolsa Família] para não passar fome”, afirma ele, que gasta R$ 6,70 diariamente de ônibus.
Sem renda, fim do isolamento
Sem auxílio, todos os entrevistados da Vila Emater contaram ao UOL que precisaram voltar a trabalhar e tentam melhorar a renda do Bolsa Família.
Maria Aparecida dos Santos, 50, cata material reciclável nas ruas de Maceió e diz que não pode parar neste momento. Ontem, quando a reportagem a encontrou na porta de seu barraco, ela chegava em casa com a sacola cheia —cerca de 3 kg de material reciclável.
“Eu junto tudo e, quando tem muito, eu vendo. O caminhão vem aqui e paga 80 centavos [por quilo]. Vendo quando tenho uns 100 kg, ganho R$ 80. Ajuda muito”, explica a mulher, que recebe R$ 89 por mês do Bolsa Família.
Hoje vou almoçar feijão, arroz e macarrão.
Maria Aparecida dos Santos, catadora de recicláveis
Com seis filhos morando em um mesmo barraco, Maria Rosineide dos Santos, 35, também faz malabarismo para sobreviver com os R$ 422 que recebe mensalmente do Bolsa Família. O valor, diz, é insuficiente para segurança alimentar da casa —onde moram oito pessoas, uma delas que precisa de remédio controlado.
É muito pouco o que ganho para o preço caro das coisas hoje. Subiu demais. Tenho de me virar para dar um peixe, ou ovo, ou salame para os meninos não ficarem sem a mistura.
Maria Rosineide dos Santos, mãe que se preocupa com a alimentação dos seis filhos
Ela conta que aguarda a aprovação de um novo auxílio para conseguir terminar de colocar as telhas da casa, feita de madeira.
“Eu ainda tenho um retroativo para receber porque demorei a ter o auxílio aprovado. Se sair, e tiver de novo o auxílio, eu vou comprar as telhas que faltam porque já já vem o período de chuva”, afirma.
Comércio em baixa, inflação alta
Sem auxílio, o comércio na favela sentiu o impacto. “Caíram demais as vendas, bote aí uns 40% a menos neste mês”, revela José Terto, dono de uma pequena mercearia no local. Assim como os moradores do entorno, ele também reclama do aumento no preço dos produtos que revende.
Hoje um cliente que vem aqui com R$ 10 só mela a bolsa, não leva quase nada. Está tudo muito caro.
José Terto, dono de mercearia
O principal item de que ele reclama da alta é a carne. “Há uma semana, comprei um pacote de 5 kg de charque por R$ 155. No sábado passado, comprei esse mesmo pacote por R$ 174. Como pode aumentar R$ 19 em uma semana? Não tem como!”
Carne aqui, pelo visto, vai ser só quando morder a língua.
Um dos pontos citados pelo vendedor encontra respaldo nos números.
Segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), que publica o índice de inflação por faixa de renda, entre fevereiro de 2020 e janeiro de 2021, a inflação das famílias mais pobres (cujo rendimento mensal é menor que R$ 1.650,50) ficou em 6,2% —enquanto que entre as mais ricas (com rendimento domiciliar superior a R$ 16.509,66) foi de apenas 2,9%. Isso pode ser explicado por conta das altas em preços de valores do gás de cozinha, carne e aluguel.
Terto trabalha na mercearia com o filho, não tem funcionários. Ele afirma que, sem um novo auxílio ou reajuste do Bolsa Família, será difícil reverter a queda nas vendas.
“Quando tinha o auxílio, minhas vendas foram pelo menos 20% maiores que a média. As pessoas aqui compravam muito mais carne, mas hoje é raro.”
Falta do essencial
Na Vila Emater, não há atendimento médico por um programa de saúde da família. O posto de saúde que funcionava em uma casa alugada foi fechado no início do ano passado.
Os moradores contam que uma equipe médica enviada por um vereador foi a única com quem se consultaram durante a pandemia. A creche que existia no local também foi fechada por conta do difícil acesso ao local. Uma nova, mais distante, foi erguida numa área abaixo da comunidade.
A líder comunitária Vânia Gomes diz que a situação só não está pior no local por conta da Cooperativa dos Catadores da Vila Emater, que tem 33 pessoas e é responsável pela coleta de lixo reciclável em Maceió.
“São 33 famílias sustentadas por esse serviço. Com ela, não passamos fome, mas no entorno há uma dificuldade maior —embora muitos atuem indiretamente e tendo alguma renda da cooperativa. Precisamos demais do retorno do auxílio”, diz.
Ela afirma que, graças ao auxílio, muitos moradores da comunidade puderam ficar em casa e se protegeram da pandemia sem passarem fome.
Mas hoje está um cenário de muita dificuldade sem o auxílio, porque o covid-19 chegou com força e muitos precisam da renda para sobreviver. Só o Bolsa Família não dá.
Vânia Gomes, líder comunitária