A eleição do democrata Joe Biden para a Casa Branca deve provocar alterações nos rumos da política ambiental de Jair Bolsonaro, segundo fontes do governo. O presidente tem sido orientado por integrantes do governo a deixar de lado as diferenças ideológicas e não se indispor com o presidente americano, eleito neste sábado. Aliados do presidente admitem que o Executivo readequará o discurso e não descartam até mesmo uma possível substituição do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.
Pesquisadores e ex-ministros concordam que, encerrado o governo Trump, o discurso antiglobalista de Bolsonaro perde seu maior aliado, e o Brasil será pressionado a desempenhar seu papel no Acordo de Paris, o maior tratado do mundo contra as mudanças climáticas. Alguns membros do governo, como o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, negam a influência humana sobre o aquecimento global.
Da mesma forma, o governo democrata deve ser mais sensível aos protestos contra os maus tratos às populações nativas brasileiras, cujo território na Amazônia tem sido invadido por atividades ilegais, como grilagens, extração de madeira e especulação de terras. Diversos casos já foram denunciados por ONGs internacionais, que já foram definidas por Bolsonaro como um “um câncer que não consigo matar”.
Há uma preocupação de que as estreitas relações comerciais entre ambos os países seja comprometida — as empresas americanas podem endurecer suas cláusulas em relação às políticas ambientais aqui implantadas.
Além das tensões do mercado, Bolsonaro também terá de lidar com a ameaça de Biden de impor sanções econômicas caso o Brasil negligencie a devastação da Amazônia, cujo índice de incêndios é o maior da última década. No Twitter, o presidente brasileiro classificou o discurso do então candidato democrata americano como “lamentável” e um atentado à “soberania” nacional.
Pressão que se soma a tensões no Congresso brasileiro
A mudança no cenário exterior se soma a uma pressão que já vinha do Congresso nas diretrizes do governo para o meio ambiente. Tanto ambientalistas quanto ruralistas consideram que a transformação será inevitável.
Presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), o deputado Alceu Moreira (MDB-RS) diz que a vitória de Biden exige uma nova estratégia de política externa e “comunicação e imagem” para transmitir ao mundo que o governo vem atuando no combate ao desmatamento:
— Ricardo Salles tem uma dialética que se contrapõe ao sistema anterior e, portanto, criou adversários muito ferrenhos. Criou uma linguagem muito ofensiva. Mas ele conhece profundamente o tema, é muito qualificado tecnicamente. Então ele talvez tenha que mudar a narrativa.
Segundo ele, é “inegável que as pessoas (no resto do mundo) estão agregando valor aos nossos produtos com base nesses cuidados” com o meio ambiente. Por isso, é necessário cuidar dessa imagem.
Coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista, o deputado Rodrigo Agostinho (PSB-SP) acredita que o governo terá que mudar os rumos do que vem fazendo atualmente na área do meio ambiente para evitar conflitos com os Estados Unidos.
— Basicamente, o Brasil terá que fazer a lição de casa: cortar o desmatamento. Estamos perdendo 1,2 milhão de hectares de florestas por ano. Absurdo — disse. — Os Estados Unidos voltam para o Acordo de Paris, então voltam a ter metas de redução (de emissão). Devem diminuir os investimentos em energia suja e aumentar os investimentos em energia limpa.
Membro da mesma frente, o deputado Alessando Molon (REDE-RJ) considera que a pressão externa tornará insustentável a atual política do governo no meio ambiente.
— Essa inflexão do governo será inevitável, porque essa agenda anti-ambiental do governo Bolsonaro já não encontrava sustentação no mundo da economia, isso já estava trazendo graves consequências para o país. A agenda anti-ambiental já não encontrava qualquer suporte, mas encontrava um apoio no âmbito da política externa com os Estados Unidos. A derrota do Trump e a vitória do Biden vai impor ao governo brasileiro uma mudança. A primeira medida anunciada por Biden antes mesmo de se tornar governo foi o retorno ao Acordo de Paris, isso mostra a centralidade da agenda ambiental no próximo governo.
Atrito diplomático
Izabella Teixeira, ex-ministra do Meio Ambiente, avalia que a ameaça de sanções de Biden devido à devastação da Amazônia, assim como a tentativa de Bolsonaro de ligar o episódio à soberania nacional, foram calcadas no “desconhecimento da diplomacia”.
Ainda em setembro, referindo-se a Biden, Bolsonaro afirmou no Twitter que seu governo, “diferentemente da esquerda”, não aceita “subornos, criminosas demarcações ou infundadas ameaças”. Teixeira, que foi ministra do Meio Ambiente dos governos Lula e Dilma Rousseff, ambos petistas, nega que temas como preservação da Amazônia estejam ligados a ideologia, e que um atentado à floresta provocaria graves danos aos EUA.
— O ambiente é um norteador dos interesses nacionais. É uma questão de Estado, e não de governos, não pode mudar a cada quatro anos — explica. — Temos tratados ambientais desde os anos 1970, e nunca a soberania nacional foi contestada. Fizemos acordos bilaterais climáticos com o governo de Obama (do qual Biden foi vice) antes do Acordo de Paris e trabalhamos com os EUA na conferência. Um estudo da Universidade de Princeton indicou que, se metade da Amazônia for desmatada, a Califórnia sofrerá imediatamente um aumento da temperatura. Então, manter a floresta é um objetivo comum.
Rubens Ricupero, ex-embaixador do Brasil em Washington e ex-ministro do Meio Ambiente, acredita que Bolsonaro perde, com o fim do governo Trump, seu último grande apoio. Para lidar com Biden, o presidente brasileiro precisará repensar seu trato para assuntos como Amazônia e políticas indígenas. Com isso, também se aproximaria da sociedade, já que mais de 90% da população é favorável à conservação da Amazônia e do Pantanal, segundo pesquisas
— Ainda assim, Bolsonaro não mudou seu posicionamento em áreas como saúde, meio ambiente e povos indígenas. Até quando o assunto é vacina, fala que a caneta é dele — recorda. — Já o vice-presidente Hamilton Mourão reuniu-se recentemente com embaixadores para falar sobre a Amazônia. Foi um ato inteligente para evitar o isolamento internacional do Brasil.
Ricupero acredita que a reforma ministerial, retirando Salles e Araújo de suas cadeiras, não será suficiente se não for acompanhada por uma mudança de filosofia. Afinal, ambos são apenas “ventríloquos” do Planalto. Para o ex-embaixador, as rusgas de Bolsonaro com a campanha de Biden não resultarão em punições da Casa Branca:
— Por mais que os democratas não apoiem o que acontece aqui [o governo Bolsonaro], Biden conhece o Brasil, manteve uma relação amistosa com a Dilma e está ciente de nossa relevância na América Latina.
Professor titular do Instituto de Relações Internacionais da UnB, Eduardo Viola concorda que a influência do Brasil no continente será pesada pelo democrata.
— Biden, que tentará fortalecer uma aliança internacional das democracias, não tem interesse de nos ver nos braços da China. Bolsonaro precisa mostrar disposição para firmar negócios multilaterais, e assim poderá ser até contemplado com um novo fundo de investimento para a Amazônia.
Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional Brasil, espera que Biden seja um aliado importante na construção de “sociedades que respeitem os direitos humanos”. Desde o início do governo Bolsonaro, organizações como a Human Rights Watch, Greenpeace, WWF e Cimi denunciaram irregularidades que vão desde o aumento da violência contra os povos indígenas à intimidação de fiscais ambientais do Ibama, impedidos de aplicar multas contra desmatadores.
— Vivemos um período em que o país esteve à frente de graves violações de direitos humanos. Entendemos que a agenda de busca desenfreada por desenvolvimento econômico, assim como os grandes projetos, sempre ameaçaram os povos tradicionais, que têm sido os guardiões do ambiente — explica. — Biden deve estimular líderes mundiais a proteger povos que sofrem algum tipo de vitimização.
Redução no orçamento para preservação do ambiente
O governo Jair Bolsonaro fechou o ano de 2019 com o menor patamar de multas aplicadas pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) desde 2013 e a maior área desmatada nos últimos 11 anos, de acordo com o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).
Houve também uma redução nos investimentos. Em preservação e conservação ambiental, o governo federal pagou apenas R$ 155 milhões no ano, uma redução de 72% em relação aos R$ 558 milhões em 2018, no governo Temer.
Em um ano em que incêndios já destruíram 26% da área do Pantanal, segundo o Prevfogo do Ibama, o órgão chegou a paralisar o combate ao fogo devido a restrições orçamentárias, depois revertidas pelo Ministério da Economia. O número de focos de incêndio na Amazônia em 2020 foi o maior dos últimos dez anos, segundo o Inpe.
O GLOBO questionou o Ministério do Meio Ambiente sobre as políticas tocadas pelo órgão na área, mas não obteve resposta.